Os jornalistas mexicanos e as organizações de liberdade de expressão estão acostumados a dizer que o México é o país sem conflitos militares onde mais jornalistas são assassinados no mundo. Até agosto deste ano, pelo menos 15 trabalhadores da imprensa foram assassinados no México.
Mas para o jornalista Ricardo Raphael, essa afirmação não é totalmente correta e deve mudar. O México não está passando por uma guerra contra outro país, diz ele, mas enfrenta há anos o que o direito internacional chama de conflito armado interno: a presença de organizações armadas que disputam o controle do território com as forças armadas.
E enquanto as coisas não forem chamadas como são, não será possível tomar as medidas necessárias para, entre outras coisas, proteger os jornalistas e ativistas que estão sendo violentados como resultado deste conflito, ele acredita.
"Usamos subterfúgios como 'a guerra contra as drogas' ou 'a guerra entre organizações criminosas', como se fossem máfias ao estilo de Chicago nos Estados Unidos nos anos 1930", disse Raphael em entrevista à LatAm Journalism Review (LJR). "Mas quando você tem meio milhão de pessoas mobilizadas, aproximadamente 40% do território com a presença de alguma dessas organizações [...], estamos diante de um grave problema".
Ao chamar as coisas pelos nomes, disse o jornalista, será possível determinar mais claramente as regras do jogo em termos de, por exemplo, imposição de inteligência ou espionagem pelas autoridades à população civil, incluindo jornalistas que estão cobrindo esses eventos violentos.
Raphael, que é colunista de meios como Washington Post, Milenio Diario e do semanário mexicano Proceso, bem como apresentador de televisão nos canais ADN40 e Once TV, foi vítima de espionagem em seu celular com o spyware Pegasus, supostamente pelas Forças Armadas mexicanas, de acordo com a investigação "Ejército Espía" (“Exército Espião”), publicada em outubro deste ano.
"É necessário reformular a forma como abordamos o fenômeno para determinar quais são as garantias legais quando se trata de participar ali [na cobertura da violência] e, nesse sentido, determinar quais são os limites ou o alcance da capacidade das Forças Armadas de implantar seu próprio império armado. E é aí que eu acho que estamos com problemas muito sérios", disse Raphael.
No início de julho deste ano, o jornalista ficou chocado ao saber que uma conversa que manteve em particular há alguns anos com um funcionário do Judiciário Federal havia sido vazada anonimamente para as redes sociais.
Alguns dias antes, as suspeitas de que algo estava errado haviam sido levantadas em sua casa quando seu filho menor de idade recebeu uma mensagem de áudio através do WhatsApp na qual o nome do jornalista era mencionado de forma ameaçadora.
Somente em janeiro deste ano, foi revelado que os dispositivos de 30 jornalistas do meio de jornalismo investigativo El Faro, de El Salvador, haviam sido invadidos por meio de spyware. E em 2021, a investigação colaborativa transfronteiriça do Projeto Pegasus revelou que pelo menos 180 jornalistas de mais de 50 países – incluindo o México – estavam em uma lista de vítimas de vigilância ilegal através do programa de spyware Pegasus.
Raphael recorreu às organizações Artículo 19 e Red en Defensa de los Derechos Digitales (R3D), que têm apoiado as vítimas de espionagem. A R3D realizou uma análise forense do telefone celular do jornalista com apoio técnico e validação do Citizen Lab, um laboratório multidisciplinar da Universidade de Toronto especializado em segurança informática e direitos humanos.
A análise comprovou as suspeitas de Raphael. Seu dispositivo móvel havia sido infectado com o spyware Pegasus, desenvolvido pela empresa israelense NSO Group, em pelo menos quatro ocasiões entre 2019 e 2020, além de ter sido alvo de tentativas de infecção com o mesmo software em 2016. Pelo menos uma dessas tentativas resultou em uma persistente infecção por Pegasus, indicou o relatório do Citizen Lab.
R3D é uma das organizações autoras de "Ejército Espía", juntamente com Artículo 19 México e América Central e Social TIC. A investigação revelou casos de espionagem de Pegasus contra Rafael, o defensor dos direitos humanos Raymundo Ramos e um jornalista do meio nativo digital mexicano Animal Político, que optou por permanecer anônimo.
"Ejército Espía" mostra evidências de que estes casos de espionagem foram realizados durante a administração do atual presidente, Andrés Manuel López Obrador, e que a Secretaria da Defesa Nacional do México (Sedena) adquiriu um sistema de monitoramento remoto da empresa que vende de forma exclusiva o spyware Pegasus naquele país.
As conclusões da investigação contradizem as repetidas afirmações de López Obrador de que seu governo não continuaria as práticas de espionagem de jornalistas e opositores de seu predecessor.
"Ao chegar ao poder e repetidamente [López Obrador] disse que não iriam adquirir sistemas de espionagem, que não iriam espionar jornalistas ou defensores dos direitos humanos ou opositores", disse Luis Fernand García, diretor executivo da R3D, à LJR. “Entretanto, temos documentado que estes casos não são do passado, são do presente. São infecções que aconteceram entre 2019 e 2021 e que contradizem essa promessa de que não haveria espionagem”
Ao contrário dos casos de espionagem telefônica dos anos anteriores, onde a infecção era por meio de links enviados em mensagens SMS, os hacks documentados no "Ejército Espía" operavam de forma mais sofisticada e discreta, de acordo com o relatório do Citizen Lab.
Os ataques a Raphael, Ramos e ao jornalista do site Animal Politico entre 2019 e 2021 foram executados através de métodos chamados "explorações de clique zero", que não exigem que os usuários cliquem em nenhum link e simplesmente entram nos sistemas de dispositivos móveis e começam a operar sem dar nenhum sinal.
No entanto, a diferença mais preocupante com casos passados para os autores do "Ejército Espía" é que novas evidências sugerem que as autoridades militares mexicanas estão por trás dos ataques desvendados este ano. Os casos de espionagem com Pegasus no governo do ex-presidente Enrique Peña Nieto foram supostamente realizados por entidades civis de segurança, como a então Procuradoria Geral da República (PGR), o Centro de Investigação e Segurança Nacional (CISEN) e a Polícia Federal, de acordo com várias investigações.
A análise do "Ejército Espía" indicou que o trabalho das vítimas estava ligado à investigação de questões relacionadas às violações dos direitos humanos pelas Forças Armadas. No caso de Raphael, as invasões em seu telefone em outubro e novembro de 2019 coincidem com as datas de apresentação e promoção na mídia de seu livro "Hijo de la Guerra" (“Filho da Guerra”), um relato de não ficção sobre a criação do cartel Los Zetas. O livro faz a hipótese de que um grupo de ex-militares mexicanos de elite formou um grupo paramilitar que representou a origem da violência no México de hoje.
Além disso, o ataque de dezembro de 2020 foi registrado um dia após a publicação de um artigo que retoma uma coluna de Rafael sobre o caso do desaparecimento de 43 estudantes em 2014, no qual o Exército estava envolvido.
"Quase nenhuma outra agência de inteligência além das Forças Armadas estaria interessada em me espionar sobre este assunto", explicou Raphael. "Porque também sabemos que existem apenas três compradores deste programa [Pegasus] nessas datas: um são as Forças Armadas, o outro são as áreas de inteligência e o outro é a Procuradoria Geral da República. Então, por diferença lógica, isso me leva a dizer que foram as Forças Armadas que me espionaram".
"Ejército Espía" publicou documentos revelados como resultado do vazamento pelo grupo hacker Guacamaya, que revelou que a Sedena adquiriu um "serviço de monitoramento remoto de informações" da empresa representante do Grupo NSO no México, Comercializadora Antsua, em abril de 2019, apesar do fato de a Sedena ter negado repetidamente ligações com esta empresa.
As provas que ligam a Sedena aos casos de espionagem preocupam os jornalistas e as organizações de liberdade de expressão, dado o enorme poder que as Forças Armadas adquiriram durante a administração López Obrador. Não apenas consolidaram seu domínio nas tarefas de segurança pública, mas também nas tarefas de inteligência. Além disso, o presidente lhes concedeu poderes para controle aduaneiro e para construir obras públicas.
"Hoje, todos os órgãos de inteligência e segurança federal são chefiados por oficiais militares, e muitos dos que chefiam os órgãos locais de segurança pública também são oficiais militares. Hoje o diretor do Centro Nacional de Inteligência é militar, o diretor da Guarda Nacional é militar", disse García. "É um poder incomum, exacerbado e um medo bem fundamentado e até mesmo comprovado de que este poder não tem controle, não tem limites, nem mesmo o limite das ordens de seu comandante supremo [o presidente López Obrador]".
No caso específico de Raphael, há também provas de que as informações obtidas através da invasão informática foram compartilhadas com particulares. A conversa que foi vazada nas redes sociais em julho passado foi apresentada como prova pela ativista anti-sequestro Isabel Miranda de Wallace em uma denúncia na qual ela acusa Raphael de ter ligações com um grupo criminoso e de subornar o presidente do Supremo Tribunal de Justiça do México.
Miranda de Wallace é o objeto de uma investigação jornalística de Raphael que sugere que a ativista fabricou um ato criminoso.
"Não descartamos, até suspeitamos, que embora seja certamente apenas o Estado, neste caso as Forças Armadas, que têm licença para a operação da Pegasus [...], que podem estar compartilhando inteligência com atores privados ou mesmo fazendo investigações ou intervenções com a Pegasus 'sob demanda' de atores que podem corromper aqueles que têm acesso a esses sistemas para que possam espionar quem quiserem", disse García.
Quando Raphael descobriu que ele estava sendo espionado, colegas e diretores de meios para os quais ele trabalha o aconselharam a ficar calado, manter a discrição e considerar abandonar sua investigação sobre o caso da ativista Miranda de Wallace.
No entanto, o jornalista não só decidiu tornar pública a invasão e continuar com sua investigação, como também apresentou uma queixa na Procuradoria Geral da República, juntamente com as outras duas vítimas e com o apoio da R3D e da Artículo 19.
Embora as vítimas e as organizações tenham motivos para duvidar que a denúncia prosperará, como as investigações judiciais sobre a espionagem de jornalistas pela Pegasus em anos anteriores não produziram resultados, elas esperam que pelo menos seus casos exponham as autoridades responsáveis pela espionagem de jornalistas e ajudem a evitar novos casos.
"Não sei se a Procuradoria Geral vai investigar, não sei se isso vai acabar nas mãos de um juiz que vai avaliar o caso e eventualmente sentenciar, não sei. Aparecer publicamente favorece o princípio da não repetição e anima – espero – outros colegas que também estejam em circunstâncias semelhantes às minhas", disse Raphael, que foi à Procuradoria Geral em 27 de outubro para ratificar a denúncia.
"A razão [para apresentar a denúncia] é o princípio da não repetição e o conhecimento de que nós jornalistas o que temos para nos defender é o jornalismo, nem mesmo a justiça, em um país como o nosso", acrescentou ele.
Para os autores de "Ejército Espía", a revelação destes novos casos de espionagem de jornalistas teve um impacto principalmente político, ao derrubar a tese que foi utilizada pelo governo de López Obrador para promover a militarização do país, que alegou que o Exército atual não violava os direitos humanos como nas administrações anteriores.
"Esta investigação e outras revelações desmantelaram esta tese porque ou o presidente ordenou que eles espiassem estas pessoas, o que acredito que não seja o caso, ou melhor, é mais provável que as Forças Armadas, apesar das promessas e da ordem direta de seu suposto comandante supremo, desobedeçam às ordens e espiem. E o que é pior, o presidente parece ser incapaz de fazer algo a respeito", disse García.