Este artigo foi publicado originalmente na GIJN e está republicado aqui com autorização.
Por Ana Beatriz Assam
A morte de Tim Lopes mudou o jornalismo brasileiro para sempre. Em 2002, o repórter da TV Globo 一 a maior emissora de televisão do país 一 foi sequestrado, torturado e assassinado enquanto trabalhava disfarçado na investigação da exploração sexual de menores por traficantes de drogas em uma favela do Rio de Janeiro.
O crime brutal abalou a imprensa e levou profissionais da mídia a buscarem condições mais seguras para exercer o jornalismo. Foi nesse contexto que surgiu a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ou Abraji).
O ponto de partida foi o seminário ‘Jornalismo Investigativo: Ética, Técnicas e Perigos’, promovido pelo recém-formado Centro Knight para o Jornalismo nas Américas. Após o evento, realizado no Rio de Janeiro em 31 de agosto de 2002, o jornalista Marcelo Beraba convidou outros 44 jornalistas de diversos meios de comunicação brasileiros para se unirem em torno de uma associação profissional.
O chamado à ação de Beraba veio em um e-mail, e suas ambições eram claras: “Uma instituição formada e mantida por jornalistas, independente dos jornais e das entidades de classe, voltada para a troca de informações entre nós, para a formação e a reciclagem profissional, para o aprofundamento dos conhecimentos e uso de ferramentas na área do jornalismo investigativo, para a formação de uma literatura e banco de dados, para a promoção de seminários, congressos e oficinas de aperfeiçoamento profissional”.
David E. Kaplan, agora diretor executivo da GIJN, estava lá representando o Investigative Reporters and Editors (IRE). “Foi um momento emocionante”, lembra Kaplan, “ver os melhores jornalistas do Brasil se unirem em solidariedade e criarem planos ambiciosos para o futuro”.
A criação formal da Abraji aconteceu na segunda edição do seminário, em dezembro de 2002, quando cerca de 140 jornalistas se reuniram no auditório da Escola de Comunicações e Artes da USP.
“Teve uma motivação imediata com a morte do Tim Lopes em 2002. Não foi, digamos assim, o estopim, mas foi a motivação imediata”, explica Beraba, que veio a ser o primeiro presidente da Abraji. “Evidente que, para que aquilo gerasse algo racional, no calor da indignação e tristeza pela morte do Tim, é porque já tínhamos antes ideias a respeito da necessidade de se ter algum tipo de organização nos moldes do IRE funcionando no Brasil”.
A iniciativa de criar uma entidade para proteger, apoiar e capacitar jornalistas brasileiros aos poucos recebeu o apoio de entidades nacionais e internacionais.
“Minha gestão foi uma gestão de implantação, de criar a Abraji praticamente do nada”, relembra Beraba. “Mas nós tivemos um apoio importante do Knight Center e da McCormick Foundation e com esses recursos começamos a fazer um estatuto e montar uma pequena equipe profissional”.
“Eu tinha acabado de ganhar um aporte e tomei a causa desses jornalistas como o primeiro projeto do Knight Center”, explica Rosental Calmon Alves, Knight Chair in Journalism da Universidade de Austin, no Texas e fundador do centro. “Após a criação da Abraji, o Knight Center ainda financiou os primeiros anos da associação brasileira porque sabíamos que ali estavam os mais importantes jornalistas investigativos brasileiros, que precisavam de uma estrutura profissional”.
Desde a sua criação, a Abraji manteve-se fiel aos seus princípios fundadores: formação profissional, defesa da liberdade de expressão e do direito de acesso a informações públicas.
Assim que foi criada, a Abraji passou a organizar eventos. O primeiro foi realizado em março de 2003, na cidade de Londrina, e consistiu em um seminário sobre técnicas de cobertura do crime, em parceria com o Knight Center e a Universidade Estadual de Londrina. Mais tarde, a Abraji realizou um seminário sobre o exercício do jornalismo em áreas de risco e ofereceu treinamento no que era então chamado de reportagem assistida por computador (RAC) — jornalismo de dados — em diversas redações brasileiras.
“Fizemos naquele mesmo ano de 2003 um seminário internacional sobre direito de acesso às informações públicas em Brasília”, lembra Beraba. Foi aí que nasceu a ideia de criar o Fórum de Direito de Acesso a Informações Públicas – uma coalizão de entidades da sociedade civil, organizações de mídia e pesquisadores dedicada a pressionar por mais transparência governamental. A rede teve participação direta no processo que resultou na aprovação da Lei de Acesso à Informação brasileira, a LAI, que entrou em vigor em 2012.
Ao longo do caminho, a Abraji promoveu um grande número de eventos e projetos. Talvez o mais notável deles seja o Congresso da Abraji, realizado anualmente desde 2005. O congresso é o maior encontro de jornalistas do país e um dos maiores do mundo.
Em 2013, a Abraji associou-se à GIJN e fundiu o congresso com a oitava Conferência Global de Jornalismo Investigativo da GIJN e a quinta edição da Conferência Latino-Americana de Jornalismo Investigativo (COLPIN, organizada pelo Instituto Prensa y Sociedad). O resultado foi um recorde de 1.350 pessoas de 93 países no Rio. “Esse evento estabeleceu o padrão para encontros internacionais de jornalistas investigativos do mundo”, observa Kaplan, da GIJN. “Com uma mistura extraordinária de repórteres, editores, especialistas em dados e segurança, hackers, professores, alunos e funcionários de ONGs, nossa Conferência Global nunca mais foi a mesma”.
O 17º Congresso da Abraji acontece esta semana, de 3 a 7 de agosto, e conta com mais de 80 atividades e cerca de 200 palestrantes. Pela primeira vez, o evento está sendo realizado em formato híbrido, com dois dias virtuais gratuitos e dois dias de painéis presenciais em São Paulo. A conferência também inclui um dia separado dedicado a workshops e palestras de jornalismo de dados, chamado “Domingo de Dados”.
Por conta da pandemia do COVID-19, as versões 2020 e 2021 do Congresso da Abraji foram online e gratuitas e somaram mais de 10.000 inscritos. A última conferência totalmente presencial, em 2019, foi a segunda maior audiência da história da Abraji, com cerca de 1.200 pessoas.
“O formato sempre foi presencial, e valorizamos muito o networking permitido pelo evento”, explica Natália Mazotte, atual presidente da Abraji. “Mas depois da pandemia ficou claro o valor da programação online como forma de incluir especialmente jornalistas de outras regiões. E, para manter o acesso mais amplo e o estímulo à diversidade dos participantes, optamos pelo híbrido”.
Além de possibilitar o networking dos jornalistas investigativos, auxiliar na qualificação profissional e alavancar a exposição das melhores reportagens do Brasil, Beraba também destaca a importância do Congresso em abrir as cortinas das metodologias de reportagem — para mostrar “como foi feito ” uma abordagem cooperativa e de compartilhamento de conhecimento que, segundo ele, até então não era comum no jornalismo brasileiro.
Além do Congresso, a Abraji organiza diversos cursos ao longo do ano e também possui diversos programas que ajudam a promover seus princípios de defesa da liberdade de expressão e do direito de acesso à informação pública. A maioria desses projetos é fruto de parcerias entre a associação e outras importantes organizações jornalísticas e da sociedade civil brasileiras. Entre esses esforços:
A Abraji também produz relatórios anuais que monitoram ataques a profissionais de imprensa, comunicadores e meios de comunicação, bem como casos de ataques com viés de gênero, que atestam o momento difícil em que a imprensa brasileira se encontra. Desde 2019, o monitoramento integra a rede latino-americana Voces Del Sur.
“O principal desafio da Abraji é comum a todas as organizações sem fins lucrativos no Brasil: sustentabilidade a longo prazo”, explica Mazotte. “Há uma baixa cultura de filantropia no país, então não é fácil conseguir fontes de financiamento diversas para a organização”.
No momento, a instituição se mantém através de patrocínios institucionais ou para seus projetos, pagamento de anuidades de seus 350 associados e renda de eventos. Os planos futuros incluem a implantação de um fundo patrimonial, que garantiria a viabilidade de longo prazo da Abraji e a fortaleceria para enfrentar novos desafios.
O quadro de funcionários e liderança da associação conta atualmente com uma diretoria executiva de 11 membros, um conselho fiscal de três membros e um conselho curatorial composto por ex-presidentes e um empresário convidado, além de 12 funcionários. As eleições para uma nova diretoria executiva são realizadas a cada dois anos.
“É uma associação que se renova constantemente”, diz Cristina Zahar, secretária-executiva da entidade. “Acho que é isso que faz da Abraji a fortaleza que ela é hoje”.
“Quisera eu, nos meus anos de formação e iniciação no exercício da profissão de repórter, ter tido uma entidade como a Abraji”, diz Dorrit Harazim, premiada jornalista brasileira que foi homenageada da 5ª edição do Congresso da Abraji. Ela destaca a importância da organização na qualificação de profissionais ao longo dos anos. “Por seus cursos, seminários, oficinas, acessibilidade e troca permanente de informações, a entidade, em 20 anos, já alargou o horizonte profissional para uma geração inteira”.
A perspectiva de aprimorar as técnicas jornalísticas para além da sala de aula, que muitas vezes carece de aplicação prática – e aprender sobre temas que passam longe dos engessados conteúdos programáticos das universidades brasileiras – tem atraído muitos estudantes. Rosental Calmon Alves lembra, por exemplo, as oficinas de RAC promovidas pela Abraji em 2003, época em que a prática era pouco conhecida no país. “A Abraji foi uma pioneira, uma desbravadora das técnicas mais atuais para a investigação jornalística”, diz.
Com seus diversos projetos em diferentes áreas, a Abraji tornou-se referência tanto para os jornalistas quanto para o jornalismo brasileiro. Em 2003, com apenas um ano de existência, conquistou o Prêmio Esso de Jornalismo, a mais importante distinção concedida aos profissionais de imprensa do Brasil. Em 2012, recebeu o Prêmio ANJ de Liberdade de Imprensa, por sua atuação na formação de jornalistas e por seu papel seminal na aprovação da Lei de Acesso à Informação brasileira.
“A Abraji ultrapassou os nossos melhores sonhos”, diz Alves. “Não é que o jornalismo investigativo não existisse no Brasil antes da Abraji, mas ela como que formulou a existência de um tipo de jornalismo em profundidade que não era muito claro para muitos jornalistas brasileiros. A Abraji ajudou a elevar os padrões do jornalismo brasileiro nesses 20 anos de atuação”.
Para Harazim, o sucesso da Abraji surgiu da necessidade de uma instituição independente, formada e mantida por jornalistas e voltada inteiramente ao aperfeiçoamento do conhecimento profissional. “Havia uma demanda reprimida, e não sabíamos”, explica ela. “Tanto que em poucos anos estava fincado o tripé da missão original – a defesa de uma LAI, da liberdade de expressão e de nossa qualificação inserida em um novo contexto global”.
A associação também alcançou uma posição de prestígio entre as organizações da sociedade civil. É comum ver a Abraji ou sua equipe citada na mídia brasileira quando há notícias sobre ameaças à liberdade de expressão ou ataques a jornalistas.
“A Abraji não só se tornou uma organização de jornalistas profissionais com uma voz importante no cenário midiático brasileiro, mas também um padrão para outras associações de outros países”, acredita Alves. Ele acrescenta que o modelo usado para lançar a Abraji – seminários seguidos pela criação formal de uma organização de imprensa – foi replicado em outros lugares da América Latina.
A Abraji também fez jus à sua razão inicial de existência após a morte de Tim Lopes: funcionar como um norte de segurança para os profissionais da imprensa. “A Abraji acaba sendo um escudo para jornalistas e veículos sob ataque e, pela legitimidade construída ao longo dos anos, consegue cobrar autoridades públicas para que esses ataques sejam investigados e combatidos”, explica Mazotte. “Uma instituição como essa é fundamental para que os jornalistas se sintam mais seguros e amparados para realizar seu trabalho”.
A importância de se sentir seguro no ambiente de trabalho é ainda mais imprescindível em um momento como o atual, em que a situação da imprensa no Brasil não é das melhores. De acordo com seu relatório anual, a Repórteres Sem Fronteiras diz que a retórica agressiva adotada pelo governo do presidente Jair Bolsonaro em relação aos jornalistas e à mídia, tem “contribuído para aumentar a hostilidade e a desconfiança na sociedade”.
“Eu acho que nos últimos três anos e meio, o desafio ficou maior. Todos os governos pós redemocratização tiveram problemas sérios com a liberdade de imprensa e de expressão; nenhum foi amigável. Mas depois de 2019, da posse de Bolsonaro, isso piorou enormemente”, diz Beraba.
Graças a uma tendência grande e preocupante de erosão da democracia em todo o mundo e o avanço das autocracias, Zahar diz que se tornou ainda mais importante defender o jornalismo como forma de fortalecer a democracia no Brasil de Bolsonaro. “Eu vejo a Abraji cada vez mais na trincheira da defesa dos direitos de liberdade de expressão, de imprensa e de acesso à informação”, diz ela.
Incluído nessas batalhas está o combate às campanhas de desinformação, que têm se tornado cada vez mais frequentes nas mídias digitais. “Temos todos os problemas de um ecossistema de informação sem muita moderação, o que acaba por contribuir para a difusão de desinformação e conteúdos enganosos”, explica Mazotte. “A Abraji precisa encontrar caminhos para se adaptar e lidar com essa complexidade”.
“O nosso papel nesse momento é continuar fazendo o nosso trabalho e procurar sempre esse trabalho coletivo junto com outras organizações”, diz Beraba. “ Eu não acredito que uma organização seja capaz de enfrentar essa situação atual sozinha. É necessário trabalho coletivo e a Abraji sempre esteve voltada para esta ideia”.