Para a edição de 2022, o Prêmio Gabo – concedido pela fundação de mesmo nome ao melhor do jornalismo ibero-americano – decidiu incluir Áudio como uma nova categoria, após receber, em edições anteriores, centenas de inscrições de projetos de jornalismo sonoro, especialmente em formato podcast.
O Conselho Diretor do prêmio procurou responder à evolução do jornalismo nesse formato que, reconheceu, se expande a grande velocidade como resultado da chamada "era da audição" na mídia.
O primeiro trabalho vencedor na categoria foi “La Segunda Muerte del Dios Punk”, um podcast de true crime do jornalista Nicolás Maggi, de Rosario, Argentina, sobre Javier Messina, um músico ambulante que se suicidou depois de ter sido “cancelado” nas redes sociais, acusado de um crime que não cometeu.
Podcasts como o de Maggi sobre histórias que examinam crimes da vida real estão conquistando grande audiência na América Latina e em todo o mundo. O gênero true crime, que goza de popularidade no cinema e na TV há décadas, encontrou no podcast uma plataforma ideal para chegar a novas audiências, apesar de os jornalistas ainda enfrentarem grandes desafios para produzi-los, distribuí-los e monetizá-los.
“Com o podcast de true crime nós, jornalistas acostumados a fazer jornalismo narrativo, crônicas, podemos juntar o sonoro, o radia, com o jornalismo narrativo”, disse a jornalista Flavia Campeis, bolsista da Fundação Gabo e criadora de podcasts, à LatAm Journalism Review (LJR). “O podcast nos dá muitas ferramentas para contar as histórias de um jeito mais profundo, mais detalhado, para explicar ao público como fazemos uma investigação.”
A linguagem do podcast dá aos jornalistas a possibilidade de explorar os detalhes das histórias minuciosamente, algo que seria difícil de fazer em outros formatos. Por ser um formato de consumo pessoal, que permite ouvir histórias que aconteceram com pessoas de verdade, às vezes pela voz das próprias vítimas ou de suas famílias, gera empatia com os ouvintes de uma forma mais orgânica. E tanto o detalhe quanto a empatia são elementos fundamentais na hora de contar histórias de crimes reais.
“O podcast tem um formato de consumo muito intimista, a pessoa ouve com o fone de ouvido, sozinha, então é preciso tentar estabelecer essa cumplicidade e falar com essa pessoa prestando atenção em tudo, no tom da voz, no jeito de narrar…”, disse Nicolás Maggi à LJR. “Atualmente, o true crime é um grande veículo para fazer nossas histórias chegarem a mais pessoas e para comovê-las.”
Maggi produziu “La Segunda Muerte del Dios Punk” com a Rádio Universidade da Universidad Nacional de Rosario (UNR) como trabalho de conclusão do curso de Comunicação, após mais de dez anos de experiência profissional em rádio e mídia escrita.
O podcast foi publicado na plataforma Erre Podcast, produtora de Rosario coordenada por Martín Parodi, orientador de Maggi na UNR, fato que ajudou na distribuição e no impacto posterior. A produção já acumula mais de 130 mil reproduções no Spotify desde a publicação do primeiro dos nove episódios, em outubro de 2021. Dessa forma, a história de um músico local repercutiu em um público muito mais amplo.
Caso semelhante foi o de “Dónde está Paula?”, um podcast de true crime produzido e narrado por Campeis, que conta o desaparecimento de Paula Perassi, uma mulher de San Lorenzo, Argentina, que foi vista pela última vez em setembro de 2011, quando estava grávida. O primeiro episódio estreou em setembro de 2021 e a série já acumulou mais de 13 mil reproduções só no Spotify.
“A ideia é atingir um público maior. [O podcast] nos permite transcender e contar essa história que aconteceu em um lugar muito específico, em uma pequena cidade da Argentina, para que possa chegar a muitos lugares. O podcast já foi escutado em mais de 40 países”, disse Campeis.
Assim como Campeis e Maggi, cada vez mais jornalistas latino-americanos estão descobrindo que o alcance global do podcast pode ser útil para contar histórias sobre questões globais a partir de histórias locais.
“Para mim, o sucesso consiste em criar histórias sensíveis e profundas que tenham algum tipo de significado mais amplo. Para ter sucesso nesse aspecto é preciso entrevistar o maior número possível de pessoas, ler os documentos judiciais, planejar cuidadosamente o que vai ser dito e depois produzir conteúdos que contem a história cuidadosa e profundamente”, disse Robert Quigley, professor da Escola de Jornalismo e Mídia do Moody College of Communications da Universidade do Texas em Austin, nos EUA, onde dá aulas na disciplina Podcasts True Crime, à LJR.
Um exemplo famoso de podcast é “Praia dos Ossos”, a primeira série original de não-ficção da produtora brasileira de podcasts Rádio Novelo, que ultrapassou três milhões de downloads desde seu lançamento em 2020.
Por meio da história da socialite brasileira Ângela Diniz, assassinada pelo namorado em 1976, a série explora o que acontece quando um sistema judicial deficiente se cruza com o machismo estrutural de uma sociedade.
“Não falamos muito sobre o crime em si. Falamos sobre a repercussão do crime, sobre a maneira em que ele foi contado pela mídia, pelo sistema de justiça e pelo namorado dela”, disse Branca Vianna, idealizadora e apresentadora do “Praia dos Ossos”, à LJR.
Diante de um público saturado de informações, os jornalistas tiveram de encontrar novas formas de captar o interesse das pessoas.
Para Maggi, podcasts narrativos de não-ficção são uma boa ferramenta para trazer o público de volta para o jornalismo, por meio da introdução de elementos de outras indústrias culturais, como o cinema, a literatura e a música.
“O gênero [true crime] em si é um bom veículo para chegar ao público porque é um formato que as pessoas já conhecem e querem consumir”, disse o jornalista. “Eu, pessoalmente, sou bastante a favor dessa mistura entre jornalismo e produtos que parecem mais ligados ao entretenimento, porque acho que é uma forma muito interessante de reverter um divórcio que aconteceu entre o público e os jornalistas.”
Esses elementos narrativos fazem parte do que os criadores de podcast chamam de design de som, que consiste em combinar harmoniosamente vários elementos sonoros para alcançar uma experiência sonora imersiva. É justamente o design de som que diferencia o podcast de outras formas de jornalismo sonoro, como o rádio, por exemplo.
"É uma das coisas mais difíceis e é uma das áreas em que temos mais dificuldade em encontrar pessoas que sabem fazer isso", disse Vianna. “É incrivelmente importante, porque define o clima. Pode haver partes em que você precisa ser muito explicativo, e o design de som ajuda nisso. Tem que ser muito sutil, não pode ser muito evidente.”
Com o tom de voz certo, depoimentos das próprias vítimas ou de pessoas próximas delas, música e até mesmo recriação de fatos com efeitos sonoros, o design de som de um podcast de true crime tem que gerar empatia suficiente com o ouvinte a ponto de comover e de motivar a reflexão, diz Maggi.
“No fundo, eu acho que o que a maioria dos jornalistas quer é comover o público, deixá-lo pensando, chegar de alguma forma nele para tocar sua fibra emotiva íntima por meio de uma história bem contada”, disse ele. “Tudo isso pode ser alcançado através de produtos que são configurados de uma maneira que parecem entretenimento, mas que no fundo entregam, sub-repticiamente, um conteúdo profundo e jornalístico.”
Para Maggi, Campeis e Vianna, recriações e dramatizações são recursos que podem ser utilizados em podcasts jornalísticos desde que haja transparência e que fique claro para o ouvinte quais são os sons originais da história e quais foram recriados com a finalidade de ambientar a cena.
"Dónde está Paula?" foi ainda mais longe. O podcast contou com a participação de atores que interpretaram as conversas em texto de Paula Perassi que foram fundamentais para entender a história.
“São chats que pela primeira vez são contados de forma jornalística. Como os chats são escritos e não temos a voz da Paula, o que fizemos foi usar atores, deixando claro no próprio podcast que os chats iam ser interpretados”, disse Campeis.
Para Vianna, a única maneira de aprender a criar um design de som atraente e envolvente é ouvir o maior número possível de podcasts narrativos, dissecá-los e analisá-los.
"É só ouvir os melhores podcasts parecidos com o que você quer criar e fazer um pouco de engenharia reversa", disse ela. “[Pergunte-se] Por que eles colocam esse som aqui? Por que essa música está aqui e não ali? Por que isto não é música? Por que isso é só um pequeno som? A gente deve usar sons falsos ou não?”
No entanto, apesar de os elementos de entretenimento ajudarem a tornar os podcasts mais imersivos e agradáveis para o ouvinte, é preciso tomar cuidado para não cair no sensacionalismo nem ultrapassar os limites do jornalismo, diz Quigley.
"Temos que pensar em como criar conteúdo atraente, mas acho que isso é diferente de fazer conteúdo de entretenimento. Temos que ter cuidado para não sermos sensacionalistas em nome do entretenimento", disse. “Os criadores precisam parar de tratar o crime como entretenimento e os ouvintes precisam ser mais exigentes em sua dieta de mídia e exigir mais dos criadores.”
Seguir as orientações jornalísticas na hora de criar um podcast de true crime também inclui cuidar das fontes e avaliar se as vítimas ou suas famílias devem fazer parte da produção. Ter as vozes dos protagonistas ou de pessoas próximas a eles ajuda a criar uma imagem mais convincente dos personagens, porém muitas vezes isso faz com que tenham que reviver os eventos traumáticos do crime.
Seguindo o sucesso de “Praia dos Ossos”, a Rádio Novelo lançou o podcast “Crime e Castigo”, no qual cada episódio trata de um crime da vida real na voz de seus protagonistas ou de pessoas próximas a eles. Vianna, que também está por trás desse podcast, disse que é preciso ter sensibilidade ao abordar essas fontes e ao lidar com o material.
"Você tem que pensar que está falando com pessoas que passaram por eventos incrivelmente traumáticos. Não é justo traumatizar ninguém novamente", disse ela. “Geralmente você fala com pessoas que não são públicas. Elas não estão acostumadas a dar entrevistas. [...] Como jornalista, se você está falando com pessoas normais, você tem que pensar nisso, e muito mais se houver um crime envolvido.”
Para Quigley, o fato de os podcasts de true crime de investigações jornalísticas terem resultados tão bons também tem a ver com as habilidades dos jornalistas para cobrir temas relacionados ao crime. E isso é uma vantagem competitiva sobre o resto dos criadores de podcast.
"Jornalistas sempre cobriram histórias de crimes, então eles sabem como obter arquivos, entendem a terminologia e sabem como falar com sensibilidade com as fontes. Acho que a meticulosidade com que jornalistas abordam o true crime os ajuda a se destacar em um gênero saturado", disse.
A primeira receita que “La Segunda Muerte del Dios Punk” recebeu foi a recompensa econômica que acompanha o Prêmio Gabo. Antes disso, o podcast causava impacto, mas não gerava nenhum tipo de monetização.
Esse é o cenário de sustentabilidade para a maioria dos criadores independentes de podcasts jornalísticos de não-ficção. Eles têm poucas opções para monetizar suas criações e têm que se engajar em um trabalho de resistência de longo prazo.
“Fazer um podcast de true crime de longa duração pode ser muito caro. Talvez você tenha que colocar um repórter para trabalhar em uma história por quase um ano e talvez tenha que pagar viagens... Uma das melhores maneiras de recuperar esses custos é vender publicidade, mas é difícil vender publicidade em podcasts seriais”, disse Quigley. “Os criadores de podcasts podem chegar a ganhar muito dinheiro com esse trabalho, mas precisam estar nisso a longo prazo. É preciso ser agressivo para encontrar novas maneiras de monetizar o trabalho.”
O podcast é um formato relativamente novo, com menos de 20 anos de existência. Investidores e patrocinadores ainda têm dificuldade para entendê-lo e, por isso, ficam desconfiados se o produto não for respaldado por um meio de comunicação ou plataforma digital de áudio.
Vários meios de comunicação se aventuraram na criação de podcasts, mas a maioria tem se limitado à produção de "dailys" (notícias do dia), que são mais simples, rápidos e baratos de produzir do que os podcasts narrativos de não-ficção, cuja criação pode levar vários meses.
“[Na Argentina] vários meios de comunicação grandes pensaram em ter seus podcasts, mas não oferecem nenhuma motivação, nem treinam o jornalista, nem oferecem pagamento extra para fazer isso, então tudo acaba um pouco fagocitado pelo fragor do dia a dia”, disse Maggi. “Depois, qual é o problema? Eles não têm paciência para acompanhar o processo até dar certo, eles ficam respirando na sua nuca, olhando as métricas e te perguntando 'por que esse dinheiro investido não está dando retorno?'”
"La Segunda Muerte del Dios Punk" foi produzido com recursos próprios e com recursos técnicos da Rádio Universidade da UNR. Mas com base no sucesso do podcast, Maggi e Erre Podcast estão trabalhando em uma segunda temporada em coprodução com Posta, uma das produtoras de podcast mais importantes da Argentina. Esta segunda parte estará disponível em maio de 2023, anunciou Maggi.
“Falta ver a possibilidade de comercializar o podcast por meio de alguma plataforma. Estamos discutindo isso agora", disse. “Estamos procurando diversificar, enviar projetos para plataformas maiores, digamos Spotify, Amazon... Também queremos explorar a opção de conversão para material audiovisual.”
Mesmo quando um podcast é colocado em uma plataforma global, isso não garante geração de receita para o criador, a menos que a plataforma adquira o podcast com exclusividade. O Spotify, por exemplo, paga em média US$ 0,003 por cada reprodução, dependendo de fatores como o país do criador, o número de seguidores e o alcance do podcast. Por isso a monetização por essa via é praticamente inexistente para a maioria dos criadores independentes.
“[O Spotify] não monetiza como, por exemplo, o YouTube ou outras plataformas. As plataformas de podcast só publicam gratuitamente. Bom, é interessante chegar a um público muito grande e diversificado, mas eu acho que isso ainda é algo a resolver ou a repensar para que possamos ter alguma monetização baseada na escuta”, disse Campeis. Atualmente sua equipe está buscando recursos para a segunda temporada de "Dónde está Paula", prevista para estar pronta em meados de 2023.
Outros criadores de podcast optam por métodos alternativos de financiamento. Existem métodos de monetização, como financiamento coletivo ou doações. Cada vez mais criadores estão pedindo apoio dos ouvintes por meio de plataformas como Patreon ou Buy Me a Coffee.
A Rádio Novelo encontrou uma importante fonte de financiamento em organizações sem fins lucrativos. “Crime e Castigo” foi produzido com recursos do Instituto Betty e Jacob Lafer e da Oak Foundation, interessados em criar conteúdo relacionado a direitos humanos e justiça criminal. Da mesma forma, seu podcast “Projeto Querino”, sobre a história do Brasil de um ponto de vista afrocêntrico, foi financiado por organizações que trabalham com questões raciais.
“É uma forma diferente de fazer jornalismo e uma maneira muito interessante, até porque [o podcast] é muito novo”, disse Vianna. “Também é intrigante porque ainda há muito a ser feito. Ainda há muito o que experimentar. Isso o torna muito interessante.”