“Em 2024, o jornalismo na América Latina enfrentou um dos cenários mais hostis das últimas décadas." Essa foi a conclusão do novo relatório anual da organização Voces del Sur, que reúne 17 organizações da América Latina que promovem a liberdade de expressão e a proteção de jornalistas.
O Relatório Sombra 2024, que monitora os 17 países dessas organizações, detalha como a imprensa da região vive uma "combinação letal" entre repressão estatal, violência criminosa e falta de garantias institucionais.
Em 2024, o relatório registrou 3.766 alertas por violações à liberdade de imprensa, dos quais 1.562 correspondem a agressões e ataques. E embora esses números mostrem uma pequena diminuição em comparação com 2023 – que teve 3.827 alertas e 1.680 agressões e ataques – a análise não indica que se trata de uma melhoria, mas sim "de mudanças de mecanismos ou consolidação de alguns para tentar limitar a liberdade de imprensa", disse César Mendoza, consultor da Voces do Sul, à LatAm Journalism Review (LJR).
Uma das principais conclusões do relatório é justamente que o Estado continua sendo o principal agressor da imprensa. Em quase metade dos alertas (49,3%), os responsáveis foram atores estatais.
Diante desse cenário de uma imprensa cada vez mais atacada e de um Estado que continua se destacando como principal agressor da imprensa, como concretizar soluções que exigem vontade política para se materializarem?
O papel da sociedade civil é vital para conseguir ações concretas por parte dos governos, disse Mendoza. Segundo ele, além de pressionar de forma eficaz os governos para obter resultados, o objetivo final deveria ser conseguir uma mudança "mais profunda" na estrutura dos Estados da América Latina.
"É importante nos perguntarmos como cidadãos e sociedade civil: nossos governos têm a vontade de ajudar a construir democracias baseadas no respeito aos direitos humanos?", disse Mendoza.
Não é apenas preocupante que os Estados continuem sendo os principais agressores da imprensa, mas também a sua ausência em fóruns públicos, o que demonstra incapacidade institucional, acrescentou Mendoza.
"Isso fez com que os grupos do crime organizado, assim como outros grupos de interesse, tenham mais capacidade para agredir a imprensa sem que existam consequências reais", disse.
Um exemplo é o Brasil, onde o discurso estigmatizante do Estado chegou ao fim, mas os ataques de grupos civis – geralmente alinhados à extrema direita – aumentaram, explicou Mendoza.
Segundo o relatório, o Brasil registrou uma queda de 34,6% nas violações à liberdade de imprensa em comparação com 2023. A mudança de governo de Jair Bolsonaro para Luiz Inácio Lula da Silva produziu uma mudança significativa em relação aos responsáveis pelos ataques à imprensa. O envolvimento de agentes estatais nesses ataques diminuiu 30,2% em 2024 em comparação com 2023.
“Essa queda foi especialmente notável nos discursos estigmatizantes, em que aqueles proferidos por autoridades estatais diminuíram 54 pontos percentuais em um ano, passando de 72,1% em 2023 para 18,1% em 2024”, afirma o relatório sobre o Brasil.
No entanto, isso não significou uma melhora para a situação da imprensa do país. Segundo o relatório, outras formas de violência se "intensificaram" e houve uma mudança no foco dos ataques para o ambiente digital: em 2024, dos 94 ataques registrados, 31,9% corresponderam a ameaças digitais e ciberataques. Os agressores não estatais foram responsáveis por 41,7% de todos os alertas documentados. Pelo menos 20 dos alertas envolveram apoiadores do ex-presidente Bolsonaro ou candidatos de seu partido.
A diminuição no número total de ataques é explicada no relatório pela presença de outros fenômenos, como o "reorganização dos ataques", assim como a consolidação da autocensura, os desertos de notícias e o exílio forçado de jornalistas.
O exílio é um dos fenômenos que vêm se estendendo pela região. Cuba, Nicarágua e Venezuela foram os países que mais expulsaram jornalistas como consequência de agressões, assédio, ameaças de morte e encarceramento, disse Mendoza.
O recente relatório "Vozes Deslocadas: Radiografia do exílio jornalístico latino-americano" relatou que 913 jornalistas de 15 países latino-americanos foram forçados a fugir entre 2018 e 2024. O relatório constatou que esses profissionais partiram para proteger suas vidas, sua segurança e a de suas famílias, geralmente abandonando a profissão.
Um dos países que viu crescer o exílio nos últimos anos é o Equador. Entre 2023 e 2024, a Mesa de Articulação para a Proteção de Jornalistas (MAPP) registrou o exílio de 14 jornalistas devido à violência do crime organizado, disse César Ricaurte, diretor executivo da Fundamedios (organização que faz parte da Voces del Sur), à LJR.
O papel do crime organizado é precisamente uma das principais conclusões no caso do Equador. Dos 194 alertas reportados, seis em cada dez correspondem a agressões e ataques (60,3%, ou 117 alertas). Destes, quase 20% foram perpetrados pelo crime organizado.
De fato, como explica Ricaurte, a "inauguração" do mandato de Daniel Noboa foi marcada pela tomada das instalações da TC Televisión por um grupo armado que fez seus funcionários reféns, ameaçando-os e apontando armas para eles durante uma transmissão ao vivo. O incidente deixou sequelas psicológicas nos jornalistas, especialmente em José Luis Calderón, que se exilou.
Para Ricaurte, a infiltração do crime organizado é uma das maiores preocupações, pois dificulta a identificação da origem dos ataques contra jornalistas. Segundo ele, o crime organizado se infiltra no Estado, "capturando juízes, promotores, forças de segurança", entre outros, e também tem como alvo atores externos ao Estado, como empresários e até mesmo jornalistas.
A ausência do Estado, disse Ricaurte, é evidente nessas situações. A MAPP, composta por organizações da sociedade civil e meios de comunicação, conseguiu tirar do país esses 14 jornalistas sem a intervenção nem a ajuda do Estado.
A proteção de jornalistas diante do cenário de aumento da violência também não tem sido uma prioridade para o Estado, disse Ricaurte. Mesmo após a criação do Mecanismo de Prevenção e Proteção do Trabalho Jornalístico em 2022, com a reforma da Lei de Comunicações, seu trabalho tem sido insuficiente.
"Está indo muito mal", disse Ricaurte. "O Estado em todos esses anos não deu um centavo para o financiamento do mecanismo. E o que vemos também é que há sérias falhas de design do mecanismo." Por exemplo, disse, a falta de independência do Executivo.
O papel dos governos na garantia da liberdade de expressão é claro até nas democracias mais estáveis da região, como Chile, Costa Rica e Uruguai, disse Mendoza. A Costa Rica, disse ele, "mostra como apesar dos avanços democráticos que têm como país, a figura dos governantes é fundamental para consolidar a liberdade de expressão e de imprensa ou uma arma que joga contra elas".
Em 2024, foi institucionalizado o papel do Estado como agressor da imprensa na Costa Rica. A participação de atores estatais aumentou “constantemente”: de 54,5% em 2022 para 75% em 2023, até alcançar 82,4% em 2024, segundo o relatório. Ou seja, em dois anos os alertas triplicaram.
"Nossa esperança é que os ataques à imprensa na Costa Rica terminem quando o atual governo populista, que não tolera críticas ou investigações por parte da imprensa independente e séria, chegar ao fim”, disse Raúl Silesky, presidente do Instituto de Imprensa e Liberdade de Expressão (IPLEX), à LJR.
Neste país, as restrições ao acesso à informação representaram 35% dos alertas, consolidando-se como uma das principais formas de assédio ao trabalho jornalístico, segundo o relatório. O país só aprovou a lei de acesso à informação em novembro de 2024. Silesky disse que a Câmara Constitucional já ordenou diversas vezes ao Estado que forneça informações.
Esse cenário, disse Silesky, exige que a comunidade internacional apoie as organizações nacionais e a imprensa independente, bem como o jornalismo investigativo.
Ricaurte faz um apelo semelhante. Para ele, os cortes de financiamento internacional tiveram um impacto muito sério no jornalismo e em sua proteção. Um exemplo é a questão do exílio: a realocação temporária e a saída de um país são impossíveis sem esses recursos.
Mendoza disse que encontrar soluções também exige uma autorreflexão dentro da sociedade civil sobre sua conexão com as pessoas: o quão bem suas necessidades são ouvidas e a importância dos direitos humanos é comunicada.
"É importante nos perguntarmos se nossas sociedades estão entendendo o papel do jornalismo e das organizações na tomada de decisões informadas", disse Mendoza. "Se a sociedade não conhece seus direitos nem o trabalho dos meios de comunicação e das organizações, acredito que há uma ponte que está quebrada e devemos reconstruir".