Em teoria, o objetivo da publicidade oficial é a divulgação de informações de relevância pública para a sociedade. A verba publicitária estatal serve para os governos “se comunicarem com a população e informarem através de comunicação social sobre os serviços que prestam e as políticas públicas que impulsionam”, como afirma a Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (Cidh).
Na prática, contudo, os fundos da publicidade oficial constituem um importante pilar da sustentabilidade financeira de muitos meios de comunicação na maioria dos países da América Latina. Sem marcos regulatórios a determinar como devem ser distribuídos e nem mecanismos de transparência para mostrar o destino dos fundos, os recursos acabam vulneráveis a interesses políticos, servindo como ferramenta de censura indireta e punindo o jornalismo independente.
Estas são algumas conclusões de um estudo publicado na semana passada pelo Observatório Latino-Americano de Regulação de Meios e Convergência (Observacom) com apoio do Programa para o Desenvolvimento das Comunicações da Unesco. O estudo, chamado “Publicidade Oficial, Meios e Liberdade de Expressão”, faz um diagnóstico das normativas vigentes relativas à publicidade oficial em 11 países da América Latina e do Caribe, assim como de sua implementação.
Jornalistas, acadêmicos e pesquisadores de organizações sociais em Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, El Salvador, México, Panamá, Peru e Uruguai analisaram a situação da publicidade oficial em cada país, sob a coordenação da pesquisadora uruguaia Jimena Torres e orientações do pesquisador argentino Santiago Marino. Juntos, buscavam responder perguntas como: há nos países alguma legislação específica regulando a publicidade estatal? Existem mecanismos pró-ativos de divulgação desses fundos? Quem pode recebê-los?
O diagnóstico é bem negativo. Poucos países têm regulamentação adequada, e, quando existe, ela não é cumprida de forma sistemática. Em países com mercados publicitários menores, a publicidade oficial se torna crucial para a sustentabilidade dos meios de comunicação, e é gerida sem transparência e com viés político.
"Dada a ausência de regulamentação e a lógica de gestão, a publicidade oficial é administrada com uma perspectiva de amigo-inimigo, utilizando critérios muito opacos em sua distribuição", afirmou à LatAm Journalism Review (LJR) Santiago Marino, o pesquisador-chefe. "Isso, por sua vez, condiciona tanto o funcionamento quanto a sustentabilidade dos meios de comunicação."
Entre os 11 países estudados, só Brasil, México e Peru têm leis específicas para determinar como a verba publicitária oficial deve ser designada. A mera existência de uma norma, no entanto, não garante transparência, justiça ou que a publicidade oficial fomente o pluralismo na comunicação em nenhum dos países.
O marco normativo brasileiro, de 2008, é o mais elogiado pelo estudo, e considerado “suficientemente claro”. Há uma diferenciação entre publicidade institucional e publicidade de interesse público e limites claros para a autopromoção de governantes e partidos políticos. Não há, no entanto, uma divulgação facilmente acessível do destino das receitas, que exigem métodos mais minuciosos para serem aferidas.
Além disso, a lei brasileira não impediu que o governo de Jair Bolsonaro (2019-2022) designasse fundos para sites que publicam notícias falsas. Ademais, os critérios de designação estão fortemente vinculados à audiência. “Este parâmetro constitui um problema para a promoção do pluralismo ao manter a transferência proporcional ao público, sem investir também em meios pequenos e independentes”, diz o relatório.
No caso do México, a Lei Geral de Comunicações Sociais, sancionada em 2018 e reformada em 2023, regula o tema. Todavia, segundo o estudo, a lei “mantém aberta a possibilidade do uso arbitrário da pauta publicitária governamental” por não estabelecer regras claras, e não teve surtiu efeitos positivos.
No Peru, mesmo com diversas leis vigentes sobre o tema, a falta de critérios na designação significa que as entidades públicas distribuem os recursos a seu bel prazer. “Os meios independentes, que em sua maioria têm posições críticas em relação aos governos de turno, precisam buscar outras fontes de financiamento, já que suas próprias posturas os tornam alvo de resistência na contratação de publicidade oficial”, diz o estudo.
Esta vulnerabilidade a interesses políticos é a regra geral dos países estudados."Em geral, tivemos dificuldade em encontrar boas práticas”, disse Jimena Torres, a coordenadora do estudo, à LJR. “Em muitos casos, acabamos dizendo ‘não há boas práticas nesse país’.
Na Argentina, há um marco regulatório parcial, relativo ao Poder Executivo federal, mas não aos outros poderes. O estudo constata haver no país uma “grande discricionariedade na distribuição”, que “se manifesta nas verbas investidas por empresas públicas e outros órgãos que não dependem diretamente do Governo nacional”.
Também há na Argentina uma “distribuição baseada na lógica de prêmios e castigos a meios ou grupos de comunicação, de acordo com sua linha editorial”. Como resultado dessa prática, nos últimos anos surgiram diversas empresas do setor que se sustentaram quase exclusivamente com fundos públicos, diz o estudo.
No caso da Colômbia, não há norma específica a versar sobre o tema. Como resultado, os multimilionários contratos de publicidade oficial são distribuídos virtualmente sem controle. “Há anos é evidente que foram utilizados reiteradamente para pressionar linhas editoriais ou instalar certas narrativas”, diz o estudo.
Marino considera o caso de El Salvador, onde o governo de Nayib Bukele toma medidas autoritárias e persegue jornalistas, especialmente grave. “Não há norma alguma, nada que enquadre esta ação em um enfoque de pluralismo informativo”, diz o relatório. “O governo tem implementado estratégias para debilitar o ecossistema de meios de comunicação, que incluem a criação de seus próprios meios de comunicação e o redirecionamento de gastos em publicidade oficial para um jornal impresso estatal e para um noticiário oficial”.
Outro problema que o estudo várias vezes identifica é a concentração dos recursos em capitais e regiões metropolitanas, deixando meios de comunicação regionais ou locais em desvantagem.
"Vivemos em sistemas midiáticos onde, muitas vezes, a produção de notícias e o dinheiro estão concentrados nas grandes cidades", disse Jimena Torres. "Dou um exemplo do meu país, um departamento do Uruguai chamado Cerro Largo. Os meios de comunicação locais, seu principal anunciante é a Prefeitura. Então, isso faz com que, de maneira geral, não haja nenhuma notícia ou pouquíssimas que questionem, por exemplo, o que faz a Prefeitura de Cerro Largo".
A ausência de verbas publicitárias para meios não comerciais também é um problema, disse Santiago Marino. Veículos sem fins lucrativos são frequentemente excluídos da publicidade oficial, o que prejudica a sua sustentabilidade e reduz a pluralidade de vozes.
O estudo encerra com 15 recomendações para implementação. Entre elas, há a necessidade de leis “leis específicas, claras e inequívocas” que regulam o tema a todos os níveis do Estado. A designação da publicidade deve se dar via de regra mediante processos competitivos, com a contratação direta sendo exceção. A publicidade não pode servir de propaganda de partidos, e a transparência deve alcançar todos os atores envolvidos na distribuição de verbas.
Além disso, o Estado deve implementar ou promover a realização de medições de audiência, que incluam os diferentes tipos de meios de comunicação e que sejam realizadas com critérios objetivos e confiáveis. Essas medições devem incluir dados de meios pequenos, comunitários e locais, para garantir sua que recebam recursos da publicidade oficial.
Finalmente, são necessárias outras políticas públicas para o apoio ao jornalismo, diz o estudo.,
“Por exemplo, por meio de fundos públicos distribuídos de maneira transparente e não discriminatória, separados dos gastos com publicidade oficial”, conclui o estudo. “Esses recursos não devem ser usados para influenciar ou condicionar a linha editorial desses meios".