Por Florencia Pagola*
Elizabeth Salazar e Carla Díaz são jornalistas peruanas especializadas em cobrir questões de gênero e direitos humanos. Após um projeto jornalístico que analisou a representação da comunidade LGBTI+ na mídia peruana nos últimos anos, elas se questionaram sobre o tratamento dado por juízes aos processos de mudança de sexo e nome nos documentos de identidade de pessoas trans. Essa reflexão resultou na reportagem "Identidades negadas", publicada pela Agencia Presentes com o apoio da Embaixada do Canadá no Peru, que examinou os discursos violentos e discriminatórios presentes em 208 sentenças relacionadas a esses casos envolvendo pessoas trans na última década.
No Peru, ao contrário de outros países da região, não existe uma lei de identidade de gênero. Portanto, para que uma pessoa trans altere seus dados de identidade, é necessário recorrer ao sistema judicial. Esse processo envolve exames físicos e morais realizados por juízes e promotores do Registro Nacional de Identificação e Estado Civil (Reniec), conforme detalhado na reportagem.
As jornalistas se perguntaram quantas pessoas trans tentaram ou conseguiram acessar esse direito no Peru e o que acontece quando seus casos chegam ao Judiciário. “Vimos que não havia uma análise aprofundada, percebemos que o que sabíamos não eram eventos isolados, mas sistemáticos”, dizem as autoras em entrevista à Latam Journalism Review (LJR).
“Partimos da hipótese de que havia elementos discriminatórios e violentos nas sentenças”, explica Salazar. Para o provar, “tínhamos os planos A, B e C; e muita tentativa e erro”. Com o objetivo de obter as sentenças por mudança de sexo e nome dos últimos dez anos, fizeram pedidos de acesso a informações públicas. Mas como o registro estatístico oficial não inclui a categoria de gênero – só identifica os demandantes pelo nome que lhes foi atribuído ao nascer –, não foi possível obter o que elas procuravam dessa maneira.
O plano B foi então abordar advogados que acompanham os processos de mudança de nome e sexo nos documentos de identidade de pessoas trans. “Conseguimos dez advogados que nos disseram que ninguém havia conseguido expor esses casos. Para eles, até agora eram apenas casos isolados. Mas com uma amostra de dez não conseguiríamos fazer o projeto”, explica Salazar.
Por fim, o plano C foi “ir até a base de jornalismo de dados baixar as informações. Qualquer mudança de nome é anunciada por edital no Diário Oficial. Baixamos todos os editais que tiveram alteração de nome solicitada por um cidadão peruano. Encontramos mais de 1.800 resultados, algo enorme. Passamos por um filtro para desqualificar pessoas que não eram LGBTI+”, continua Salazar. “Então tivemos que revisar manualmente para descobrir se eram pessoas trans. Com esse filtro chegamos a um grupo menor, mas tivemos que entrar no buscador do Judiciário para comprovar um a um que eram mesmo pessoas trans”. Foi assim que chegaram às 208 sentenças de primeira e segunda instância em tribunais e câmaras civis que analisaram para a reportagem. Este período de pesquisa levou dois meses e meio.
Para trabalhar com o material, “desenvolvemos uma matriz de análise do discurso. Analisamos as sentenças e os autos de audiência em que havia elementos vulneráveis contra a vida das pessoas trans”, diz Díaz. Ela acrescenta que, para a análise, se basearam em padrões internacionais de direitos humanos, como o Parecer Consultivo 24/17 da Corte Interamericana de Direitos Humanos que trata do direito à igualdade das pessoas LGBTI+. Esta decisão coloca especial ênfase em como o reconhecimento da identidade e expressão de gênero das pessoas deve ser respeitado.
As autoras afirmaram na reportagem que “85% (176) das 208 sentenças analisadas apresentam um padrão de argumentos que ferem os direitos das pessoas trans, ao exigir requisitos estigmatizantes ou ignorar o marco legal e o conceito de identidade de gênero”. Esse tratamento foi detectado inclusive nas ações julgadas procedentes, que representam 83% do total analisado. Em seguida, elas agrupam os argumentos discriminatórios contra pessoas trans que são mais usados em sentenças em cinco tipos. São eles: aceitar ou exigir de pessoas trans evidências de cirurgias corporais ou tratamentos hormonais; patologização (permitindo que laudos psicológicos e psiquiátricos sejam apresentados como prova); comentários ou discursos que perpetuem estereótipos de gênero e discriminação; a rejeição do quadro legal que permite o reconhecimento do nome e identidade de gênero; e ignorar o conceito de identidade de gênero.
Na hora de contar histórias com uma perspectiva de direitos humanos, os jornalistas se depararam com o desafio de como expor as informações e a análise dos discursos sem revitimizar ou expor novamente as vítimas. “O principal desafio é como contá-lo sem soar como um filme de terror”, explica Salazar. Por isso, uma das opções foi acompanhar o artigo com ilustrações, e não com fotografias, o que as autoras consideram implicar em revitimização.
Outra das lições que as jornalistas transmitem é a de “quebrar o olhar paternalista que a mídia tem em relação às pessoas LGBTI+”. De certa forma, Salazar acrescenta: “As pessoas LGBTI+ têm voz, autoridade e uma vida além do estereótipo da mídia. As pessoas trans querem mudar o nome de seus documentos por motivos muito particulares, muitas trabalham em ambiente de escritório, ou estudam em uma universidade e não querem ser assediadas. É preciso contar a vida das pessoas LGBTI+ como contamos a de qualquer outra pessoa”.
Por sua vez, Díaz enfatiza que “ao trabalhar com populações vulneráveis, é importante proteger a identidade das pessoas e dos casos”. Para explicar melhor, ela dá um exemplo: “Tem juízes que são aliados, que processam os pedidos de mudança de sexo. Os advogados já sabem a que tribunais recorrer para pedir mudanças de nome e sexo. Sabemos quais são os locais onde mais casos são aprovados, mas não mencionamos. Tivemos que abrir mão disso porque existe um histórico de que, quando essa informação é tornada visível, o Reniec denuncia ou move ações contra esses juízes e advogados”.
Para Díaz, é muito importante entender que “no jornalismo de direitos humanos estamos fazendo algo por uma razão. Precisamos pensar sobre como abordamos esses problemas. O foco desde o início não foi expor as populações LGBTI+, mas sim aqueles que as violentam. Nem tudo é válido."
Outro dos desafios que as jornalistas destacam é cuidar de sua saúde mental, aspecto que não previram em sua investigação. “Houve momentos em que lia o que a Carla estava a processar, tantas frases e com argumentos tão fortes, que tive de fechar o computador porque me dava náuseas”, diz Salazar. “Subestimamos o cuidado com nossa saúde mental. Nós duas já tínhamos trabalhado com a questão de gênero, mas esse caso era diferente porque eram argumentos de autoridade, sentenças firmes. Algo sistemático e massivo. Mas devido aos prazos de fechamento, não deu tempo de processar, e não programamos. As autoras concordam que, para futuras pesquisas, estabelecerão espaços de conversa para o cuidado em saúde mental.
*Florencia Pagola é uma jornalista independente do Uruguai. Ela escreve sobre direitos humanos e liberdade de imprensa na América Latina.