Por ocasião do Dia Internacional pelo Fim da Impunidade dos Crimes contra Jornalistas, a LatAm Journalism Review destaca quatro casos emblemáticos na região que permanecem em grande parte impunes.
Mais da metade (56%) dos assassinatos de jornalistas no Brasil nas últimas três décadas estão em “total impunidade”, ou seja, ninguém foi condenado por esses crimes. Esse é o caso de 25 dos 44 jornalistas assassinados por seu trabalho no país desde 1992, de acordo com o Comitê para a Proteção de Jornalistas (CPJ).
Pedro Palma, proprietário do semanário impresso Panorama Regional, é um desses 25.
Palma foi assassinado à luz do dia em frente à sua casa, no município de Miguel Pereira, interior do estado do Rio de Janeiro, em 13 de fevereiro de 2014. Nove anos depois, a investigação sobre o crime segue aberta e ninguém foi responsabilizado. Esse caso ilustra os obstáculos para a identificação e a responsabilização de autores materiais e mandantes de crimes contra jornalistas no Brasil.
Negligência, problemas de comunicação entre as autoridades responsáveis e a imposição de sigilo sobre o inquérito policial são alguns dos fatores que contribuem para a impunidade do assassinato de Palma, segundo a iniciativa internacional A Safer World For The Truth. Um projeto colaborativo entre as organizações Free Press Unlimited (FPU), CPJ e Repórteres Sem Fronteiras (RSF), a iniciativa investigou o caso de Palma entre 2021 e 2022 e publicou o relatório “The Case for Transparency: Opportunities for Justice in the Case of Pedro Palma and Beyond” (“O caso da transparência: oportunidades para a Justiça no caso de Pedro Palma e mais além”) em abril de 2023.
Jos Midas Bartman, coordenador de pesquisa na FPU e um dos autores do relatório, disse à LatAm Journalism Review (LJR) que, em comparação com outros casos de impunidade em assassinatos de jornalistas que ele analisou em outros países, “não se trata de uma investigação totalmente malfeita ou em que houve uma clara obstrução da justiça”.
“Não foi tão ruim assim. Acredito que as autoridades esperavam ter progredido com a investigação, mas havia questões estruturais que impediram que se chegasse à justiça”, disse ele.
Para o pesquisador, o caso de Palma é representativo dos assassinatos de jornalistas não apenas no Brasil, mas também em vários países. Globalmente, jornalistas locais que trabalham em meios pequenos, dos quais muitas vezes são eles mesmos os proprietários, são muito mais visados do que jornalistas que trabalham em grandes meios nas capitais, disse ele.
“Com frequência, [os jornalistas assassinados] são repórteres que cobrem a relação entre o crime organizado e a política, corrupção e desvio de dinheiro público, são críticos em relação aos detentores do poder local e não têm a proteção dos holofotes da capital”, disse ele. “Eles geralmente estão em um município, trabalhando para seu próprio meio de comunicação, e não têm a proteção de grandes organizações de mídia. Mas eles ainda podem criticar certas pessoas, e não apenas criticar, mas tirar os esqueletos do armário e chamar a atenção com suas notícias.”
Palma era editor-chefe e proprietário do semanário impresso Panorama Regional, que ele, sua esposa e seu pai fundaram em 1994. O jornal cobria os acontecimentos culturais e políticos de Miguel Pereira e outros municípios do centro-sul do estado do Rio. Nas eleições municipais de 2012, o Panorama Regional apoiou abertamente o candidato André Português à prefeitura de Miguel Pereira. Porém, quem venceu aquelas eleições e se tornou prefeito foi Cláudio Valente, que o jornal “criticava fortemente” por supostas má gestão e corrupção, afirmou o relatório sobre o caso.
A investigação da A Safer World for the Truth analisou edições do Panorama Regional entre junho de 2013 e fevereiro de 2014. Segundo o relatório, se destacaram no jornal nesse período as críticas ao trabalho da prefeitura de Miguel Pereira e as investigações sobre irregularidades nas licitações para a realização de eventos culturais na cidade.
Bartman afirmou que Palma era “um ativista do acesso à informação, de certa forma”. Dias antes de ser assassinado, ele encaminhou pedidos de acesso à informação pública sobre as finanças da prefeitura e as licitações relacionadas à festa de carnaval na cidade.
“Esses são movimentos perigosos [para jornalistas locais], porque isso realmente significa que estão tentando tirar os esqueletos do armário, realmente tentando encontrar provas, evidências reais de abuso de poder e corrupção”, disse Bartman.
No dia 13 de fevereiro de 2014, Palma chegava em casa quando dois homens passaram por ele em uma motocicleta. O homem na garupa desceu da moto, se aproximou de Palma e atirou três vezes contra ele, que morreu no local. O homem dirigindo a moto deu a volta, o atirador subiu na garupa e os dois fugiram. A cena foi registrada por câmeras de segurança da casa de Palma e as imagens foram divulgadas pela polícia em abril de 2014.
O assassinato de Palma aconteceu após pelo menos dois anos de ameaças ao jornalista por conta de seu trabalho, algumas delas reportadas pelo jornalista à polícia, conforme afirmaram seus familiares na época de sua morte.
A princípio, a investigação ficou por conta da 96ª Delegacia de Polícia (DP) de Miguel Pereira. Um mês depois do crime, foi repassada à Delegacia de Homicídios da Baixada Fluminense, no município de Belford Roxo, a pedido do Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ). Oito anos depois, em junho de 2022, o caso foi enviado à 10a Delegacia de Acervo Cartorário (DEAC), unidade encarregada de “concluir procedimentos investigatórios”.
O relatório internacional sobre o caso de Palma concluiu que houve “atrasos excessivos e indevidos em estágios cruciais da investigação oficial (...) devido à comunicação lenta e à falta de vontade de agir por parte dos integrantes do sistema de justiça criminal”. Também segundo o relatório, “a divisão de homicídios encarregada do caso negligenciou repetidamente as solicitações do Ministério Público para que ações investigativas fossem realizadas”.
Além disso, dados telefônicos que poderiam ter sido analisados para identificar suspeitos supostamente acabaram perdidos ao longo da investigação. Segundo o relatório, um policial da Delegacia de Homicídios disse que não conseguiu encontrar os dados enviados pelas operadoras de telefonia. E os agentes que receberam autorização judicial para analisar esses dados em 2017 – três anos depois do assassinato de Palma – não trabalham mais na delegacia.
“Essa é uma questão importante que fez com que a investigação não fosse concluída e que ninguém fosse processado”, acredita Bartman.
Um homem apontado como suspeito de assassinar Palma foi detido em junho de 2014 no Rio de Janeiro. Segundo o relatório sobre o caso, esse homem não foi acusado judicialmente pelo crime e não se sabe o que aconteceu com ele após a prisão. A LJR tentou entrar em contato com a Polícia Civil do Rio de Janeiro por email e por telefone para conseguir mais informações, mas não recebeu resposta até o fechamento dessa reportagem.
A iniciativa A Safer World for the Truth também criticou a falta de transparência na investigação, sobre a qual foi imposto segredo de Justiça desde o início. Isso impediu que familiares de Palma tivessem acesso ao caso e pudessem “exercer seu direito legal de propor que provas adicionais fossem coletadas ou que testemunhas fossem ouvidas, e de examinar a investigação para evitar a apropriação indevida de provas”, afirmou o relatório.
A viúva de Palma só conseguiu acessar os arquivos da investigação em 2022, e só depois de entrar na Justiça requerendo seu direito de ter acesso aos desdobramentos do caso para se inteirar do que havia sido feito até o momento. Bartman contou que foi por meio dela que a equipe da A Safer World for the Truth pôde analisar a investigação oficial. Segundo o relatório, o inquérito policial sobre o assassinato de Palma consiste em três volumes com cerca de 500 páginas no total, e outros cinco volumes com milhares de páginas de anexos.
Angelina Nunes, coordenadora do Programa Tim Lopes, da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), colaborou com a iniciativa internacional na investigação do caso Palma. Ela esteve em Miguel Pereira e entrevistou familiares e amigos de Palma, assim como testemunhas do assassinato, policiais e operadores de Justiça que trabalharam no caso. Nunes disse à LJR que, tantos anos depois do crime, as pessoas na cidade ainda têm medo de falar sobre o ocorrido. Também apontou a rotatividade entre as pessoas responsáveis pelo caso no MPRJ, o que contribui para a morosidade da Justiça e a impunidade desse crime.
“Quando eu conversei com o promotor responsável pelo caso há um ano e pouco, antes de nós fazermos o relatório, ele disse: ‘em seis meses eu vou concluir o caso’. Seis meses depois, eu liguei para ele, e já não era mais ele [o promotor do caso], era outra pessoa. Então cada vez que muda o promotor que está cuidando do caso, praticamente recomeça do zero [o trabalho do MPRJ]”, disse ela.
A LJR entrou em contato com o órgão para obter mais informações sobre o status atual do caso Palma.
“As investigações seguem em andamento. Não é possível fornecer maiores informações em razão do sigilo decretado”, respondeu o MPRJ.
Embora o assassinato de Palma não tenha sido solucionado, a investigação sobre o caso levou a pelo menos três grandes operações policiais entre 2015 e 2016 para desbaratar supostos esquemas de corrupção nos governos locais de Miguel Pereira e pelo menos outros sete municípios da região. Elas se basearam no trabalho de Palma e em pistas que surgiram ao investigar o assassinato do jornalista.
Para Nunes, as operações acabaram ofuscando as investigações sobre o assassinato de Palma.
“Essas operações ganharam volume, ganharam força, porque [os supostos esquemas de corrupção] envolviam prefeitos, secretários, muitas autoridades. Era uma corrupção absurda, então [as operações envolveram] Ministério Público, Polícia Federal, Polícia Civil… Mas o homicídio [de Palma] acabou sendo não esquecido, mas deixado de lado porque surgiram outras pontes de investigação”, disse ela.
Para Bartman, essas operações tornaram visível o fato de que não apenas o público, mas também “instituições democráticas dependiam das informações de Pedro Palma”.
“Por causa das reportagens de Pedro Palma e também, eventualmente, de seu assassinato, o Ministério Público iniciou investigações de corrupção em larga escala que, na verdade, receberam muito mais atenção do que o assassinato do próprio Pedro Palma”, disse ele. “Essas instituições, até mesmo o Judiciário, ficam de certa forma prejudicadas visualmente se esses jornalistas [investigativos locais] pararem de fazer seu trabalho. Com a morte de uma pessoa como essa, outras instituições têm muito menos capacidade, na verdade, de fazer seu trabalho e iniciar investigações. Até mesmo advogados e promotores leem jornais e dependem diretamente de informações jornalísticas.”
Em abril, na ocasião da publicação do relatório sobre o caso Palma, Bartman e outros coautores do documento apresentaram sua análise ao MPRJ. Segundo ele, as pessoas responsáveis pelo caso receberam bem a contribuição da iniciativa A Safer World for the Truth. O órgão se comprometeu a buscar os dados telefônicos supostamente perdidos pela polícia e, desde então, ouviu novas testemunhas, disse Bartman.
Segundo o CPJ, em 12 dos 44 casos de jornalistas assassinados no Brasil desde 1992 há “impunidade parcial”, ou seja, alguns suspeitos foram condenados pelos crimes, mas não todos. Apenas seis casos receberam “justiça plena”, na classificação do CPJ, com autores materiais e intelectuais responsabilizados pelos crimes.
Nunes destacou que a total impunidade do caso Palma, sem nenhum suspeito identificado, é “cruel” com a família do jornalista, que segue acompanhando o caso e lutando por justiça.
“A família fica em suspense. O que aconteceu exatamente? Quem mandou matar? Por que ele morreu? ‘Ah, quem matou foram aqueles dois rapazes na moto’. Sim, quem são essas pessoas? Quem contratou essas pessoas? Não foi um assalto, não tem uma característica de assalto. E ele já tinha recebido ameaças. Então é muito cruel, a família fica em suspense o tempo todo”, disse ela.
A impunidade também é “combustível” para outros crimes, afirmou Nunes.
“Se esse caso fica impune, se não há um desfecho, isso só gera mais violência. A impunidade é um combustível para mais crimes, porque as pessoas que cometem ou que mandam, os mandantes, têm a plena certeza de que nada vai acontecer”, afirmou.
Ela também apontou o impacto da impunidade sobre outros jornalistas na região, que podem se autocensurar para se proteger.
“Se mataram [Pedro Palma] e não deu em nada, por que eu, que tenho um veículo pequenininho, ou que sou freelancer, vou me meter nessa história? Por que eu vou me meter a fazer denúncias e investigar algumas coisas?”, questionou ela. “Isso acaba também servido de combustível para desestimular vários outros jornalistas, para eles mudarem a forma de trabalhar com medo de sofrer represálias, porque sabem que vai ficar impune.”