O projeto colaborativo Inumeráveis se resume em uma frase: "Não há quem goste de ser número, gente merece existir em prosa". O memorial virtual tem o objetivo de contar as histórias por trás dos números da Covid-19 no Brasil, com perfis escritos por voluntários sobre as vítimas.
"A gente acorda todo dia com um número novo, hoje morreram 120, outro dia 300, 400. Depois de um tempo você vai se desconectando do significado desse número, você se desconecta da vida que cada número representa. O Inumeráveis nasceu para conectar a sociedade com o valor dessas vidas", explica um dos idealizadores do projeto, o artista Edson Pavoni, em áudio encaminhado ao Centro Knight. Segundo o último balanço do Ministério da Saúde, divulgado em 12 de maio, foram 881 novas mortes por coronavírus registradas em um dia, chegando a um total de 12.400 no país.
Mais do que uma homenagem aos que morreram, o projeto é uma forma de confortar os parentes e amigos das vítimas, que têm a chance de contar histórias de pessoas comuns, não comumente retratadas em textos de jornais. Além disso, esse exercício de humanização é importante para todos, afirmou o empreendedor social Rogério Oliveira, em áudio encaminhado ao Centro Knight.
"O segundo [motivo do projeto] é para nós, que ainda não somos vítimas. Para garantir a nossa humanidade, garantir que a gente ainda consegue se sensibilizar com cada vida perdida, não transformando tudo isso em uma massa, repetida e contada diariamente de forma fria", diz. Os idealizadores planejam, no futuro, transformar o memorial em uma instalação artística, em espaço aberto para visitação pública.
O Inumeráveis foi criado por Pavoni e Oliveira, com a ajuda da jornalista Alana Rizzo, e foi ao ar em 30 de abril. Por princípio e por coerência com a sua linha editorial, o grupo não divulga nenhuma espécie de número: nem quantos perfis já foram feitos, nem quantas pessoas estão na equipe. Uma rápida pesquisa no site, entretanto, mostra que são ao menos 500 perfis de vítimas publicados e pouco mais de 30 voluntários, em cerca de duas semanas, o que dá uma dimensão do esforço do grupo e do rápido crescimento da iniciativa.
"Eu não durmo há vários dias", comenta, com bom humor, Rizzo, coordenadora de jornalismo do projeto. "Dentre os voluntários que estão contando e escrevendo as histórias, tem pessoas de várias áreas, mas a maioria é jornalista, estudante de jornalismo ou escritor", conta ela, em entrevista ao Centro Knight.
Desde que foi lançado, o projeto gerou grande repercussão, com diversas matérias publicadas na imprensa brasileira. E se tornou a inspiração para a capa de domingo de um dos maiores jornais do país, bem como uma homenagem no Fantástico, programa de jornalismo da TV Globo.
A capa do jornal O Globo, do último domingo, 10 de maio, foi uma parceria com o Inumeráveis. A primeira página inteira foi coberta com os nomes das vítimas retratadas pelo projeto, seguidos de uma frase marcante sobre cada pessoa. A manchete dizia: "10 mil histórias. Evento mais letal no Brasil em 102 anos, pandemia de Covid-19 chegou ontem oficialmente a 10.627 mortes. Para que a dimensão humana da tragédia não se perca na frieza das estatísticas, O Globo homenageia as vidas reunidas em um memorial virtual".
O diretor de redação, Alan Gripp, conta que já vinha sentindo a necessidade de mostrar mais histórias humanas, quando conheceu o projeto. "A gente percebe que os números vão ficando tão dramáticos que as mortes se banalizam. E eu fiquei pensando o que a gente poderia fazer com aquilo [ o Inumeráveis] e me ocorreu graficamente, no meio de uma reunião, que isso podia dar uma primeira página, que funcionasse como um editorial gráfico", disse ele, em entrevista ao Centro Knight.
Segundo Gripp, o jornal já havia publicado histórias de vítimas em longas reportagens, mas ele estava buscando algo que tivesse impacto editorial, "uma mensagem poderosa". "Acho que estava faltando algo mais comovente, com uma cara de homenagem, que pudesse realmente chamar atenção, porque às vezes não é só contar histórias [nas reportagens], mas causar essa comoção que a capa causou", disse.
Quando teve a ideia da primeira página, Gripp entrou em contato com Rizzo, que já conhecia, para combinar a colaboração. Em seguida, a equipe gráfica do Globo começou a trabalhar em algumas possibilidades. Primeiro, fizeram um teste apenas com os nomes enfileirados, mas entenderam que era preciso ter um pequeno resumo da história.
"E foi isso que emocionou muita gente. As pessoas relataram que ficaram horas ali lendo as histórias de todo mundo. Muito por mérito do projeto, mas a saída gráfica que a gente encontrou ajudou. Quando a gente fez a primeira prova, a gente olhou e pensou: meu Deus, é isso", diz Gripp.
O diretor de redação sabia que a capa teria repercussão, mas não imaginava que fosse tão grande. Segundo Gripp, desde a publicação, ele recebeu centenas de mensagens e deu entrevista a veículos, de outros países, que publicaram matérias sobre a capa.
O retorno dos leitores também foi muito positivo, afirma Gripp. Muitos mandaram cartas ao jornal e comentaram nas redes sociais. Familiares das vítimas retratadas também enviaram mensagens de agradecimento. "Foi muito emocionante a repercussão".
Gripp ficou surpreso com as palavras que as pessoas usaram para caracterizar a primeira página. Ele esperava que os leitores dissessem que a homenagem tinha sido "bonita", "tocante", mas muitos escreveram que ela tinha sido "necessária". "Eu vi que de fato ela atingiu o objetivo", afirma.
Também no domingo, o Fantástico exibiu uma homenagem em parceria com o Inumeráveis. Atores famosos da TV Globo leram e interpretaram alguns dos perfis retratados pelo projeto.
Após a capa e a matéria no Fantástico, o projeto ficou mais conhecido, e a demanda de pessoas que querem contar histórias de vítimas aumentou. Por isso, Rizzo diz que estão buscando mais voluntários em todo o país, principalmente em comunidades, periferias e no interior. Eles precisam ainda de repórteres dispostos a apurar e encontrar histórias novas. Para participar, basta entrar no site e seguir as instruções. Jornalistas que escreveram perfis para seus veículos também podem cadastrar os textos no projeto, com o crédito do meio de comunicação onde foram originalmente publicados.
Rizzo conta que há atualmente três equipes de jornalismo no projeto, com várias funções. "Tem jornalista que está só subindo os textos, tem equipe de pesquisa e checagem, tem jornalista que busca novas histórias. Tem uma que é só de revisores, e outra de redatores, que pega os áudios e formulários que chegam dos familiares e transforma em texto", conta.
Na maioria das vezes, os interessados não preenchem o formulário completo e deixam informações importantes de fora. Por isso, os jornalistas precisam telefonar para os familiares e amigos da vítima para apurar o que ficou faltando.
Ao mesmo tempo, Rizzo tem entrado em contato com universidades, para mobilizar estudantes de jornalismo que queiram participar. "Fiz no sábado um webinar com os estudantes da PUC-SP de jornalismo, foi super legal", afirma ela. "Foi uma espécie de treinamento sobre como localizar histórias, o processo de apuração, a sensibilidade para lidar com as pessoas e como você se protege, porque é um assunto difícil."