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Liberdade de imprensa no Brasil: dois jornalistas falam sobre a intimidação que sofreram ao cobrir os resultados das eleições

Jornalista de camisa azul e gorro fica ao lado de tripé e câmera, apagando imagens, enquanto manifestantes assistem em bloqueio de estrada no Brasil

Jornalista Issac Risco apaga imagens após ser intimidado por manifestantes. (Crédito da foto: Marcos Bohler)

Após o triunfo de Luiz Inácio Lula da Silva, presidente eleito do Brasil, as manifestações antidemocráticas aumentaram desde o início de novembro em pelo menos 20 cidades brasileiras mais o Distrito Federal (Brasília). Os manifestantes pedem uma intervenção federal e a revisão dos resultados das urnas sob o argumento de suposta fraude eleitoral.

Desde 1º de novembro, manifestações de apoiadores de Bolsonaro foram organizadas em torno de bloqueios de estradas nacionais e interestaduais com caminhões e tratores. Os protestos ocuparam o horário nobre dos telejornais e da imprensa brasileira em geral. Jornalistas que cobriam os eventos foram agredidos e intimidados enquanto trabalhavam. Segundo relatório divulgado pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), mais de 37 profissionais da imprensa receberam ameaças e agressões físicas. 

A LatAm Journalism Review (LJR) entrevistou dois jornalistas da área: o peruano Isaac Risco, da Deutsche Welle, de Berlim, e ex-correspondente da Agência Alemã de Imprensa (dpa) na América Latina; e o brasileiro André Felipe Silva Mendonça, da Rede Amazônica de Televisão, afiliada do Grupo Globo no estado de Rondônia, norte do Brasil. Ambos sofreram intimidações e contaram a LJR sobre suas experiências no campo. 

No estado do Paraná, no sul do Brasil, Bolsonaro venceu por mais de 62% dos votos no segundo turno. Como resultado, 85 pontos de estradas foram obstruídos ilegalmente em protesto contra os resultados das eleições. Os pronunciamentos contrários aos poderes Legislativo e Judiciário feitos pelo atual presidente Jair Bolsonaro (no cargo até 1º de janeiro de 2023) têm consequências diretas para o jornalismo brasileiro.

Isaac Risco não estava planejando cobrir os bloqueios de estradas. Ele os encontrou na estrada, a caminho de entrevistar imigrantes e refugiados ucranianos que chegavam às cidades de Prudentópolis, Guarapuava e Curitiba, no Paraná. "Estamos tendo problemas para chegar lá por causa dos bloqueios", alertou seu colega de trabalho.

LJR: Qual era o clima do protesto quando você chegou às estradas bloqueadas?

Isaac Risco: Na estrada, conseguimos fazer um desvio e evitar o primeiro bloqueio. Quando chegamos à segunda, na entrada da cidade de Prudentópolis, havia dois tratores de grande porte com apoiadores de Bolsonaro. A atmosfera lembrava uma espécie de festa popular. Havia crianças, idosos e mulheres. Tinha o ar de uma feira da cidade. Parecia pacífico. Enquanto esperávamos que eles abrissem a estrada, decidimos fazer algumas perguntas às pessoas. Começamos a gravar. Os entrevistados nos disseram acreditar que houve fraude eleitoral e pediram aos militares uma avaliação das eleições. Entre os presentes, uma pessoa circulava com um microfone e pedia assinaturas para levar ao quartel local do Exército.

[Em pouco tempo, os tratores se afastariam e deixariam os veículos circularem por alguns minutos e depois fechariam a estrada novamente para continuar o protesto. Enquanto isso, Isaac e seu colega continuaram entrevistando.]

LJR: Qual foi a abordagem do grupo que o intimidou durante a reportagem?

IR: Quando terminamos de gravar, veio um grupo liderado por um homem loiro. Ele me perguntou se a entrevista era ao vivo. Eu disse que não, estava gravado. “Ah, se não for ao vivo, não dá para ficar”, disse ele. À medida que mais pessoas se aproximavam e circulavam ao nosso redor, aquele que parecia ser o porta-voz enfatizou que sabia sobre a manipulação e edição das imagens. Sem responder, decidimos sair. Nesse ponto, os manifestantes agressivos pesquisaram na internet artigos da Deutsche Welle. Um deles disse: "Eles (Deutsche Welle) falam bem de Lula". Então eles se tornaram mais agressivos. Aquele que havia me intimidado voltou e me disse para deletar tudo. Eles se aproximaram até verificarem na telinha do meu tripé de câmera que eu tinha feito tudo. E, quando terminei, mandaram eu esvaziar a lixeira também.

LJR: Você tinha um protocolo e medidas de segurança em vigor?

IR: Sim, mas não havia tempo para nada. Um dos manifestantes começou a acalmar outros que eram ainda mais agressivos e queriam vir para cima de nós. Dois deles nos seguiram até o carro e garantiram que partíssemos. Em relação à segurança, uma coisa me chamou a atenção: um pouco mais adiante, estava a Polícia Militar. Nós os vimos. E enquanto apagava as imagens, olhei ao longe e me perguntei por que a polícia não encerrou o bloqueio de uma vez. E pensei que, se as coisas ficassem mais tensas, poderia recorrer à polícia. Então liguei para a delegacia para contar o que havia acontecido. Eu dei a eles uma conta passo a passo e tuitei da minha conta. Meu chefe e outra pessoa da redação me ligaram e juntos avaliamos que tinha sido um incidente isolado. Foi quando decidimos seguir com o plano original de escrever sobre os ucranianos na região.

Para a Deutsche Welle, as eleições no Brasil foram consideradas um cenário tenso. Nos preparamos com os devidos protocolos, inclusive não dirigir sozinho na noite da eleição, usar capacete e óculos especiais. Também fiz um curso de segurança para jornalistas em zonas de conflito há algum tempo.

Dois tratores se enfrentam em uma estrada bloqueada no Brasil como forma de protesto

Bloqueios de estradas no estado do Paraná, Brasil. (Crédito da foto: Isaac Risco)

LJR: Que diferenças de clima você percebeu entre o sul e outras regiões do Brasil nessas eleições?

IR: No sul parece-me que agora está tudo mais radicalizado. Fiquei bastante surpreso com o nível de extremismo das pessoas que estavam no protesto, em clima de festa de uma cidade do interior. Também é surpreendente que eles estivessem literalmente reproduzindo uma série de notícias falsas. Parecem pessoas de classe média que não acreditam na mídia oficial e acreditam no perigo do comunismo tomar o poder, o que não vai acontecer no Brasil. É impressionante o grau de penetração desse discurso radical baseado em fake news. No sul, pude ver mais apoio a Bolsonaro, o que foi evidenciado pelos bloqueios de estradas. Em São Paulo já não via tanta presença da bandeira nacional, que se identificava com o partido do presidente nessas eleições.

LJR: Que diferenças de ambiente e ataques a jornalistas você percebeu entre as eleições de 2018 e 2022?

IR: Lembro que em 2018, quando cobri as eleições que o Bolsonaro ganhou, o ambiente também era muito agressivo. Estive em passeatas pró Bolsonaro na periferia do Rio de Janeiro e em frente à casa de Bolsonaro na Barra da Tijuca, onde as pessoas eram bastante extremistas, vestindo jaquetas pretas, com bandeiras e símbolos patrióticos dos quais se apropriaram até hoje.

Intimidações de Sul a Norte do Brasil

André Felipe é um jornalista brasileiro da Rede Amazônica (grupo Globo) na cidade de Porto Velho, capital de Rondônia, norte do Brasil. Em 4 de novembro, ele foi intimidado por manifestantes de extrema direita. Os manifestantes expulsaram André e o cinegrafista Ruan Gabriel Nascimento do local, correndo e batendo na porta do carro da delegacia.

Em Rondônia, a direita também ganhou. Bolsonaro obteve 69% dos votos. Marcos Rocha (União Brasil) venceu a eleição para governador com 52,47%. Seu adversário, Marcos Rogério (Partido Liberal), também alinhado aos princípios bolsonaristas, obteve 47,53%. Os tumultos nas ruas durante a primeira semana de novembro questionaram os resultados eleitorais para a presidência do Brasil. Eles fecharam a via expressa de Belmont - localizada às margens do rio Madeira, afluente do Amazonas - impossibilitando a circulação de cargas pesadas de grãos que chegavam e eram distribuídas para outras partes do país, como Manaus ou Pará. A pauta de André Felipe era mostrar o bloqueio de uma das rodovias mais importantes para a atividade agrícola do estado.

LJR: Que tipo de agressão sofreram e como se protegeram?

André Felipe: Sabíamos do perigo, então fizemos uma abordagem muito cuidadosa, estávamos a 300 metros do bloqueio. Mas um grupo de homens se formou e nos identificou pelo logo da emissora. Eles se aproximaram de nós com a intenção de nos atacar. Eles até disseram que se não fôssemos embora, eles iam nos matar. Tive a sorte de estar perto de um ônibus parado por causa do bloqueio e o motorista me viu e me disse "entra aqui pra se esconder". Entrei, me escondi e de lá pude filmar um pouco mais do grupo atacando meus colegas. Fiquei escondido por muito tempo até conseguir sair e encontrar o cinegrafista. Tudo aconteceu muito rápido e não conseguimos reagir bem. Esperávamos o pior. Felizmente consegui me esconder e meu colega conseguiu entrar rapidamente no carro e fugir.

LJR: O que aconteceu depois da agressão, como isso afetou você?

AF: Pessoalmente, tive dificuldades por causa do nervosismo, era psicologicamente exaustivo. Recebemos apoio da nossa rede de comunicação, da imprensa regional, dos sindicatos de jornalistas, da ABRAJI, nos sentimos apoiados. Mas ainda tenho medo de me mexer. Eu nunca estou sozinho em qualquer lugar. É perigoso. De costas, podemos ser surpreendidos e atacados. A sensação é que essas manifestações são contra nós, como jornalistas.

LJR: Em sua trajetória profissional, como você compara esse cenário eleitoral de 2022 com o de 2018? E como estão os jornalistas nesse sentido?

AF: O cenário de 2018 não era tão trágico como agora. Em meus dez anos de carreira, nunca havia passado por um cenário de cobertura eleitoral tão agressivo. Há uma revolta sem sentido na população, simplesmente porque um candidato a presidente não ganhou as eleições. Mas foi a maioria que elegeu Lula. Aqui, em Porto Velho, fica o Acampamento da Brigada, em frente à Décima Sétima Brigada do Exército. Até hoje, há manifestantes ali acampados. Qual é a razão? Queremos saber por quê. E outra questão que difere do cenário de 2018: os jornalistas são tratados como inimigos. Isso fere a liberdade de expressão. Afinal de contas, prestamos um serviço público e trabalhamos para os cidadãos.

Protestos de rua no Brasil, bandeira azul pedindo intervenção federal

Bloqueio de estrada em uma estrada do Paraná, Brasil, após a derrota de Bolsonaro. (Crédito da foto: Isaac Risco)

LJR: Que limitações você tem para se locomover por Porto Velho?

AF: Eu não me desloco pela região da Brigada do Exército porque sabemos que aqueles manifestantes estão ficando lá. Não vou a determinados lugares porque sei que tem simpatizantes do Bolsonaro. Parece um acampamento de guerra: invadir a área inimiga pode causar violência, não sabemos o que pode acontecer. Temos medo de andar por aí com o microfone e o logotipo da Rede Amazônica. O que fizemos para não chamar a atenção foi retirar dos vagões todas as placas de identificação do posto.

LJR: Na Rede Amazônica vocês seguem os protocolos de segurança?

AF: Tanto o Grupo Globo quanto a Rede Amazônica nos ofereceram medidas de segurança para nos cuidarmos, inclusive nas redes sociais. Tudo o que publicamos é importante e decisivo nesse sentido. Não é que a gente se impeça de opinar nas redes sociais, mas temos que ter cuidado, é uma medida de proteção. Preparamos as mensagens com atenção, por exemplo: Se for sobre política, independente de qual lado esteja, evito postar. A outra medida é não se aproximar muito dessas pessoas, tanto durante quanto fora do trabalho. Aprendemos a ficar mais alertas. Eu quero estar em paz. Eles nos tratam como se fôssemos nós que decidimos quem ganhou a eleição presidencial.

LJR: Como esses ataques a jornalistas se relacionam com as mensagens de marketing político vindas do núcleo mais duro do bolsonarismo que é contra a imprensa?

AF: Existe uma relação direta. Nos últimos anos, os jornalistas sofreram muito desrespeito do presidente Bolsonaro. Quando via colegas sendo questionados pelo presidente, sempre me colocava no lugar do repórter que estava ali, fazendo seu trabalho. Se questionamos é porque queremos saber. Não é porque queremos politizar ou argumentar, é porque queremos esclarecer algo para o público. Mas essas atitudes autoritárias acabam sendo desfavoráveis ​​aos governos. Em Rondônia, por exemplo, o governador eleito é aliado de Bolsonaro. No entanto, seus ataques à imprensa prejudicaram sua imagem pública, colocando-o em uma situação muito delicada com os jornalistas locais.

Recentemente, houve outro ataque à comunidade jornalística de Rondônia. Desta vez, os tiros foram disparados contra a sede do site local Rondôniaaovivo. Centenas de manifestações repudiaram o incidente, como os Sindicatos dos Trabalhadores da Imprensa.

Treze organizações de defesa da liberdade de expressão e de imprensa pediram às autoridades e agentes públicos que garantam o trabalho jornalístico no atual período de transição entre os governos de Bolsonaro e Lula e até a posse do novo presidente em janeiro de 2023.

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Soledad Domínguez é jornalista especializada em direitos humanos, equidade racial e inovação no jornalismo, desde Argentina e Brasil.

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