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Na fronteira Brasil-Bolívia, jornalistas colaboram entre si e prestam serviços às comunidades locais

Em novembro de 2019, Pedro Montenegro foi extraditado para o Brasil acusado pelo crime de tráfico de cocaína. Era então um dos homens mais procurados da Bolívia. A cobertura jornalística de sua transferência para Corumbá, na divisa com a cidade boliviana Puerto Quijarro, reuniu Leonardo Cabral, do Diário Corumbaense, e Ariel Melgar Cabrera do El Deber, para colaborarem em uma cobertura transnacional.

Frente à velocidade dos fatos relacionados ao narcotráfico por via terrestre, à passagem de migrantes e a mudanças súbitas nessa região, Cabral e Melgar Cabrera trocaram fontes, dados sobre prisões e narcotráfico e até se ajudaram mutuamente com traduções. “Ser jornalista na fronteira é colaborar e fazer parceria com outros profissionais, porque precisamos uns dos outros”, disse Cabral à LatAm Journalism Review (LJR).

Man in a white shirt looks at the camera with a soccer field in the background

O jornalista Ariel Melgar Cabrera, do jornal boliviano El Deber  (Foto: Cortesia)

Ariel Melgar Cabrera, do El Deber, reforçou essa ideia de colaboração com uma anedota: "Lembro que, para contatar a Polícia Federal do Brasil, pedi ajuda ao Leonardo [Cabral]. A partir desse momento, ele se tornou uma fonte confiável em campo para pedir [informações]", acrescentou em entrevista por telefone da cidade de Santa Cruz de la Sierra.

O El Deber é o jornal de maior circulação na Bolívia, e seu site recebe cerca de 30 milhões de visitantes únicos por ano. "É independente, não é estatal e todas as notícias são imparciais", disse Melgar Cabrera. Já a versão impressa do Diário Corumbaense é distribuída localmente nos municípios de Corumbá, Ladário e na região do Pantanal. Cerca de 20 mil pessoas o leem online diariamente. “É notável como nas redes sociais do Diário Corumbaense recebemos comentários de cidadãos bolivianos”, disse Cabral.

O território de Corumbá faz fronteira com a Bolívia e também com o Paraguai, o que faz de Corumbá – na região pantanosa do Mato Grosso do Sul – um dos dez municípios bifronteiriços do Brasil. Segundo fontes da Receita Federal do Brasil que conversaram com a LJR, cerca de 6 mil pessoas e 3 mil veículos circulam diariamente pelo cruzamento desta cidade com Puerto Quijarro. “É uma área de situações relevantes comuns aos dois países: o que aconteceria se não tivéssemos uma fonte imediata e confiável como o Diário Corumbaense na região?”, questionou o jornalista boliviano Melgar Cabrera.

Map indicating the location of the municipality of Corumbá, in the Brazilian state of Mato Grosso do Sul.

Corumbá, pertencente ao estado de Mato Grosso do Sul, faz fronteira com a cidade de Puerto Quijarro, na Bolívia (Foto: Google Maps)

Fazer jornalismo em áreas fronteiriças pode ser desafiador e exige  um olhar atento. Isso levou Melgar Cabrera e Cabral a se ajudarem ao entrevistarem suas respectivas Polícias Federais sobre temas ligados a drogas e ao tráfico de drogas. Outro caso que abalou a região no início de 2023 foi o de Ruddy Sandoval, um boliviano de 37 anos ligado ao tráfico de drogas e a figuras políticas daquele país, encontrado morto em um carro abandonado na cidade de Corumbá. Na ocasião, El Deber publicou notícias citando o Diário Corumbaense como fonte.

A colaboração em rede é uma das características do jornalismo contemporâneo e latino-americano. Segundo Adriana Amado, pesquisadora de mídia e comunicação, essas formas de trabalhar são uma espécie de "jornalismo coral", conceito que ela mencionou em seu livro intitulado em espanhol "Metáforas jornalísticas: mutações e desafios." Embora não haja contrato explícito entre os dois jornalistas do Brasil e da Bolívia, há um fluxo de trabalho e acordos para compartilharem fontes e contatos.

Lucas Lélis, outro repórter de Corumbá, que trabalha na TV Morena (afiliada da TV Globo), disse: "Há uma peculiaridade em fazer jornalismo no interior [do país], que é muito diferente dos grandes centros urbanos, onde há mais assessoria de imprensa e o trabalho é mais individual. No interior, se a gente não se ajudar, a gente não consegue fazer nada”, afirmou.

Jornais como serviços de informação para uma comunidade de cidade fronteiriça

Informar a comunidade como um serviço é um conceito que a pesquisadora Adriana Amado desenvolve e defende para o jornalismo do século XXI. "Jornalistas são prestadores de serviços para sua comunidade, desde esportes, a vida pública, até Saúde. São considerados assuntos marginais, mas são conteúdos que devemos fornecer", disse Amando em entrevista publicada na LJR. O Diário Corumbaense possui seções que atendem a comunidade local em diversas áreas, como Turismo, Cidadania e Serviços como Saúde e Educação.

A identidade binacional também faz parte de sua missão jornalística. "Somos uma cidade fronteiriça e no Diário Corumbaense procuramos aproximar as culturas do Brasil e da Bolívia para nos unir mais por nossas tradições", disse o jornalista Cabral, brasileiro de mãe boliviana. Ele citou o exemplo da festa da Virgem Maria de Urkupiña, que é celebrada em mais de 20 cidades da Bolívia. Com uma missa e uma pequena entrada folclórica, a celebração também marca presença em cortejos em Corumbá.

Em junho de 2023, os tradicionais festejos de junho ganharam espaço nas páginas impressas e no site deste jornal local. "Festeiros banham São João e renovam fé e devoção nas águas do rio Paraguai", é o título de uma reportagem escrita em estilo de crônica no último dia 24 de junho sobre o cortejo popular que levou o São João em uma procissão até o rio Paraguai. Os habitantes de Corumbá homenagearam o santo e o banharam em um gesto simbólico de benção. "É uma das manifestações mais populares do centro-oeste brasileiro e é reconhecida como Patrimônio Imaterial da Humanidade desde 2021. E nos parece importante marcá-lo em nossa comunidade, que também inclui cidadãos bolivianos", disse Cabral.

Two men at a border crossing in South America looking at a camera with a big lens and writing something in a notebook

Leonardo Cabral e Anderson Gallo se preparando para entrevista no ponto 2 da fronteira Brasil-Bolívia (Foto: Anderson Gallo e Leonardo Amaral, Diário Corumbaense)

A redação do Diário Corumbaense está localizada no centro da cidade. Essa parte de Corumbá, não muito longe do rio Paraguai, ainda tem ares de bairro do interior, com ruas compridas, lojas e prédios em estilo moderno. Algumas casinhas ostentam arquitetura colonial. Em frente à redação, na hora da sesta, quase não há movimento de pessoas ou transporte. Os vizinhos recuam por causa do calor e do calor de mais de 30 graus . Ao lado da sala onde trabalham os três jornalistas do Diário Corumbaense, há uma enorme gráfica onde os 1.500 exemplares semanais são impressos e vendidos por R$ 1,00 todas as quintas-feiras.

A credibilidade pública e a ética jornalística são vitais para o sucesso do jornalismo. Luiz Julião Rocha tem 39 anos e mora em Corumbá, onde trabalha com turismo. "O Diário Corumbaense escreve com riqueza de detalhes. Isso pode ser sentido na precisão das informações, em seus textos", afirmou.

Por seu lado, Cabral recorda um dos comentários que mais  orgulharam a si e aos colegas da redacção. “Certa vez, por ocasião de uma entrevista que fiz com uma comandante militar da região, ao final, ela me disse que as únicas notícias que ela acreditava serem verdadeiras eram as publicadas no Diário Corumbaense”, contou.

O jornal é sustentado por meio de publicidade de clientes regulares e outros que o apoiam temporariamente. "Há dezesseis anos, quando criamos o jornal, ele era distribuído apenas em pontos de venda até migrar para o online. Hoje imprimimos apenas uma vez por semana e temos espaço publicitário", disse Rosana Nunes, diretora fundadora do Diário Corumbaense .

Vivemos em um mundo em que as histórias desaparecem em questão de segundos e histórias fugazes abundam online. Em meio a esse contexto, o Diário Corumbaense faz a diferença aos olhos de seus leitores. “Neste jornal, a notícia adquire um ritmo dinâmico e local que se baseia em um diálogo constante com as preocupações e interesses da nossa comunidade”, disse Julião Rocha, um dos leitores do jornal.

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A colaboradora Soledad Dominguez é uma jornalista que cobre e escreve reportagens sobre direitos humanos, igualdade racial e inovação no jornalismo na Argentina e no Brasil.

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