Quando Míriam Leitão foi eleita para a Academia Brasileira de Letras, no final de abril, a emoção veio acompanhada de uma reflexão sobre o que isso significava para a representatividade do jornalismo na instituição. Uma das jornalistas mais respeitadas do país, com 53 anos de carreira, Leitão foi eleita para a Cadeira 7 da Academia, fundada pelo também jornalista Valentim Magalhães.
“O que mais me emocionou nessa vitória foi a quantidade de jornalistas que disseram para mim que somos nós na Academia”, disse Leitão à LatAm Journalism Review (LJR). “Eu não me coloquei como representante, mas é gostoso saber que os seus amigos acham que são parte desse coletivo. E é esse coletivo, de fato, né? Poderia ser outra pessoa, outro jornalista, e eu ficaria com esse mesmo sentimento de ser parte da vitória.”
A carreira de Leitão é marcada por momentos históricos do país. Presa e torturada aos 19 anos durante a Ditadura Militar, enquanto grávida, ela cobriu a redemocratização, a hiperinflação dos anos 1980 e 1990, o impeachment de Fernando Collor de Mello e de Dilma Rousseff. Também acompanhou de perto os principais planos econômicos brasileiros, a pandemia da Covid-19, o governo Jair Bolsonaro, a devastação da Amazônia e os recentes ataques contra a democracia do país.
No Grupo Globo há mais de três décadas, ela é colunista do jornal O Globo, comentarista do Bom Dia Brasil, CBN e GloboNews, onde também tem um programa de entrevistas. Além da carreira como jornalista, Leitão também tem 16 livros publicados, de diversos gêneros literários, como não ficção, romance e diversos infantis. "Tempos Extremos" (2014), seu único romance, que dialoga com os traumas da ditadura, está, segundo Leitão, cheio de informações que ela buscou nas reportagens que fez.
“Eu tenho dois amores: o jornalismo e os livros. Mas eles correm muito paralelos porque o meu jornalismo informou muito toda a minha literatura, tanto de ficção como de não ficção”, disse Leitão. “Então são duas paralelas que se encontram. Eu acho que esse é o momento fundamental do encontro.”
Como parte da série 5 perguntas, LJR conversou com Leitão sobre o significado de sua eleição para a ABL, os desafios do jornalismo contemporâneo, os ataques e as campanhas de desinformação direcionadas a jornalistas, inclusive a ela própria, e o papel da imprensa na defesa da democracia brasileira. A entrevista foi editada para maior concisão e clareza.
1- O que significa para você, como jornalista, ser eleita para a Academia Brasileira de Letras (ABL)?
O jornalismo é o grande eixo da minha vida. São 53 anos de jornalismo. E eu acho que o jornalismo faz literatura. A gente está o tempo todo produzindo textos, alguns de qualidade literária. E a gente está escrevendo o que depois os historiadores ou pessoas de outras áreas vão buscar, então tem que escrever no calor do acontecimento. Eu acho o jornalismo uma profissão poderosa para a construção dessa estrada. E sou uma jornalista raiz, aquela que gosta de ser repórter, gosta de ir para a rua, gosta de descobrir uma coisa nova, se espanta, se emociona. Quando vai fazer uma reportagem nova, tem medo de não conseguir ver, fazer direito. Eu tenho todas aquelas coisas do jornalista que está no começo da carreira. Nunca perdi esse élan.
E na Academia tem muitos jornalistas ao longo da sua história. Na minha cadeira, por exemplo, a cadeira 7, o fundador [Valentim Magalhães] também era jornalista. Mas logo o segundo vem a ser Euclides da Cunha, que fez aquela grande reportagem, que virou o grande livro [“Os Sertões”] em que estão expostas todas as nossas contradições. Eu amo livros, sempre quis ser escritora e eu não sonhei com a ABL, sonhei com os livros.
2- Por que considera importante que o jornalismo ocupe esse espaço na ABL agora, num momento de tantos ataques à imprensa?
Os ataques à imprensa sempre aconteceram e agora são mais violentos e mais sofisticados. Eu entrei na profissão com o jornalismo sob ataque, que era a Ditadura, a censura direta. Eu tive matéria tirada da minha máquina [de escrever]. Falaram: ‘Olha, chegou o censor e essa matéria não pode sair.’ Sempre foi uma profissão que você exerce criticado por um governo, por um grupo político, atacado por incompreensão. Então, nunca foi um caminho fácil.
E esse é um momento, de fato, de proteger o jornalismo em todas as instâncias. Aqueles ataques velhos continuam, mas tem novos ataques que são a mentira, a mentira deliberada, a mentira construída da forma mais sofisticada com a deep fake news. Atacando o jornalista e o que ele tem de mais precioso que é a credibilidade. E isso como um projeto político de destruir a credibilidade da imprensa para um projeto que afete a democracia, que ataque a democracia. Então, é preciso fortalecer o jornalismo de todas as formas porque ele é parte constitutiva desse valor que é a democracia brasileira.
3-Nesse contexto atual do jornalismo, com inteligência artificial e tecnologias que ainda estamos entendendo, o que é que mais te preocupa e o que que mais te anima?
O que me tranquiliza é que eu sei que amanhã, depois, em algum lugar, repórteres estão buscando informação da velha maneira, que é uma pessoa buscando uma história. E eu acho que isso vai continuar para sempre. Não há inteligência artificial que faça isso, que é você sair e ir a campo buscar a informação.
Agora a inteligência artificial é parte integrante do trabalho. É uma ferramenta como outra qualquer, como cada ferramenta que surgiu nesse período todo. Quando apareceu o fax, parecia uma coisa do outro mundo. Quando apareceu a internet, também. Eu vejo todas as mudanças como a natureza do jornalismo, que é viver em terreno instável, viver em mutação permanente. A mudança é a permanência no jornalismo, porque permanente é a mudança.
A gente está indo para esse novo terreno, então como é que a inteligência artificial pode nos ajudar a fazer o melhor jornalismo? E qual é o erro? A forma errada é pedir que a inteligência artificial faça a matéria para você. Vai dar errado.
A gente tem que entender a inteligência artificial como mais uma ferramenta muito sofisticada que aparece para nós, mas não para fazer o trabalho por nós. Porque o repórter vai ter sempre a sua importância na busca da história que precisa ser contada.
Eu nunca saí de uma reportagem igual eu entrei. Cada reportagem longa que eu fui fazer, uma reportagem que vai para a Amazônia, uma reportagem que vai para o interior do Brasil, que você tem que viajar, uma grande entrevista que você precisa se preparar… Eu sempre sai com mais informação do que eu tinha antes e isso que eu acho maravilhoso no jornalismo. Eu não quero ficar sentada na beira de um computador ensinando uma inteligência artificial com perguntas muito bem construídas para que ela me entregue uma resposta. Eu não quero desprezar essa ferramenta, quero que se acrescente essa ferramenta no nosso trabalho.
4 - Nos últimos anos, jornalistas têm sido alvo de campanhas de desinformação e violência, inclusive você. Como manter o equilíbrio emocional e a disposição para continuar escrevendo, continuar investigando e se expondo diante de um ambiente cada vez mais hostil?
Olha, a primeira coisa que eu quero dizer a todo mundo que me ataca é que eu não vou desistir. Ponto final. A segunda coisa é que, sinceramente, é difícil.
É difícil porque às vezes você está ocupado com uma matéria, ocupado com alguma coisa e de repente vem uma mentira muito grande e você tem que se mobilizar para apagar um incêndio. É como se você estivesse num lugar e de repente começasse um incêndio na sua frente. Você tem que apagar aquele incêndio, depois você vai continuar a fazer o que ia fazer. Você tem que mobilizar horas da sua vida para desmentir algo que você não fez. Eu já fui muito vítima disso, já fui muito atacada e sei que continuarei sendo.
A gente precisa melhorar toda a regulação para que as pessoas não sejam tão vulneráveis, não fiquem tão sozinhas. Nós temos que aprender a reagir coletivamente para nos proteger, proteger o nosso trabalho e não permitir que eles atinjam o objetivo deles. Que é tirar uma pessoa do seu trabalho, fazer uma pessoa desistir do que está apurando ou se censurar, fazer uma autocensura porque vai ter um outro ataque. Eu acho que isso é muito perigoso.
Tem um momento de desestabilização quando a coisa aparece do nada e eu já fui acusada das coisas mais terríveis. Eu ainda estou construindo uma forma melhor de reagir mais rápido. O que eu sei, e isso eu sei porque eu me conheço: eu não vou desistir.
5 - Na sua visão, que caminhos o jornalismo deve trilhar para continuar sendo relevante nos próximos anos?
A gente tem que continuar sabendo o que é a natureza do nosso trabalho. Nós somos o meio do caminho, nós somos o meio da conversa, nós somos a mídia. E a gente não vai ser substituído. Os profissionais do jornalismo e o jornalismo profissional sempre serão necessários.
Hoje, nesse mundo em que há muito mais oferta de informação, muito mais produtores de conteúdo de qualidades diferenciadas, nós, os profissionais da informação, somos mais importantes. Nesse mundo de produção em massa de mentiras, nós que sabemos checar, confirmar, verificar, mostrar que isso aqui é mentira, isso aqui é verdade, somos mais necessários. Eu acho que nós nunca fomos tão necessários quanto nesse momento dessa torre de Babel da informação. Porque nós somos os profissionais. É como se estivesse numa estrada com todo mundo dirigindo, mas existem os profissionais do volante. Então nós somos os profissionais desse volante.
E a gente tem que continuar ao mesmo tempo mantendo a humildade, porque a informação verdadeira, a checagem, ela é difícil de ser encontrada e nessa onda da mentira que se cria, fica mais difícil. Mas nós temos que apurar nossos instrumentos, persistir no nosso caminho, saber que somos necessários.
Para que nós somos necessários? Porque somos parte constitutiva do aparelho respiratório da sociedade. A gente é parte da democracia. A gente é parte da construção de uma sociedade melhor.