Todo relato jornalístico é resultado de uma série de escolhas: do enquadramento dado ao fato relatado às fontes ouvidas e até as palavras ou imagens que dão forma ao conteúdo final. Ao escolher o que incluir, a pessoa jornalista acaba escolhendo também o que vai ficar de fora, o que não será contado. Que forças moldam essas escolhas e como elas se relacionam com a objetividade jornalística?
No 18o Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo, realizado pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) em São Paulo entre 28 de junho e 2 de julho, profissionais debateram a objetividade em face das mudanças pelas quais o jornalismo vem passando nas últimas décadas. As jornalistas Fabiana Moraes, professora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e colunista do site The Intercept Brasil, e Ana Rita Cunha, diretora de audiência do site Aos Fatos, participaram de conversa moderada por Marcelo Träsel, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), no painel “Objetividade jornalística em pauta”.
O debate, realizado no dia 30 de junho, tratou de como a objetividade tem sido contestada e reelaborada enquanto pilar do jornalismo diante da reivindicação de novas perspectivas e abordagens na cobertura feita por, sobre e para grupos historicamente marginalizados e da desinformação disseminada em ambientes online.
“Afinal de contas, de que objetividade estamos falando?”, perguntou Moraes no início do debate. “De forma geral, percebo uma perspectiva muito binária da discussão sobre objetividade e subjetividade, quase como se uma coisa fosse a negação da outra”, disse ela. Em seu livro mais recente, “A pauta é uma arma de combate”, Moraes propõe justamente esses questionamentos sobre “subjetividade, prática reflexiva e posicionamento para superar um jornalismo que desumaniza”, como estabelece o subtítulo do livro.
“A objetividade é necessária ao jornalismo – a apuração, a entrevista, a checagem de dados”, disse Moraes, acrescentando que todas as reportagens que escreveu até hoje foram fruto de pesquisa e apuração. “Mas, obviamente, não podemos simplificar essa questão. Tudo que escolhi, para onde olhei, o que trouxe nos textos implicaram também escolhas sobre o que ficou de fora. Ou seja: fiz várias escolhas, e nenhuma delas – nem as minhas, nem as de vocês – é inocente. Essas escolhas têm invariavelmente classe, raça, gênero, território”, afirmou.
“Ao mesmo tempo em que eu traço essas escolhas objetivas, elas obviamente estão baseadas em questões subjetivas”, disse Moraes. Essa subjetividade está perpassada pelo contexto social e coletivo e, portanto, não pode ser reduzida à individualidade de cada profissional.
“A xenofobia, o racismo, o classismo não são questões individuais, mas são questões sociais e coletivas. E essas questões pautam minhas escolhas e pautam as escolhas de editores, fotógrafos, social mídia. (...) A subjetividade é uma questão individual e é uma questão coletiva. Não podemos esquecer que nós somos forjados coletivamente”, afirmou.
Träsel observou que este debate também se conecta com o problema da desinformação generalizada que se instalou nos últimos anos. “Algumas das rotinas produtivas que temos nas redações passaram a ser de certa maneira ‘hackeadas’ por grupos de interesse”, disse ele, ilustrando com o uso da imprensa pelo ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro para insuflar seus apoiadores contra jornalistas e disseminar mentiras.
Cunha trouxe então o ponto de vista de agências de checagem e do combate à desinformação na discussão sobre objetividade jornalística.
“Uma coisa que me incomoda nessa discussão é que [a objetividade] é sempre tratada como se fosse uma coisa só do repórter, e temos uma indústria sofrendo há muito tempo um processo de precarização que deixa os repórteres cada vez com menos tempo e menos recursos para trabalhar. Queremos discutir objetividade, mas o repórter trabalha 12 horas, ele tem que sair e entregar uma matéria no final [do dia] (...) Só faz sentido discutir objetividade se você pensar a prática coletiva do jornalismo”, disse ela.
No contexto da desinformação, o uso de ferramentas online de edição de imagens e redes sociais, exemplificou Cunha, possibilitou que aquilo que antes dava “uma cara de profissionalismo ao jornalismo” é hoje muito acessível para ser replicado por qualquer pessoa.
“Eles [desinformadores] ‘hackearam’ um pouco o que nós fazemos, só que eles fazem de uma forma que não podemos fazer no jornalismo, que é sem compromisso ético, e às vezes conseguem atingir as pessoas. A única forma de se contrapor é sendo melhor do que essas pessoas. E a única forma de ser melhor do que os desinformadores é fazer um trabalho mais completo, mais sério, e esse é um compromisso coletivo”, disse Cunha.
Esse compromisso deve contemplar o aumento da diversidade nas redações e um exercício de humildade e escuta ativa por parte dos jornalistas em relação à audiência, disse ela. A queda da confiança do público na imprensa, registrada nos últimos anos em pesquisas como a realizada anualmente pelo Instituto Reuters, impõe uma mudança nas práticas jornalísticas, defendeu Cunha.
“Já não podemos partir do pressuposto de que as pessoas confiam em nós”, disse ela. “É um exercício novo que estamos sendo obrigadas a fazer. Como vamos fazer as pessoas voltarem a acreditar [no jornalismo]? É uma coisa que não precisávamos fazer há 10 anos. Não é que todo mundo confiasse, mas havia um ambiente muito mais propício a aceitar a imprensa, e isso exige que revisemos algumas práticas. Será que não devemos dar mais informação, explicar melhor o caminho que fizemos, por que fizemos certas escolhas? Não dar isso como dado, como se as pessoas já entendessem todo o processo, como se tudo fosse óbvio”, sugeriu Cunha.