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Longevas e de cara nova, revistas Continente e Pernambuco mostram potencial e desafios do jornalismo com apoio público no Brasil

Em meio a escassez de publicações jornalísticas dedicadas à cultura no Brasil, duas delas se destacam por sua longevidade e modo de financiamento – uma editora estadual que achou por bem investir no jornalismo, e, com fundos públicos, o faz de modo constante há décadas.

Criadas em suas primeiras versões, respectivamente, em 2000 e em 1986, as revistas Continente e Pernambuco (ex-Suplemento Pernambuco) são publicações da Cepe (Companhia Editora de Pernambuco), editora que também é responsável pela publicação do Diário Oficial do Estado de Pernambuco. Ligado ao governo estadual de Pernambuco, o órgão também publica livros de literatura, arte e ensaio.

Com alcance nacional e sem paralelo no país, as revistas estão de cara nova. Desde junho do ano passado, o jornalista e doutor em antropologia Mário Hélio Gomes, fundador da Continente e que assina como Mário Hélio, assumiu a edição das duas publicações, após a mudança do governo estadual em janeiro de 2023.

Houve reformas, como a fusão das equipes e diminuição dos funcionários fixos. Além disso, a Pernambuco se tornou uma revista em vez de um suplemento literário no formato de jornal, e teve sua contagem de edições, antes no número 213, zerada. Antes com uma linha editorial abertamente de esquerda, agora tem por slogan “revista de literatura, do livro e da leitura”.

A Continente, por sua vez, deseja alcançar também públicos internacionais, e tornou-se assim bilíngue, passando a ter periodicidade trimestral. Também houve adaptações na linha editorial, deixando de lidar só com obras culturais e passando a abarcar, segundo seu editor, “uma compreensão abrangente de cultura”, incluindo também, por exemplo, temas turísticos.

O objetivo de ambas, segundo Mário Hélio, é alcançar públicos amplos e plurais.

A portrait of a man wearing a brown shirt and holding a copy a Pernambuco magazine

O jornalista e antropólogo Mário Hélio Gomes, o novo editor das revistas Continente e Pernambuco (Foto: Cortesia de Leopoldo Conrado/Cepe)

 

 

“Uma publicação feita pelo governo tem que ser plural, abrigar muitas formas de pensamento. O mundo virou um Fla-Flu, e por isso é ainda mais importante ser realmente plural”, afirmou à LatAm Journalism Review (LJR). “O importante é que o leitor tenha bom gosto e queira se civilizar. Livros, jornais e revistas são conquistas civilizatórias e têm um papel educativo. Não no sentido doutrinário, mas sim de abrir os olhos para uma consciência crítica”. 

Os projetos, no entanto, não estão imunes a críticas. Em suas novas encarnações, as revistas fizeram fortes rupturas com as versões anteriores, e há quem diga quem correm o risco de perder conquistas importantes, como por exemplo seus públicos cativos ou a relevância nacional. O design e a linha editorial da Pernambuco foram considerados também mais convencionais, enquanto a Continente, ao mirar em um público internacional, periga assumir um tom publicitário e não jornalístico. Ademais, há quem tenha trabalhado numa das revistas e advirta sobre influência política em suas páginas no passado.

Nova Pernambuco

As mudanças da Pernambuco correspondem à terceira fase da publicação, criada originalmente em 1986 com o nome de Suplemento Cultural do Diário Oficial do Estado. Essa época se estendeu até 2007, quando nasceu o jornal literário chamado Suplemento Pernambuco.

Agora com cara de revista, com o preço de R$ 10 por edição e periodicidade mensal mantidos, a publicação tem agora 72 páginas por edição, um acréscimo significativo em relação ao padrão de 32 da versão anterior.

A edição de relançamento, com o número 0, saiu em dezembro do ano passado, e desde então já houve outros dois números. As capas abordaram temas como o espetáculo natalino "Baile do Menino Deus", de Ronaldo Correia de Brito, Assis Lima e Antonio Madureira, textos do pintor paraibano radicado em Pernambuco João Câmara e a arte e o ofício da tradução.

Além disso, houve a publicação de extensos dossiês sobre Arthur Rimbaud, hip hop e sobre o artista plástico pernambucano falecido em dezembro José Cláudio.

A Pernambuco magazine cover featuring writer and painter Joao Câmara

A edição de janeiro da revista Pernambuco, dedicada aos escritos do pintor João Câmara

A ambição, segundo Mário Helio, é ter por enfoque, além da literatura, toda “a cadeia produtiva do mercado editorial e do livro, assim como as políticas públicas do livro”. 

“A revista abrange o mundo literário, do livro, das bibliotecas, das editoras, mas também queremos que se consolide como instrumento da política pública, para pensar essa cadeia. Sendo uma revista governamental, penso que temos uma responsabilidade social e cultural”, afirmou. “Mas também é uma revista de literatura por estar aberta à criação literária. Cada dia há menos espaço para quem escreve contos ou pequenos ensaios, e oferecemos este espaço”.

Até aqui, se nota uma preponderância de artistas consagrados e temas ligados a Pernambuco e ao Recife. É evidente a ruptura com a gestão anterior, quando o então suplemento priorizava escritores não canônicos e temas contemporâneos diretamente políticos.

Schneider Carpegianni, que foi editor do suplemento de 2014 a 2022 e adotou a orientação editorial que conferiu à publicação relevância nacional, chegando a ser distribuída em 12 capitais, disse à LJR que, em sua gestão, ele “tinha liberdade de pauta absoluta para tratar do que estava acontecendo no Brasil na época e se posicionar politicamente”.

“Assumi a revista quando ganhavam força a quarta onda do feminismo, os movimentos negros e trans, mas também o fascismo”, afirmou. “O suplemento tinha então essa marca muito política, com uma posição muito de esquerda. Era para ser realmente de esquerda, sou totalmente contra a ideia de que exista objetividade no jornalismo. O jornalismo tem lado sim, e precisávamos nos colocar contra o fascismo. O suplemento cumpriu muito bem o seu papel, deu para usar o veículo de forma bastante livre”.

Seu substituto Mário Hélio classifica a linha editorial que o antecedeu como “cultura woke”.

Havia uma pauta relacionada à cultura woke, essa cultura na qual as minorias têm relevância especial. Havia pautas relacionadas a feminismo, a identidades de gênero, às vezes com preocupações ultraespecíficas. Defendiam os temas de forma quase militante, com uma linha de ativismo”, afirmou Mário Hélio. 

“No meu entendimento, essa pauta é tão válida quanto qualquer outra. Não dizemos agora que vamos tratar do oposto disso, tudo isso continua sendo um assunto. Mas é um assunto entre outros, não é mais tão dominante, tão absoluto, quanto foi durante quase uma década. Entendemos que a literatura é muito variada, e envolve muita coisa”.

Nova Continente

No caso da Continente, segundo Mário Hélio, a intenção é que a “cultura seja entendida do modo mais amplo possível”.

“Entendemos cultura no sentido antropológico, como comportamento, como sentido humano completo e não apenas artístico”, afirmou.

Essa volta do jornalista à publicação acontece mais de 20 anos após a sua primeira passagem. Quando fundou a Continente, cuja primeira edição saiu em dezembro de 2000, ele então lá ficou durante dois anos e dois meses. O adjetivo “Multicultural”, que fazia parte dos primórdios da publicação, volta como complemento do nome oficial.

O pianista Amaro Freitas, um dos maiores músicos de jazz em atividade no Brasil, estampa a primeira capa, e aparece em uma extensa reportagem sobre música contemporânea em Pernambuco, herdeira da antiga seção “Continente Documento”, que mergulhava fundo em algum tema. Há ainda reportagens sobre temas como presença do cangaço em obras culturais e a chamada Trilha Hippie que sai da Europa rumo ao Nepal e à Índia.

A man with beard on the cover of the Continente magazine

O pianista de jazz brasileiro Amaro Freitas na capa da única edição única até aqui da nova fase da revista Continente.

Ao lado dos temas eminentemente jornalísticos, há outros de caráter mais publicitário ligados ao estado de Pernambuco, como um texto sobre o Complexo Industrial e Portuário de Suape – o quinto maior porto do país –, e outro sobre a paradisíaca ilha de Fernando de Noronha.

Mário Hélio não esconde que uma das intenções é vender a imagem de Pernambuco, razão pela qual a revista também é publicada em inglês, fazendo com que tenha 196 páginas.

“No caso da revista impressa, a Cepe está cuidando de parcerias para que revista seja distribuída em voos, inclusive para estimular a parte mais turística. Vamos continuar fazendo matérias de turismo”, afirmou. “Mas também continuaremos a vender em bancas e livrarias, no esquema tradicional”.

Segundo o jornalista, quando o novo site da publicação estiver no ar, “o projeto vai ficar mais claro”. A intenção, afirmou, será atualizar o site semanalmente. Há também um aplicativo sendo produzido, disse. 

Em relação aos temas abordados nas duas publicações, apesar da preponderância de artistas com vínculo com Pernambuco, o editor nega que as revistas se limitarão ao estado.

“O que digo de forma simples é que são os temas que definem as escolhas, e não a geografia”, afirmou. “Evidentemente, como há coisas importantes acontecendo aqui, também iremos tratar deles. Pernambuco é tão nacional quanto São Paulo, mas, devido à importância econômica que a última assumiu e a um processo de autocolonização, considera-se o que acontece em São Paulo de relevância nacional, e o que há em Pernambuco, regional”.

Volta ao passado?

As mudanças despertam reticências em alguns leitores e ex-funcionários. Hoje professor de Comunicação Social na Universidade Federal de Pernambuco, Eduardo Cesar Maia entrou na Continente em 2003 como estagiário. Ficou lá até 2011, passando pelos cargos de redator, editor assistente e editor de algumas edições. Até o ano passado, publicava esporadicamente na revista. 

Especialista na relação entre crítica literária e jornalismo, Cesar Maia disse temer que o tino e critérios jornalísticos estejam ficando de lado em ambas as revistas. 

“Em relação à Continente, há uma tentativa de retomar uma época passada, bem antiga, como 2002 e 2003. Há pautas muito abstratas e me parece que não é mais um pensamento jornalístico que está por trás, mas sim um interesse em pensar temas num sentido acadêmico. A sensação é de que muitos textos não obedecem mais a demandas jornalísticas”, afirmou à LJR.

Cesar Maia disse ter especial preocupação com o texto sobre o porto de Suape, que considera uma propaganda disfarçada de jornalismo. 

“Se você tem uma ordem do governo para fazer matéria sobre Suape, você põe como publicidade, e não tenta disfarçar como matéria, porque não é”, afirmou. “Parece que é uma revista feita para turistas, que quer vender as coisas boas do estado para um público que nem é daqui, dizendo ‘Pernambuco é maravilhoso’”. 

O  perigo, acrescentou, é que a Continente, que vinha acompanhando de perto a produção cultural local e nacional, “acabe se tornando uma revista-catálogo de coisas boas de Pernambuco”.

“É o oposto do projeto que a Continente vinha construindo, de um projeto de jornalismo cultural crítico, que faz um exame da produção cultural de um ponto de vista crítico, em vez de ser um cardápio de coisas boas para turistas”, afirmou.

Em relação à revista Pernambuco, Cesar Maia diz que tinha críticas em relação ao projeto anterior, que considerava pouco plural e demasiadamente tendencioso em termos políticos para um veículo público. No entanto, teme que a publicação perca relevância.

“Do ponto de vista da divulgação do nome do Suplemento, o trabalho de Schneider [Carpegianni] foi extraordinário, ele conseguiu grandes articulistas, transformou a publicação em um produto muito atrativo para nossa época, conseguiu que o Suplemento superasse a Continente do ponto de vista do interesse do público”, afirmou. “Mas eu acho a orientação de caráter prioritariamente político, seja de esquerda ou de direita, problemática”. 

Cesar Maia afirmou que, como alguns colaboradores permaneceram, ainda é possível encontrar pautas no viés da encarnação anterior. A crítica do pesquisador à Pernambuco está em sua uma linguagem visual, que considera ultrapassada.

“O design de uma capa me remeteu imediatamente a 2004. Em termos visuais, o sentimento é de que a nova administração pensou em retomar um projeto antigo.  Essa impressão foi muito ruim. É legítimo querer fazer uma coisa diferente, mas não voltar no tempo”.

A photo montage of two men on the cover of Suplemento Pernambuco; it's possible to read ''the anti-fascist life'

Uma antiga edição do extinto Suplemento Pernambuco com a capa dedicada aos filósofos franceses Félix Guattari e Gilles Deleuze

Sobre as críticas de suposta ausência de critério jornalístico, Mário Hélio rebate o argumento e devolve a acusação: “É óbvio que a revista no modelo anterior tinha um toque mais acadêmico, mas na verdade era menos jornalística do que no modelo novo. Buscamos ter uma abordagem ampla da cultura”, afirmou.

Segundo ele, a proposta é ter “uma abordagem cultural absolutamente diversificada, e isso mostrará na prática. Isso significa entender a cultura no século em que estamos, em toda sua abrangência, o que inclui coisas boas e o turismo”.

Mário Hélio acrescenta que “o interesse na cultura se mostra na prática. Como uma revista que traz Amaro de Freitas na capa se afastou do jornalismo cultural, ou está ultrapassada?”

Em relação ao design da Pernambuco, afirma que a crítica é “uma questão de opinião. Outros podem ter visão contrária. Ninguém pode dizer que uma revista seja menos interessante que um jornal em possibilidades gráficas. O projeto anterior não tinha evoluído nada de 2007 para cá. Falava para um nicho em linguagem difícil. O nicho pode não ficar contente, mas nosso esforço é falar para uma plateia muito mais ampla”.

A tensão entre academia e jornalismo é um motivo de antiga preocupação. O jornalista Homero Fonseca, que trabalhou na Continente de 2001 a 2009, sendo cinco anos como editor, disse que então só tinha jornalistas e acadêmicos como colaboradores. Essa divisão o levou a criar “o mais sintético manual de redação conhecido: ‘1 – Jornalistas: escrevam como os acadêmicos. 2 – Acadêmicos: escrevam como os jornalistas’. Foi uma experiência única”, afirmou à LJR.

A esse respeito, Mário Hélio afirmou que busca “jornalistas e acadêmicos que não escrevam como acadêmicos. Se edito uma revista para acadêmicos, é uma coisa. Mas, se edito para todo o público, a revista não pode ser dura”, afirmou.

A pesquisadora Natalia Francis, que estudou a crítica contemporânea brasileira em ambientes digitais no doutorado, ressaltou a importância da presença online dos veículos, que ainda não têm novos sites no ar.

“Para esses veículos, a internet não serve como uma plataforma de divulgação, ela serve como uma manutenção do contato do diálogo com o público. Não faz sentido ter uma separação, há uma interpolação de mídias. Essas publicações atualmente operam na lógica de criar um circuito”, disse Francis à LJR.

Apoio público

Ainda dando os primeiros passos em suas novas versões, as duas revistas servem também para pensar a utilidade do apoio público ao jornalismo cultural no Brasil. A única iniciativa semelhante ainda existente identificada no Brasil é o Correio das Artes, publicado pelo jornal A União no estado da Paraíba.

Mário Hélio disse que a longevidade das publicações pernambucanas só foi possível porque a Cepe, a empresa responsável pela publicação, “soube se reinventar”. Além do jornalismo, os investimentos da editora na área de literatura também trouxeram frutos. Em 2020, um livro da editora ganhou o Jabuti, principal prêmio de ficção do Brasil.

“Um governo qualquer poderia acabar com essas revistas com uma canetada, mas isso não ocorreu. Houve um compromisso de Estado ao longo de vários governos, e isso aconteceu porque a imprensa oficial soube se reinventar e mostrar que era importante para a população”, disse Mário Hélio. 

Uma dúvida que resta é sobre a possível influência de políticos na revista. A este respeito, Fonseca diz que não lembro “de nenhuma pressão oficial”, tendo atravessado “todo  mandato do governador Jarbas Vasconcelos e mais dois anos da gestão seguinte, de Eduardo Campos (de outro partido político)”.

Cesar Maia tem uma visão diferente, e disse que “o assédio acontecia com alguma frequência. A tarefa dos chefes era fundamentalmente tentar proteger o conteúdo da revista da interferência de pessoas estranhas ao jornalismo cultural, ligada aos políticos, gente que não tem menor relevância mas é amiga do deputado ou do governador e está lançando um livro. Essa blindagem dependia fundamentalmente da capacidade dos editores-chefes de dizer ‘isso aqui não passa, temos autonomia’”.

Mário Hélio descartou essa possibilidade, e afirmou que a época é de independência e pluralismo. 

“Há zero influência política, não há nenhuma. Não recebi nenhum telefonema, nem a mínima insinuação. Não sei se ocorria no passado, mas no presente não há nenhuma”, afirmou. “O objetivo é de pluralidade total mesmo. Essa é uma das coisas mais difíceis no jornalismo. É bem mais fácil falar que se quer dar uma visão ampla do que realmente praticar isso”.

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