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Lei peruana exige aval do governo para ONGs e mídia com fundos internacionais

Uma nova lei aprovada no Peru constitui uma das mais sérias ameaças ao jornalismo independente e à sociedade civil do país nas últimas décadas, dizem críticos. 

Sancionada pela presidente Dina Boluarte em 14 de abril, a Lei N.º 32301 impõe a necessidade de autorização prévia da Agência Peruana de Cooperação Internacional (APCI) a todas as atividades e projetos da sociedade civil receptores de recursos de cooperação internacional. A lei diz que a APCI “goza de autonomia técnica, econômica, orçamentária e administrativa”. O órgão, no entanto, está vinculado ao Ministério das Relações Exteriores, e o seu diretor é nomeado pelo governo.

Jornalistas e membros de organizações da sociedade civil dizem que, sob o argumento oficial de estabelecer maior transparência no uso de fundos de cooperação internacional, a lei transforma a APCI em um mecanismo de controle político sobre as atividades de organizações não governamentais, incluindo meios de comunicação independentes. Eles veem paralelos entre a iniciativa e projetos semelhantes de inibição da sociedade civil já aprovados em países autoritários como Rússia, Bielorrússia, Nicarágua e Venezuela.

“Se quisermos investigar violações de direitos humanos ou casos de corrupção, será o governo quem nos dará autorização", afirmou Fabiola Torres, diretora do veículo Salud con Lupa, à LatAm Journalism Review (LJR). "Essa lei não é coincidência. É parte da captura do Estado peruano por uma coalizão política de partidos cujos membros estão sendo investigados por jornalistas".

Como a lei opera

De acordo com a nova lei, todas as atividades, projetos e gastos que recebem recursos de cooperação técnica internacional precisam ser registrados publicamente com o APCI. Além disso, a nova norma autoriza a Superintendência Nacional de Aduanas e de Administração Tributária (Sunat) a criar uma unidade especializada para a fiscalização das ONGs. Segundo Boluarte, o objetivo é garantir “que os recursos, tanto públicos quanto privados, se utilizem de maneira honesta”.

A lei afeta veículos independentes peruanos, que frequentemente operam sob a figura legal de organizações sem fins lucrativos e dependem de recursos de organizações filantrópicas ou de apoio à liberdade de imprensa internacionais. 

Princípios jornalísticos básicos, como o sigilo profissional e a capacidade de conduzir investigações sem a supervisão do Estado, não podem ser atendidos de acordo com a nova legislação, dizem seus críticos. Além disso, outros aspectos da lei prejudicam a capacidade de jornalistas se defenderem legalmente, ao proibirem que recursos internacionais sejam utilizados para ações contra o Estado. Por exemplo, não será possível contar com consultorias para requerer informações oficiais, nem tampouco se defender de processos de membros do Estado.

Suposta transparência

Durante a cerimônia de assinatura da lei no Palácio do Governo, Boluarte afirmou que "esta lei velará pelo supremo interesse da democracia, da unidade nacional e colocará sob uma revisão exaustiva uma minoria de ONGs que atuam contra os interesses do nosso país".

A medida, segundo o governo, busca combater entidades que, nas palavras da mandatária, estão “semeando ódio e atacando o nosso sistema”. O projeto foi aprovado pelo Congresso com 82 votos a favor, 16 contra e 4 abstenções, e dispensou segunda votação, sinalizando amplo respaldo político.

A presidente alega que busca promover a transparência. "Não se trata de controle, mas de clareza; não é fiscalização arbitrária, mas prestação de contas", afirmou.

A promulgação da lei acontece em um contexto de deterioramento das condições democráticas no Peru. Boluarte, conta com uma aprovação de apenas 4%. Eleita como vice-presidente numa chapa de extrema esquerda – comandada por Pedro Castillo, que acabou destituído e preso após uma tentativa de golpe de Estado –, ela aliou-se à extrema direita fujimorista e hoje conta com uma supercoalizão no Congresso. O atual Parlamento nomeou seis entre os sete juízes do Tribunal Constitucional. 

O jornalismo e a sociedade civil representam vozes críticas cada vez mais raras em um sistema mais uniforme. Como resultado, jornalistas dizem terem se tornado alvos crescentes. 

Censura explícita

Jornalistas e defensores da liberdade de expressão esperam os seguintes efeitos da lei para o jornalismo: controle prévio e censura, violação do sigilo profissional e de fontes, bloqueio de financiamento, risco de fechamento, aumento da burocracia e risco de punições arbitrárias. 

 "Como alguém vai informar a investigação que está fazendo a uma agência? E como o Estado vai validar uma investigação contra ele?", disse Zuliana Lainez, presidente da Associação Nacional de Jornalistas (ANP, na sigla em espanhol), à LJR. “Para nós, é claro que é censura”.

A jornalista Clara Elvira Ospina, fundadora da Epicentro.tv, disse que a aprovação da lei acontece por uma combinação entre interesses particulares de políticos investigados por ONGs e meios de comunicação, um desejo de vingança contra a sociedade civil e um ambiente mais amplo de desinformação e propaganda contra as ONGs. 

"A lei é produto de uma campanha de políticos com interesses particulares em destruir as ONGs, porque não conseguiram passar à impunidade por litígios estratégicos", afirmou Ospina à LJR.  "Apresentam as ONGs como se utilizassem fundos de outros países para fazer dano ao Peru".

A estratégia, que surgiu na Rússia sob Vladimir Putin, não é novidade na América Latina. Venezuela, Nicarágua, Guatemala e Paraguai aprovaram legislações que asfixiam a sociedade civil sob a alegação de proteger o país de agentes estrangeiros. 

Uma das críticas à lei peruana é que o seu texto é vago. Ao genericamente vedar projetos que provoquem "intervenção em política interna" ou "atos que afetem a ordem pública, a segurança cidadã, a defesa nacional", pode inibir praticamente toda crítica, afirmam. 

"A linguagem da lei é tão ampla, tão aberta e tão arbitrária que qualquer coisa pode ser utilizada como uma suposta afronta ao Estado peruano", afirmou Rodrigo Salazar Zimmermann, diretor executivo do Conselho de Imprensa Peruano, que representa os maiores veículos do país, à LJR.

A lei afeta principalmente veículos independentes que dependem fortemente de apoio internacional e cobrem assuntos como direitos humanos e ambientais. Todavia, qualquer veículo que receber apoio de cooperação internacional, incluindo para projetos específicos, pode ser afetado.

Quanto à possibilidade de a lei mirar principalmente as ONGs e o jornalismo ser apenas uma vítima, Ospina diz que não houve erro de cálculo.

"Eles sabiam perfeitamente o que faziam. Têm um objetivo comum e amplo", afirmou.  "Além disso, nossos críticos não nos apresentam como meio de comunicação, mas como ONGs".

Estratégia de defesa num panorama desfavorável

A nova lei gerou forte reação de jornalistas e meios de comunicação independentes. Em um comunicado assinado por centenas de profissionais e entidades de defesa da liberdade de expressão e dos direitos humanos peruanos e internacionais, eles alertam que a "norma estabelece disposições que são um ataque direto à liberdade de imprensa, de um modo que não apenas contraria a Constituição Política, mas também padrões e jurisprudência internacionais sobre o tema". 

À exceção do jornal La República, os maiores meios de comunicação peruanos, incluindo o jornal conservador El Comercio, o canal de TV América Televisión, e as rádios CRP e RPP não se manifestaram diretamente sobre a lei, e não assinam a carta crítica.

Já a Organização das Nações Unidas manifestou preocupação com a nova legislação. Gina Romero, relatora especial sobre a Liberdade de Reunião Pacífica e de Associação, afirmou que "as modificações propostas à APCI geram riscos de interferência indevida na estrutura e no funcionamento interno das organizações não governamentais”. 

Em comunicado enviado ao governo peruano em junho de 2024, especialistas da ONU alertaram que a aprovação das mudanças na Lei da APCI afetaria gravemente os direitos humanos, especialmente o direito à liberdade de associação, e representaria um retrocesso nos compromissos internacionais assumidos pelo país.

A lei já está em vigor, e, segundo o seu texto, as ONGs precisam se registrar. 

Segundo o advogado Juan Carlos Ruiz Molleda, a “Lei 32301 ignora princípios constitucionais básicos, como a liberdade de associação, a liberdade de expressão, o direito ao trabalho e o direito de participar dos assuntos públicos”.

A estratégia para questioná-la legalmente é afirmar que a lei é inconstitucional em tribunais menores, disseram as jornalistas ouvidas pela LJR. Como o Tribunal Constitucional teve quase todos os seus membros indicados pelo atual Congresso (no Peru, a renovação da Corte é a cada cinco anos), a estratégia é ir para cortes inferiores, utilizando-se de medidas cautelares, chamadas no país de ações de amparo.

"Vamos entrar com ações de amparo, porque se algum juiz puder determinar a suspensão da aplicação da lei, então, isso pode gerar jurisprudência", afirmou Zuliana Lainez.

Esta não é a única lei recente que pode asfixiar a imprensa peruana. Em março, o Congresso do país aprovou uma lei, apelidada de Lei Mordaça, que aumenta as penas de prisão por difamação e calúnia, e que estabelece que o direito de resposta de quem se sentir difamado deve ser de 24 horas. 

A Lei Mordaça ainda precisa passar por segunda votação para ser aprovada, e tem muitas similaridades a um projeto semelhante que foi considerado em 2023. Segundo a nova legislação proposta, qualquer cidadão pode acabar preso por um comentário deixado em redes sociais, disse Rodrigo Salazar Zimmermann. Ademais, o prazo para respostas é muito curto. 

“Um dia é praticamente impossível para tramitar e investigar uma queixa de forma séria", afirmou Salazar Zimmermann.

Sobre o contexto geral que permite isso, os entrevistados são unânimes ao afirmar que o autoritarismo cresce no Peru. Segundo uma pesquisa divulgada no ano passado, mais da metade dos peruanos não acredita que a democracia seja a melhor forma de governo, e 87% estão insatisfeitos com o atual modelo.

O país teve seis presidentes em seis anos, até a impopular Boluarte fazer um acordo com o fujimorismo para seguir no poder. A fragmentação política é enorme, com mais de 40 partidos, e acredita-se que interesses do narcotráfico, da mineração ilegal e de outras formas do crime organizado tenham se imiscuído no poder público. 

Em vistas disso, a ameaça à imprensa peruana se insere em um risco à democracia mais amplo. 

 "Há uma degradação democrática e institucional muito forte, que também afeta a imprensa", disse Salazar Zimmermann. "O Peru está a caminho de um autoritarismo muito forte".

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