Por Louise Rodrigues*
Liberdade de expressão e preservação da memória: as principais propostas das biografias históricas estão sendo ameaçadas pela lei. É o que afirmam os escritores Mário Magalhães e Audálio Dantas, que falaram sobre os desafios de escrever uma biografia não autorizada na manhã de segunda (14), no Congresso Global de Jornalismo Investigativo.
Para Audálio -- autor do livro que conta a história do jornalista Vlado Herzog --, o pagamento de 10% sobre o valor das vendas para biografados ou familiares e empresários é "uma ação contra a liberdade de expressão". Para escrever As duas guerras de Vlado Herzog, o jornalista foi procurar informações sobre a vida de seu personagem no Arquivo Nacional.
"Eu tinha em mãos a autorização da família para ver os documentos, mas me disseram que eu precisava apresentar o atestado de óbito. Eu me recusei a entregar um documento falso. Herzog não me matou. Ele foi morto e torturado", disse. Enfim, Audálio procurou o Ministro da Justiça e conseguiu a autorização. O escritor contou também as dificuldades que enfrentou para encontrar informações dentro do próprio Arquivo.
"Muitos documentos estavam escondidos e muitos outros ainda estão. Entre maio e dezembro de 1975, praticamente não existem documentos sobre Vlado, apenas algumas reportagens pobres e documentos manipulados sobre o suicídio", relembou.
Audálio disse ainda que a maioria dos documentos a que teve acesso eram falsificados. "A ditadura continua presente em várias instâncias da República Democrática do Brasil", concluiu.
Autor da biografia de Marighella, Mário Magalhães considera "muito graves" as condições que a legislação oferece para a publicação de obras biográficas sobre figuras públicas.
O escritor foi enfático ao dizer que "Marighella teve uma vida de tirar o fôlego e eu tinha que tirar o fôlego do meu leitor. Para isso, eu recebi autorização da mulher e do filho dele". A boa vontade da esposa, no entanto, é caso raro. "Nem sempre é assim, mas a família de Marighella sabe que a história dele não pertence à sua mulher, ao seu filho ou a mim. Pertence ao Brasil".
De acordo com a legislação brasileira, não se pode escrever uma biografia que atinja a moral e boa fama de pessoas pública. "O Estado não pode proibir alguém de contar a história de uma pessoa pública, com projeção pública", opinou Mário. "Tem guerrilheiras que enfrentaram a família e foram para as ruas lutar. Hoje, a família, com respaldo da lei, não autoriza que se escreva sobre essas mulheres. É esse tipo de riqueza que se perde", ilustrou.
Mário relembrou também o caso do pedreiro Amarildo de Souza, desaparecido há três meses, quando foi levado por policiais até a Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da Rocinha para averiguação. Mais de 20 PMs que serviam na base daquela UPP estão sendo investigados sob suspeita de tortura, assassinato e ocultação de cadáver.
A reflexão de Mário reforça sua opinião sobre as falhas na lei: "Hoje faz três meses do desaparecimento do Amarildo. O major Edson Santos, da Rocinha, é suspeito, junto com outros policiais, de torturar, matar e ocultar o cadáver daquele pobre diabo. O major Edson é uma figura pública, mas, de acordo com a lei, você só pode escrever uma biografia sobre ele se ele autorizar e, ainda assim, nas instâncias que ele quiser. É o moralismo retórico".
O trabalho de escrever uma biografia é extenso e pode durar anos. Para conseguir concluir seu livro, Mário se afastou do dia a dia da redação. Ao ser perguntado sobre as ferramentas básicas para ser um bom jornalista investigativo, ele é rápido: "É preciso saber contar história. Jornalistas, não menosprezem o talento de saber contar uma boa história". --- A jornalista Eliane Brum* assistiu à discussão de Mário e Audálio e respondeu a três perguntas sobre a importância de se contar histórias. Leia aqui a entrevista.
*Louise Rodrigues é aluna de jornalismo do 4° ano na Escola de Comunicação da UFRJ.
Esta matéria foi publicada originalmente no site oficial da Conferência Global de Jornalismo Investigativo.
Nota do editor: Essa história foi publicada originalmente no blog de jornalismo nas Américas do Centro Knight, o predecessor do LatAm Journalism Review.