Uma pesquisa experimental feita em parceria entre a academia, um jornal brasileiro e uma empresa de consultoria mostraram que enviar um email de alerta e oferecer uma assinatura gratuita de um veículo por três meses foi capaz de reduzir a crença em fake news.
O experimento foi realizado em São Paulo, entre novembro e dezembro, pelos cientistas políticos Felipe Nunes, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); Nara Pavão, da Federal de Pernambuco (UFPE); e Fred Batista, da Universidade da Carolina do Norte em Charlotte, nos EUA, em parceria com a Quaest e a Folha de S.Paulo.
O estudo, que entrevistou 1 mil pessoas, tinha como objetivo buscar uma espécie de vacina contra as notícias falsas, principalmente no período eleitoral – neste caso, durante as eleições municipais de 2020.
O grupo inicial foi dividido em dois, com 500 pessoas cada, para que um recebesse o "tratamento", e o outro, sem intervenção da pesquisa, funcionasse como controle. Os grupos foram escolhidos de forma a representar estatisticamente o eleitorado da cidade de São Paulo, segundo critérios de gênero, idade, renda, escolaridade, religião, entre outros. Também foi considerado o voto dos entrevistados nas eleições presidenciais de 2018, para garantir que a proporção de pessoas mais alinhadas à esquerda ou à direita, por exemplo, seria a mesma do eleitorado de São Paulo.
Em seguida, os pesquisadores mostraram duas rodadas de 4 notícias cada, rotuladas como falsas por agências de fact-checking, mas os entrevistados não foram informados sobre essa classificação. Os dados coletados na primeira rodada serviram de referência, para comparação com a segunda etapa.
Entre as rodadas, o grupo de tratamento recebeu um email, que continha dicas simples sobre como identificar notícias falsas e uma mensagem de alerta ("ATENÇÃO!!!"), que pedia que o leitor checasse conteúdo antes de compartilhar e se juntasse ao combate às fake news. O email também continha uma matéria da Folha, sobre a newsletter que o jornal tinha lançado com checagem de notícias falsas. Além do email, o grupo de tratamento recebeu uma assinatura gratuita do jornal por três meses.
A pesquisa segue em andamento e, por isso, ainda não há um paper final, mas dados preliminares foram publicados pela Folha em janeiro. De acordo com esse resultado inicial, 65% dos entrevistados do grupo controle consideraram como verdadeira pelo menos uma das notícias falsas, na segunda rodada de entrevistas. Já no grupo que recebeu o email e a assinatura, essa porcentagem foi significativamente menor, de 46%.
Ao mesmo tempo, a comparação dentro do grupo de tratamento, antes e depois de receber o email de alerta e a assinatura, também indicou que a crença em fake news caiu 8 pontos percentuais, afirmou Felipe Nunes, um dos autores do estudo, à LatAm Journalism Review (LJR). "Os dois resultados são complementares e reforçam o achado do estudo", explicou ele, que é professor de ciência política da UFMG e diretor da consultoria Quaest.
Outro ponto interessante da pesquisa é que uma notícia falsa, que dizia que a Rede Globo pertencia a três países árabes, foi mostrada duas vezes, na primeira e na segunda rodadas. E, inicialmente, a porcentagem de pessoas que consideraram aquele conteúdo verdadeiro foi igual nos dois grupos, de cerca de 20%. Já na segunda rodada, essa porcentagem caiu para para 12% no grupo que recebeu o email e a assinatura, mais um indicativo da eficácia do tratamento. Enquanto isso, no grupo controle ocorreu o oposto, mais pessoas passaram a acreditar na notícia falsa: 39%.
"Com isso sabemos que o efeito de repetir a mesma notícia falsa, se as pessoas não estão 'vacinadas' [não receberam o tratamento da pesquisa], é que elas tendem a acreditar mais nesse conteúdo falso", aponta Nunes.
Após identificarem que o tratamento em conjunto teve efeito, os pesquisadores agora investigam qual é o peso do email e da assinatura do jornal na redução da crença em fake news.
"A evidência que temos hoje, mas ainda não é conclusiva, porque essa parte do estudo não está totalmente pronta, [...] é que a eficácia do email foi muito grande. O maior efeito está entre quem parou, abriu e leu o email. Até porque, no caso da assinatura, o percentual das pessoas que usou o voucher foi muito baixo", diz Nunes.
Das 500 pessoas do grupo de tratamento, 272 abriram o email. Desses 500, 53 finalizaram o cadastro da assinatura, sendo que 12 usaram o voucher para ler alguma matéria.
"Ou seja, o simples fato de as pessoas serem informadas que elas ganharam a assinatura grátis da Folha e depois receberem o email já ajuda no processo de detecção de fake news. Nós interpretamos que a pessoa fica motivada a procurar problemas. Mas quem de fato lê o email e recebe a informação, aí o efeito é ainda maior. Nós não temos ainda uma conclusão específica de qual é o efeito mais absoluto, mas a gente acha que tem um pouco de mistura", explica Nunes.
O professor cita um outro ponto do mesmo estudo, que mostra uma correlação entre o consumo frequente de notícias de alguns meios de comunicação como Folha, UOL e Rede Globo, e uma tendência a acreditar menos em conteúdo falso.
"Quer dizer, parece que quem menos acredita em fake news é quem lê esses jornais. Parece ter um perfil de pessoa que procura esses meios para se informar, mas isso não quer dizer que é porque elas leem esses jornais que elas acreditam menos em fake news, essas coisas estão todas misturadas", diz.
Fred Batista, professor de ciência política da Universidade da Carolina do Norte em Charlotte, que também é autor do estudo, afirma que o tratamento geral funcionou, mas que o email teve um efeito maior.
"É sim o email que está fazendo o heavy lifting [trabalho pesado]. O que suscita algumas questões. A gente sabe que a intervenção funcionou, ela reduziu a crença em fake news, mas ela promove educação midiática ou ela é mais uma campanha de alerta?", disse ele, em entrevista à LJR.
O que Batista está questionando é se o email foi capaz de ensinar os entrevistados a efetivamente discernir um conteúdo falso de um verdadeiro ou se apenas gerou um alerta, deixando os leitores mais atentos em geral. Com isso, é possível que os entrevistados tenham se tornado, inclusive, mais desconfiados das notícias verdadeiras, explica Batista.
"A gente não testou isso, [para saber] se foi alfabetização midiática, que é o aprendizado, a habilidade de distinguir o verdadeiro do falso, ou se foi simplesmente um alerta", diz ele, que quer incluir notícias verdadeiras nas próximas pesquisas para entender melhor essa questão. Entretanto, ele afirma que o experimento incluiu outros testes, como a confiança na imprensa, que não aumentou com o tratamento.
"Também medimos atitudes em relação a fact-checking e não mudou nada. Então eu entendo que funcionou como um alerta e não um aprendizado, mas claro que a nossa evidência sobre isso é indireta", afirma Batista.
De qualquer forma, ele diz que a pesquisa aponta possíveis caminhos sobre como lidar com as notícias falsas. Caso o tratamento tenha sido apenas um alerta, Batista afirma que isso mostra como o Estado, o Judiciário e a imprensa podem fazer campanhas de conscientização contra fake news em períodos mais críticos, como eleições.
Por outro lado, se a intervenção da pesquisa teve um efeito de educação midiática, isso seria um sinal positivo para se aumentar o investimento em políticas públicas nesse sentido.
"Se estiver acontecendo alfabetização, é bem provável que intervenções mais fortes, como na escola, vão ter efeito maior do que isso", afirma Batista.
Segundo os pesquisadores, o resultado vai no mesmo sentido de achados anteriores do grupo, sobre a eficácia de desmentir notícias falsas. Em 2018, outro estudo dos mesmos acadêmicos indicou que correções e checagens tinham pouco impacto na crença das pessoas em fake news durante o período eleitoral.
De acordo com Nunes, ficou claro que desmentir uma notícia falsa, seja como uma forma de autodefesa, ou por meio de mecanismos de fact-checking, não era suficiente para mudar a opinião dos entrevistados.
"As pessoas têm um viés de confirmação, estão mais preocupadas em confirmar uma opinião que elas já têm, para poderem ter razão, do que refletirem sobre os dados para formar uma opinião mais informada. No fundo, as pessoas não são expostas a essas checagens e mesmo as que são expostas não mudam de posição, ou seja, o jeito é ajudar as pessoas a tomarem as decisões por si só. Quando você tenta influenciar, a eficácia é menor. Elas precisam tirar as suas próprias conclusões", diz Nunes.
Batista segue o mesmo raciocínio. "Ninguém deixa de acreditar porque viu uma correção. Ou seja, não tem como atacar o sintoma uma vez que ele se manifesta, porque as crenças são altamente partidárias. Desta vez, acho que a pesquisa sugere que o melhor é tratar antes, gerar uma imunidade, com uma medida educacional, tornar as pessoas mais habilidosas e alertas para esse problema", diz ele.
Batista reforça que não basta apenas ensinar a identificar os boatos, é preciso também explicar quais são as características de um conteúdo verdadeiro, bem como o que é uma reportagem, uma coluna, um editorial etc.
Para o editor da equipe de jornalismo de dados da Folha de S. Paulo, Fábio Takahashi, que revisou a metodologia e ajudou a elaborar as perguntas do estudo, a questão das notícias falsas é complexa e não vai ser resolvida com apenas uma solução.
"O que é interessante da pesquisa é que, se a gente chegar na pessoa, a gente tem efeito, essa é a parte positiva. Agora tem um desafio enorme de como chegar nas pessoas. A gente vai ter que, como indústria, pensar em formas melhores de fazer isso. E o outro caminho é a ponta, com a educação midiática, mostrar o quão importante é o trabalho do jornalista profissional. Os dois lados precisam ser muito bem trabalhados ainda", disse ele, que é fundador e presidente da Jeduca (Associação de Jornalistas de Educação), à LJR.
Da mesma forma, incluir dicas sobre como identificar boatos em reportagens é uma das possíveis medidas, mas também não é uma bala de prata, argumenta Takahashi.
"A educação midiática tem mais impacto, mas demora mais para ter efeito. Fazer uma reportagem sobre dicas, para quem cair ali acho que vai ter um efeito rápido, mas como você atrai uma pessoa a clicar num link desses? Uma matéria dessas não vai estar entre as mais lidas, as mais sedutoras. Então acho que são vários tiros que precisamos dar, não vai ser só um", afirma o jornalista, que coordena o podcast e newsletter Folha na Sala, voltados para professores.
Parceria entre jornal, academia e consultoria
A pesquisa só foi possível graças a uma parceria pouco comum entre academia, jornal e consultoria. A Folha cedeu as assinaturas gratuitas para o grupo de tratamento, e a Quaest cobriu os custos para realizar as entrevistas e aplicou o questionário. A elaboração do estudo ficou por conta dos acadêmicos, e o desenho da pesquisa foi submetido e aprovado por três comitês de ética de duas universidades americanas e de uma brasileira.
Planejada desde julho de 2020, a pesquisa se beneficiou de uma relação prévia da Quaest com a Folha. Eles já vinham trabalhando juntos desde 2019, na divulgação de uma ferramenta elaborada por Nunes, o índice de popularidade digital. Com isso, já havia uma confiança e um bom fluxo de trabalho estabelecidos quando surgiu a ideia da pesquisa sobre notícias falsas.
"Ficamos bem satisfeitos com o resultado, tivemos um bom material jornalístico [para publicar]. E não dá para desprezar que foi um efeito positivo institucional para a Folha, UOL, Globo, para a imprensa profissional como um todo", afirma Takahashi.
Nunes diz que buscou a Folha para o projeto "pela sua credibilidade, grande circulação e relevância no Brasil". Batista afirma que, sem o jornal, o estudo teria sido muito caro e provavelmente inviável. "Foi uma parceria mesmo, não foi que um contratou o outro, houve contribuição de todas as partes", diz.
Batista destaca ainda que essa foi uma oportunidade de realizar um experimento de campo, algo que é raro nas pesquisas acadêmicas da ciência política e da comunicação no Brasil. "É um tipo de estudo difícil de fazer, porque envolve um experimento com tratamento e controle. Nessa área de fake news é muito raro, são pouquíssimos. Acho que no Brasil é inédito".
Para ele, a imprensa e a academia devem investir mais em parcerias, principalmente no contexto atual.
"Nós juntamos dois grupos que estão ameaçados, os jornalistas profissionais e os cientistas. Tem sido cada vez mais comum que jornais e revistas façam parcerias e divulguem ciência. No nosso caso fizemos o caminho reverso, fizemos um estudo científico sobre o efeito do jornalismo profissional".
Os pesquisadores pretendem continuar investigando o tema e fundar um centro para estudos sobre desinformação no Brasil. O grupo conseguiu, no ano passado, aprovação para fazer um estudo maior sobre notícias falsas no país, com 5 mil entrevistados, que vai contar com um financiamento do Facebook.