A imprensa brasileira precisa fazer mais para criar redações diversas.
Esta foi a mensagem de João Moreira Salles, fundador da revista piauí, baseada no Rio de Janeiro, durante uma recente visita à Universidade do Texas em Austin.
Salles falou aos estudantes de jornalismo da Universidade sobre os principais desafios que a imprensa brasileira enfrenta atualmente, sendo o principal entre eles a falta de diversidade em termos de raça, economia, gênero, religião, geografia e propriedade da mídia.
"É importante estar ciente de que uma boa redação é uma redação diversificada. Consequentemente, sem uma redação diversificada será muito difícil montar uma boa redação. Uma redação homogênea será estreita no seu foco, nos seus interesses e na sua visão de mundo”, explicou Salles em uma entrevista ao Centro Knight. “Promover a diversidade é uma questão de justiça social, mas não só. Diz respeito também à capacidade que um veículo terá de produzir jornalismo de excelência. Sem uma redação de pessoas que expressem uma rica variedade de perspectivas e experiências de vida, será impossível.”
Salles e um grupo de jornalistas criaram a piauí há mais de 10 anos movidos pelo desejo de ver textos longos de não-ficção em bancas brasileiras.
"Era o que eu mais consumia como leitor. Lia desde muito jovem, mas nunca em português porque naquela altura ninguém mais praticava jornalismo narrativo no Brasil. Decidi reunir um grupo de jornalistas para testar a hipótese sobre se havia ou não lugar no Brasil para o tipo de reportagem que eu gostaria de publicar”, explicou Salles. “Eu queria ler uma revista como a piauí, e não conseguia encontrar nada parecido nas bancas. Eu não era o único a pensar assim. O grupo de jornalistas que me ajudou a criar a piauí também sentia isso, e por isso lançamos a revista em 2006."
Salles é um documentarista renomado e herdeiro de uma família de banqueiros no Brasil. Ele já tinha trabalhado com jornalistas na produção de seus documentários e lia a New Yorker e a London Review of Books, mas não encontrava esse tipo de material em português. Ele queria histórias longas escritas por jornalistas e respaldadas por apuração e edição consistentes.
E, então, piauí nasceu. Hoje, uma equipe de cerca de 20 pessoas trabalha para produzir a revista mensal conhecida por perfis políticos e reportagens aprofundadas, em vez de histórias quentes. Eles também apresentam obras literárias, poesia, ficção e quadrinhos. A capa ilustrada, muitas vezes um comentário ácido sobre eventos políticos recentes, tornou-se uma maneira de ilustrar as últimas notícias. É também um grande motor de vendas de banca de jornais.
Salles disse que a equipe é bastante diversificada em termos de idade e que a revista em si publica consistentemente histórias escritas por jovens jornalistas e repórteres. A equipe permanente inclui repórteres, editores, um departamento de arte e um checador. Salles ressalta que este último cargo está desaparecendo das redações brasileiras.
O nome da piauí é, por si só, um comentário sobre a falta de diversidade geográfica que Salles aponta como um dos problemas da imprensa brasileira. Piauí é um estado no nordeste do Brasil, amplamente desconhecido para os brasileiros que consomem notícias em grande parte concentrando-se nas três principais cidades do Brasil: Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro.
Os leitores podem comprar a revista nos confins do país, embora cerca de 40% deles estejam baseados na cidade de São Paulo, disse Salles. Outros 40% são do Estado de São Paulo e da cidade do Rio de Janeiro, enquanto o resto está espalhado pelo Brasil. Eles calculam cerca de 60 mil a 70 mil leitores mensais.
Em termos de esforços concretos para abordar questões de diversidade, Salles reconheceu que a piauí tem muito trabalho pela frente.
"Já fizemos muitas coisas boas, mas tenho de admitir que essa não é uma área na qual nos saímos bem. Nossa redação tem boa diversidade de gênero mas não é nada diversa em relação a raça.”
“No Brasil, o problema racial brasileiro te leva a questões de natureza socioeconômica. Isso significa que, em redações racialmente homogêneas, a tendência é ter repórteres, sejam eles homens ou mulheres, com origens sociais parecidas. Resulta disso pontos de vista bastante semelhantes sobre o mundo e sobre o próprio Brasil”, explicou. “É um problema, e não somos os únicos a enfrentá-lo. Afeta todas as redações no Brasil e não vejo ações ou políticas efetivas para mudar isso. É um problema que precisará ser enfrentado e torço para que a piauí lidere esse processo."
Lidar com este problema envolve o compromisso das organizações de notícias em treinar jornalistas enquanto eles estão nas universidades, sugeriu Salles.
Apesar das mudanças no sistema educacional, as lacunas na qualidade da educação muitas vezes colocam em desvantagem os estudantes que entram na universidade após estudarem em escolas públicas. Esses estudantes podem ter dificuldades, não conseguindo as habilidades profissionais necessárias para serem bem-sucedidos nas redações. Isso pode mudar se editores contratarem estagiários de comunidades diversas enquanto estiverem na universidade e treiná-los na redação com o objetivo de contratá-las após quatro anos de estudo.
Isso é algo que a piauí poderia fazer, disse Salles. Desde o início, a equipe estava preocupada em erguer e fortalecer a revista e negligenciou a criação de uma redação mais diversificada.
"Nossa revista é boa, no nível do melhor jornalismo que se pratica hoje no Brasil. Infelizmente, o melhor jornalismo praticado hoje no Brasil não enfrenta a questão da diversidade, e nós também não", explicou ele, lembrando que a questão da diversidade também vai além de raça e nível socioeconômico, e também inclui religião, geografia e propriedade da mídia.
Para a piauí, avançar também significa focar mais na publicação online.
"A revista foi criada por pessoas que ainda estavam muito apegadas ao papel, à revista como um objeto físico”, disse Salles. “Isso representa um desafio. No mundo digital, pode se tornar um defeito. Estamos corrigindo.
Ele disse que a publicação dará mais ênfase ao conteúdo digital sem negligenciar a revista física. Até o momento, o site tem sido mais um reflexo da revista impressa, com conteúdo original como o satírico e popular Piauí Herald e alguns artigos de opinião.
Mas a revista contratou uma equipe para escrever e produzir conteúdo exclusivamente para o site.
“Este é o ano em que a Piauí terá uma presença maior na rede”, disse Salles.
Os novos esforços incluem séries de podcasts sobre política, direitos das mulheres, trabalho e esporte; vídeos; e blogs.
A revista também se concentrará nas eleições de outubro de 2018 para Presidência, Congresso, governos estaduais e assembleias legislativas. A cobertura eleitoral será "central" no trabalho dos repórteres, de acordo com Salles.
Como Salles explicou, o Brasil está passando por um "período tumultuado". A ex-presidenta Dilma Rousseff foi destituída e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi condenado. A operação Lava Jato "destruiu o sistema político" pois "não existe um partido político que não tenha sido manchado pela corrupção", explicou Salles. "O cenário está posto para alguém que vem de fora das instâncias tradicionais da política."
“Teremos de nos concentrar nas eleições brasileiras, o fato mais importante deste ano. Esta é umas das nossas principais competências”, disse Salles. “Temos excelentes repórteres de política, um histórico sólido de perfis detalhados de políticos e lobistas, de reportagens sobre as máquinas eleitorais, sobre como tudo se articula e funciona."
Parte do trabalho da equipe online se concentrará nas operações online dos principais candidatos. As redes sociais, incluindo o uso de bots, é agora uma parte inexorável da cobertura política em todo o mundo.
“Esta poderá ser a primeira eleição brasileira em que a internet tem um impacto maior do que as emissoras de TV”, afirmou Salles.
A equipe da piauí usará sua tradição de apuração e edição rigorosas nos próximos meses para descobrir se a previsão de Salles está certa.