texas-moody

Meios de comunicação independentes da Nicarágua se preparam para possíveis bloqueios e controle de conteúdo

Em maio deste ano, os meios de comunicação 100% Noticias e Despacho 505, que publicam notícias sobre a Nicarágua desde o exílio, começaram uma campanha nas redes sociais para promover o uso de Rede Virtuais Privadas, mais conhecidas pela sigla em inglês VPNS. Por meio de vídeos, os meios alertam sobre propostas de lei que podem colocar em risco os direitos digitais, a privacidade online e a navegação segura na internet.

"Estamos lançando uma campanha para o uso de VPNs, estamos educando as pessoas para que façam um tipo de navegação segura", disse Lucía Pineda, diretora da 100% Noticias, à LatAm Journalism Review (LJR). "Estamos fazendo essa alfabetização digital, essa campanha específica, agora com o uso do VPN".

Uma das propostas de lei às quais a campanha se refere é a proposta de Lei Geral de Telecomunicações Convergentes, enviada pelo presidente Daniel Ortega à Assembleia Nacional da Nicarágua em 5 de março, que pode substituir a Lei Geral de Telecomunicações e Correios Postais, em vigor no país desde 1995.

Segundo especialistas, se aprovada, a proposta de lei facilitará o acesso das autoridades aos dados de navegação e pessoais dos usuários da internet, além de estabelecer mecanismos para obrigar os operadores de telecomunicações – incluindo meios de comunicação – a solicitar licenças e pagar um percentual de seus ganhos para operar na Nicarágua.

Além disso, a aprovação dessa iniciativa também representará novos obstáculos para o jornalismo e a liberdade de imprensa na Nicarágua, segundo preveem jornalistas independentes do país. Entre esses temidos obstáculos estão a regulação do conteúdo digital, o bloqueio de sites em território nicaraguense e o controle de equipamentos de produção audiovisual.

Diante disso, outros meios independentes que operam fora do país já planejam iniciar campanhas semelhantes às da 100% Noticias e Despacho 505 para conscientizar seus leitores sobre o uso de VPNs e para capacitá-los em formas de burlar os possíveis bloqueios para continuar consumindo informações caso a lei proposta entre em vigor.

Uma VPN permite criar uma conexão privada entre o dispositivo do usuário e a internet. Sua principal função é proteger a privacidade online, ocultando o endereço IP do usuário, o que permite navegar anonimamente e com segurança, acessar conteúdo bloqueado em determinadas regiões e proteger informações em redes Wi-Fi públicas.

"O que estamos prevendo é que se houver uma vontade de bloquear meios de comunicação, poderia ocorrer algo semelhante à experiência da Venezuela: o bloqueio específico de sites e de endereços da web", disse Álvaro Navarro, diretor do meio digital Artículo 66, à LatAm Journalism Review (LJR). "Esta lei poderia ser o início disso. Nós também estivemos em contato com colegas venezuelanos para saber como agir em termos técnicos, até mesmo como faremos a campanha [do uso de VPN]. Temos que nos capacitar também, e acho que esse é o enorme desafio".

Nicaraguan journalist Álvaro Navarro.

O jornalista Álvaro Navarro afirmou que não está o regime de Ortega não tem interesse em mexer com empresas de tecnologia. (Foto: Twitter de Álvaro Navarro)

Arlén Pérez é editora do La Prensa, o jornal mais antigo da Nicarágua, com 98 anos de existência, que atualmente opera apenas online a partir do exílio. Ela também disse que, se a iniciativa de lei for aprovada, será fundamental treinar tanto os jornalistas em segurança digital quanto os nicaraguenses sobre como consumir informações diante de possíveis bloqueios.

Pelo menos 253 jornalistas e profissionais de imprensa da Nicarágua foram forçados a partir para o exílio até abril deste ano, enquanto pelo menos 56 meios de comunicação foram fechados ou confiscados pelo regime de Ortega nos últimos seis anos, de acordo com o Observatório da organização Periodistas y Comunicadores Independientes de Nicaragua (PCIN), do qual Pérez é coordenadora.

Isso agravou o silêncio informativo na Nicarágua, onde qualquer narrativa diferente da do governo de Ortega e sua esposa e vice-presidente, Rosario Murillo, sofre represálias.

"É necessário analisar como começar a treinar as pessoas a usar VPN, para que, como diz esta lei, se houver um controle dos IPs, encontrar a maneira de usar um VPN para contornar esse controle", disse Pérez à LJR. "Isso precisa passar por uma campanha de conscientização em que a audiência saiba que o silêncio contra nós é na verdade a surdez dela própria. Também está sendo imposta a eles uma restrição, então eles terão que participar um pouco".

A Lei Geral de Telecomunicações Convergentes incorpora o conteúdo audiovisual nos Serviços de Telecomunicações que podem ser regulados. A iniciativa de lei, à qual a LJR teve acesso, define como conteúdo audiovisual "a Televisão Aberta, a Televisão por Assinatura ou paga, a Radiodifusão Sonora em Amplitude Modulada (AM) e em Frequência Modulada (FM), bem como qualquer outro serviço de difusão de conteúdo audiovisual usando qualquer tecnologia ou meio de transmissão, incluindo a internet".

Para Pérez, essa iniciativa de lei permitirá ao Instituto Nicaraguense de Telecomunicações e Correios (TELCOR), o órgão regulador das telecomunicações e serviço postal na Nicarágua, estender sobre a internet o controle que já possui sobre o rádio, a televisão e as telecomunicações.

"Com este tipo de leis e através do TELCOR foi que começaram a extinguir-se os canais de televisão", disse Pérez. "Com esta nova lei, eles estendem o tema ao conteúdo audiovisual e também o estendem à internet. Então, qual é o problema para nós, os jornalistas? O problema para nós, jornalistas, é que o único meio que nos resta é a internet".

A jornalista mencionou que ainda é necessário analisar as regulamentações que o TELCOR estabelecerá para se adequar à legislação proposta, caso seja aprovada. Há preocupação entre os jornalistas de que a ambiguidade com a qual a iniciativa está redigida possa permitir interpretações arbitrárias por parte do regime de Ortega, como ocorreu com outras leis em vigor.

Um exemplo é a Lei de Cibercrimes, aprovada em 2020, que sanciona crimes cometidos "por meio de tecnologias da informação e comunicação em prejuízo de pessoas físicas ou jurídicas". A lei tem sido usada para acusar jornalistas e ativistas de divulgar notícias falsas.

"A Lei de Cibercrimes fala sobre informação através de meios de comunicação, de telecomunicações, mas não diz nada em momento algum sobre notícias falsas. Eles estão aplicando a Lei de Cibercrimes a seu bel-prazer para prender pessoas por mais de 13 anos", disse Pérez. "O governo há muito tempo vem criando leis muito ambíguas. [...] Geralmente, os dois crimes que eles usam são 'traição à pátria', mas quem define traição à pátria? Ou 'prejuízo à integridade nacional'; quem define a integridade nacional?"

Redes sociais como solução... Por enquanto

Os meios de comunicação nicaraguenses legalmente estabelecidos em outros países confiam que algumas das medidas e restrições da lei proposta, como a cobrança de tarifas ou a necessidade de solicitar licença para operar, não os afetará diretamente.

No entanto, isso não se aplica ao consumo de seus conteúdos dentro da Nicarágua, que pode ser restringido por meio do possível bloqueio de seus sites. Por isso, a questão para os jornalistas que operam a partir do exílio é como essa proposta de lei limitará o acesso a seus conteúdos na Nicarágua e quais outras alternativas existem caso seus sites sejam bloqueados.

Para vários deles, a resposta são as redes sociais.

"Nós geramos nosso conteúdo do exterior e as pessoas o veem e têm acesso nas redes sociais", disse Pineda. "Se houver esse bloqueio específico de sites, a opção que podemos ter e que temos é distribuir todo o conteúdo através das redes sociais".

Pineda não acredita que a lei proposta restrinja o acesso às principais redes sociais na Nicarágua, como Facebook, X, YouTube ou TikTok, já que o próprio regime utiliza algumas dessas plataformas para disseminar suas mensagens.

Navarro concordou e disse que ao regime de Ortega não convém se envolver com os gigantes tecnológicos.

"A família da ditadura da Nicarágua também tem meios de comunicação, suas mensagens também são divulgadas em redes sociais. Eles estão envolvidos no negócio, em termos muito básicos. Por isso digo, tentar bloquear as redes sociais seria atirar nos próprios pés", disse Navarro. "Eles também não poderão bloquear meu canal do YouTube, pois isso implicaria bloquear todo o YouTube no país".

Meios como o Artículo 66 já consolidaram grande parte de sua audiência nas redes sociais. De acordo com Navarro, 40% do tráfego que chega ao site do meio que dirige provém de plataformas como Facebook, X e Instagram.

No caso da 100% Noticias, desde que o regime de Ortega confiscou seus equipamentos e instalações e retirou sua transmissão do ar, o veículo recorreu ao Facebook, X e Instagram para distribuir grande parte de seu conteúdo. Além disso, o meio transmite atualmente seus noticiários e programas de entrevistas através do YouTube e conta com um canal no Telegram.

"Agora, o que os meios de comunicação estão fazendo é não colocar todos os ovos na mesma cesta", disse Pérez. "Você pode ter um site na internet, ou seja, sua página oficial na web, mas também tem suas redes sociais, seus canais no WhatsApp, seus canais no Telegram. Então, de alguma forma, é como 'se você fechar uma porta, aqui tenho três janelas a mais'".

Em termos financeiros, os jornalistas acreditam que o possível bloqueio de seus sites também não terá um grande impacto nas receitas de seus meios, pois desde que operam do exílio, praticamente todos os seus anunciantes nicaraguenses retiraram sua publicidade por medo de represálias do governo.

Nicaraguan journalist Lucía Pineda interviewing a man on a YouTube streaming show.

A 100% Noticias transmite suas notícias e programas de entrevistas no YouTube desde que seu sinal foi retirado do ar na Nicarágua. (Foto: Captura de tela do 100% Noticias no YouTube)

Atualmente, tanto o Artículo 66 quanto a 100% Noticias e a maioria dos meios digitais da Nicarágua no exílio têm como principal fonte de receita subsídios e fundos de organizações internacionais, com uma parcela menor proveniente da publicidade do Google Ads em seus sites e da monetização de conteúdo em suas redes sociais, como relataram Pineda e Navarro.

"Temos o sistema de monetização do YouTube porque ele paga um pouco melhor em comparação com o sistema de monetização dos sites", disse Pineda. "Se for afetada alguma forma de monetização, acredito que será mínima, porque a monetização dentro da Nicarágua é mínima".

No caso de La Prensa, seu modelo de negócio é baseado em um programa de assinaturas e publicidade digital, e o veículo começou a implementar os primeiros passos para um modelo de negócios mais diversificado, que inclui a venda de produtos editoriais.

"Se você anuncia em um meio de comunicação independente, também é considerado traidor à pátria", disse Pérez. "Mais de 90% dos anunciantes nos abandonaram justamente por isso, porque criminalizaram não apenas o exercício do jornalismo, criminalizaram o jornalismo como plataforma publicitária".

No entanto, Navarro considera que, além de ainda não ser muito rentável monetizar conteúdo jornalístico nas redes sociais, ter um site ainda proporciona um certo grau de credibilidade extra perante a audiência em comparação com os meios que vivem apenas nas redes sociais.

"Os sites fornecem um nível de confiança maior para a audiência", disse Navarro. "[Em caso de bloqueio do site] teremos que ver ao longo do caminho que mecanismos poderíamos usar para manter o mesmo nível de credibilidade, confiança das pessoas, sem deixar de informar. Teremos que ser muito mais criativos, apresentar informações de forma gráfica".

Criadores de conteúdo na mira

Os efeitos que a Lei Geral de Telecomunicações Convergentes pode ter, se aprovada, afetarão não apenas os jornalistas, mas também os criadores de conteúdo e até mesmo os cidadãos.

O projeto de lei inclui uma seção dedicada aos equipamentos de telecomunicações, na qual se estabelece que a fabricação, importação e comercialização desses equipamentos deverão passar por um processo de homologação perante o TELCOR. O artigo 66 do documento indica que caberá ao órgão regulador "estabelecer medidas de restrição e proibições à importação de equipamentos de telecomunicações que coloquem em risco a segurança nacional e/ou os interesses da República da Nicarágua".

Segundo Pérez, esses equipamentos podem incluir equipamentos de produção multimídia, de edição e até mesmo câmeras e telefones celulares. Por isso, a jornalista teme que, com esta lei, o governo da Nicarágua busque ter mais controle sobre que tipo de celulares e câmeras circulam pelo país.

"Não me surpreende que essa lei aborde o tema dos equipamentos, porque o jornalista que está preso, Victor Ticay, está detido por fazer uma gravação com seu celular e publicá-la no Facebook. E não estou falando de [ter gravado] um protesto, estou falando de uma procissão da Semana Santa", disse Pérez. "No final das contas, na Nicarágua, ninguém pode mais ter uma câmera, porque é uma ameaça".

People clashing at a protest in Nicaragua.

ChatGPT Segundo Arlen Pérez, qualquer pessoa que documente com uma câmera ou celular o que está acontecendo na Nicarágua pode estar sujeita a represálias. (Foto: Captura de tela do Confidencial no YouTube, sob CC BY 2.0)

Pérez afirmou que essas restrições afetarão diretamente os criadores de conteúdo e os cidadãos que tentam documentar o que acontece no país. A jornalista disse que, como não existem mais escolas de jornalismo fora do controle do regime, aqueles que continuarão a poder exercer a tarefa de informar a médio prazo serão precisamente os criadores de conteúdo sem formação universitária, mas com habilidades de comunicação e produção multimídia.

No entanto, as medidas desta proposta de lei também podem colocar em risco essa atividade.

"Ninguém mais vai querer tocar em uma câmera, ninguém mais vai querer editar um programa, ninguém mais vai querer lidar com conteúdo online", disse Pérez. "Essas leis buscam criarr um silêncio de modo que o único discurso que será ouvido seja o do governo, o de Daniel Ortega e o de Rosario Murillo".

Os jornalistas consultados concordam que há incerteza sobre o que pode acontecer com a proposta de lei, já que quase três meses se passaram desde que ela foi enviada à Assembleia Nacional, quando anteriormente outras propostas de lei impulsionadas por Ortega foram aprovadas de forma veloz.

Navarro considera que o regime está dando tempo para analisar o quão politicamente conveniente seria a aprovação.

"Acho que o fato de ainda não terem aprovado não depende realmente de um processo institucional razoável", disse o jornalista. "Eles já têm uma decisão política e o que estão avaliando é apenas se vale a pena".

Navarro disse que mesmo que não seja aprovada, muitas das medidas restritivas indicadas na proposta já acontecem na realidade. Por isso, ele não descarta que a proposta faça parte das estratégias do regime para distrair os jornalistas de suas tarefas informativas.

"Enquanto estou tentando encontrar mecanismos para evitar a censura, deixo de fazer notícias e eles sabem disso", disse. "O que eu acredito que certamente vão executar é o controle dos sites da web [...]. No curto prazo, o maior impacto estaria nisso, porque implica que devemos dedicar esforço, tempo e recursos para evitar essa parte".

A LJR tentou entrar em contato com o TELCOR e com a Comissão de Educação, Cultura, Esportes e Meios de Comunicação Social da Assembleia Nacional da Nicarágua, mas até a publicação deste artigo, não houve resposta às solicitações de entrevista.

Traduzido por André Duchiade
Regras para republicação