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‘Precisamos olhar para o que profissionais do Nordeste produzem dos seus territórios’: 5 perguntas para as fundadoras da Rede Cajueira

As jornalistas Mariama Correia e Nayara Felizardo são metade do quarteto fundador da Cajueira, iniciativa lançada em 2020 como uma newsletter de curadoria de conteúdo jornalístico produzido por meios independentes do Nordeste do Brasil. Com as também jornalistas Joana Suarez e Mariana Ceci, elas criaram a Cajueira para fortalecer o jornalismo independente feito no Nordeste e combater preconceitos sobre a região.

O Nordeste é historicamente retratado por meios de comunicação sediados no Sudeste do país, especialmente no eixo Rio de Janeiro – São Paulo, como lugar castigado pela seca e pela miséria. Essa representação reduz a estereótipos a região que concentra o maior número de estados (nove) e a segunda maior parte da população (27%, ou 54,6 milhões de pessoas) do país. Quase um terço (31%) dos indígenas brasileiros vivem no Nordeste, e 73% da população da região é negra, segundo o Censo 2022.

De acordo com o Atlas da Notícia, o Nordeste tem 2.745 veículos jornalísticos ativos – ou 19% dos veículos ativos mapeados no país – e 1.300 deles são meios online, como a própria Cajueira.

Part of the Cajueira team. Photo: Courtesy

Joana Suarez, Jayanne Rodrigues, Nayara Felizardo e Mariama Correia, parte da equipe da Cajueira. (Foto: Divulgação)

Em 2023, a agora chamada Rede Cajueira lançou vários produtos: um mapa do jornalismo independente do Nordeste, um banco de jornalistas e um banco de fontes da região, e uma plataforma que reúne todas essas iniciativas, mais a newsletter e o Cajuzap, boletim em áudio enviado pelo WhatsApp. O site é também uma vitrine do jornalismo produzido nos nove estados, republicando reportagens produzidas por meios do Nordeste e selecionadas pelas jornalistas da Cajueira.

Correia e Felizardo conversaram com a LatAm Journalism Review (LJR) sobre o que mudou – e o que não mudou – na cobertura jornalística feita de dentro e de fora da região, a força do jornalismo independente feito no Nordeste e os próximos passos da Cajueira.

“Temos conseguido fortalecer muito o jornalismo independente no Nordeste, e não só a Cajueira”, disse Felizardo. “A Cajueira contribui para isso, mas os veículos estão mais fortes e estão inclusive pressionando essa mudança, essa discussão sobre a importância de determinadas coberturas sem o viés de que o Nordeste é apenas seca e miséria. Tem muito mais pautas nessa região.”

Além de cofundadoras da Cajueira, Mariama Correia é editora e repórter na Agência Pública e Nayara Felizardo é repórter no Intercept Brasil.

As jornalistas que fazem a Cajueira trabalham voluntariamente na produção da newsletter e do Cajuzap. A plataforma lançada em 2023, com o banco de fontes e de jornalistas, foi desenvolvida com o apoio do programa de aceleração de negócios digitais do Centro Internacional para Jornalistas (ICFJ, na sigla em inglês) e da Meta (ex-Facebook), além do apoio institucional da Associação de Jornalismo Digital (Ajor).

Leia abaixo a entrevista com Correia e Felizardo, que foi editada para efeitos de clareza e concisão.

1. Um dos focos da Cajueira é combater “preconceitos e a reprodução de estereótipos sobre o Nordeste”. Vocês consideram que houve alguma mudança na cobertura que cresceram vendo no jornalismo televisivo ou impresso sobre o Nordeste e a cobertura que é feita hoje nesses mesmos meios?

Mariama Correia: Na minha memória, que é a memória de uma pessoa que foi criança nos anos 1990, acho que mudou muito pouco. Sinto que, nos últimos dez ou cinco anos, evoluímos em muitos debates com relação a várias questões, como debates feministas, de gênero, direitos LGBTQIA+, minorias religiosas, minorias étnicas, populações indígenas. Vem também, na esteira disso, um debate sobre preconceito de origem, xenofobia contra nordestinos e pessoas do norte do país. Esse preconceito contra nordestinos anda ao lado do preconceito racial, porque é uma região que tem maioria de população negra. Anda ao lado do preconceito contra a população indígena também, porque é a região que tem a segunda maior população indígena no Brasil. E anda ao lado do preconceito de classe, porque é, sobretudo, um preconceito contra pessoas pobres.

Acredito que evoluímos muito pouco nesse olhar da mídia, mas talvez o debate social esteja pressionando as pessoas a mudarem, a se posicionarem. E hoje temos as redes sociais, uma esfera pública que fala, porque antigamente o jornal era impresso, distribuído e pronto. O leitor tinha que mandar uma carta para dizer ‘olha, não gostei da matéria X’. Hoje em dia, você vê uma matéria, ela passa no Twitter, no Instagram, chega no WhatsApp e o pessoal na hora fala ‘não gostei, que horror, que absurdo’. Então esse componente está forçando um debate. E acho que a Cajueira vem também nessa onda.

Journalist Nayara Felizardo. (Photo: Courtesy)

A jornalista Nayara Felizardo. (Arquivo pessoal)

Nayara Felizardo: Se tivermos que apontar uma mudança, é o início de um debate sobre diversidade regional na imprensa, que vem mesmo de muito pouco tempo atrás, eu diria cinco anos no máximo. A Cajueira tem um papel fundamental no estímulo a esse debate. Hoje vemos pessoas nas redações pensando nisso de alguma forma, mesmo que superficialmente, e também as entidades de jornalismo. Antes, se a preocupação era diversidade de gênero nos debates e nos eventos, hoje já se pensa em diversidade regional também. Esse debate ainda é muito inicial, mas acho que, se for para apontar uma mudança, é o início do debate sobre a importância da diversidade regional, de ter profissionais do Nordeste nas redações, ou não necessariamente nas redações, mas cobrindo pautas dos seus territórios.

2. Um dos objetivos da Cajueira é fortalecer o jornalismo independente feito no Nordeste. Que mudanças vocês veem nesse cenário desde 2020, quando lançaram a iniciativa?

Nayara Felizardo: Partindo do princípio de que falta diversidade regional na imprensa sudestina, precisamos olhar para o que os profissionais do Nordeste produzem dos seus territórios.

O jornalismo independente tem se fortalecido tanto em quantidade de veículos que estão surgindo como em qualidade. Temos veículos que não deixam a desejar em nada a veículos independentes de outras regiões. E tem também a formação de coletivos. É muito forte esse senso de colaboração entre os veículos. Agora, nesse caso de Maceió [capital do estado de Alagoas], da cobertura do crime ambiental da [mineradora] Braskemveículos do Nordeste se uniram e fizeram pautas colaborativas, conjuntas. Isso mobilizou outros veículos a também irem atrás dessas histórias. Então, acho que tem essa relevância de se colocar como protagonista nas coberturas de pautas do Nordeste.

3. Vocês criaram a Cajueira como uma newsletter. Esse formato tem sido muito usado por jornalistas para chegar ao público além das redes sociais e também saudado por especialistas como possível fonte de receita para iniciativas jornalísticas. Qual é a avaliação de vocês da experiência com a newsletter nesses quase quatro anos? 

Mariama Correia: A Cajueira sempre nasceu como uma curadoria, um guarda-chuva maior do que uma newsletter. Ela é uma curadoria e dentro disso há vários produtos, e o primeiro produto foi uma newsletter. Já tínhamos ideia de fazer outras coisas desde o começo. O formato newsletter no começo foi muito mais uma aposta de tentar ver como era essa linguagem, achar uma voz. Falamos coletivamente, como Cajueira. Poucas vezes assinamos os textos. Isso foi uma coisa que concordamos lá no começo e funcionou. As pessoas realmente reconhecem uma voz da Cajueira, reconhecem o estilo, nos dão muito feedback nesse sentido.

Sempre fizemos as coisas da forma mais profissional possível, mas chegamos agora em 2024 em um momento de aprofundar ainda mais o uso dessa ferramenta. Queremos esgotar todas as possibilidades que ela tem e focar em crescimento. Temos um crescimento muito orgânico. Na newsletter já são mais de 5 mil assinantes e temos uma taxa maior do que 30% de abertura, que é algo muito bom. Nós nos desdobramos entre outras ocupações, todo mundo da equipe trabalha voluntariamente. E mesmo assim temos um crescimento muito bom, quase não temos perda de assinantes. Sabemos que essa plataforma tem muito potencial ainda, e 2024 vai ser um ano de explorar um pouco mais, ampliar um pouco mais os usos, entender remuneração também e todas as possibilidades.

4. Em 2023 vocês lançaram a Rede Cajueira, um site que reúne os vários projetos de vocês, como a newsletter, os bancos de jornalistas e de fontes do Nordeste e o mapa de iniciativas jornalísticas independentes da região, e é também plataforma para o conteúdo publicado por essas iniciativas. Que caminhos vocês vislumbram para a Cajueira nos próximos anos?

Mariama Correia: Eita, a pergunta de milhões [risos]. O ano passado foi muito no foco de colocar a Rede Cajueira e o primeiro banco de fontes nordestinas no ar. Foi uma coisa muito boa, pioneira, um produto muito bom que entregamos dentro da rede, que é uma consolidação do nosso projeto. Tínhamos a newsletter no Substack e o mapa [de meios independentes do Nordeste], tudo isso desintegrado. A Rede Cajueira integra todas as plataformas e nos coloca num endereço que é nosso, porque existe muita insegurança nessa questão das plataformas. A Rede Cajueira é muito importante também para que possamos construir um caminho pra monetizar com cursos, que é uma segunda etapa que estamos desenvolvendo. Queremos colocar em prática essa ideia de rede e fortalecer a rede nordestina que temos, o conselho [consultivo] de veículos que criamos para colocar a rede no ar, e esse conselho alimentando aquela vitrine de notícias [no site], que esse ano vai estar mais azeitada.

Marco Ferro é um jornalista recém-formado pela Universidade Federal de Sergipe que conhecemos quando ele fez um projeto de conclusão de curso que foi o Mapa da Cajueira [de meios independentes do Nordeste]. Ficamos encantadas e, depois disso, carregamos ele para tudo. Ele participou do processo de construção dos bancos de fontes e jornalistas. Fizemos o convite para ele trabalhar conosco e cuidar do operacional, porque nós somos jornalistas que trabalham em outras coisas e que estão na Cajueira trabalhando voluntariamente, porque ainda não conseguimos nos manter só com a Cajueira. Precisamos de um financiamento que dê sustentabilidade ao projeto; não só a um produto, mas à organização. Precisamos conquistar essa possibilidade de financiamento, tanto apostando em editais quanto colocando de volta, com mais força, nossa campanha de financiamento coletivo.

Journalist Mariama Correia. (Photo: Courtesy)

A jornalista Mariama Correia. (Arquivo pessoal)

O banco de fontes teve uma repercussão muito boa. Tivemos muitos feedbacks de pessoas de redações, de TVs, dizendo “olha, peguei uma fonte aqui”. Queremos divulgar mais essa ferramenta e abrir a possibilidade para redações que quiserem que a gente vá apresentá-la, porque é uma ferramenta muito legal para repórteres.

E queremos consolidar essa rede, tanto para que os veículos estejam mais integrados, colocando seus conteúdos ali, quanto para que essa rede tenha mais visibilidade para quem não está necessariamente no Nordeste, para pessoas que querem se informar sobre o Nordeste. A ideia é que essa rede funcione como um lugar ao qual você vai para ler sobre o Nordeste e buscar fontes, profissionais e cursos.

5. Por que vocês escolheram se dedicar ao jornalismo, e por que continuam escolhendo o jornalismo?

Nayara Felizardo: A minha escolha pelo jornalismo foi muito pragmática. Eu queria algo na área de Humanas. E só daria certo para mim se a universidade fosse em um lugar em que eu tivesse família para morar, porque meus pais não podiam bancar. E esse lugar era a Universidade Estadual do Piauí, que tinha o curso de jornalismo. A escolha foi motivada por coisas muito práticas, mas depois eu realmente me apaixonei pelo jornalismo. Hoje eu continuo escolhendo jornalismo porque sinto que o meu trabalho tem um propósito maior. Não é só trabalhar para ganhar dinheiro e pagar as contas. Sim, eu quero dinheiro, quero meu salário, quero melhores salários, mas esse propósito de pensar em coisas maiores do que em mim… A Cajueira pensa no jornalismo independente do Nordeste, então é uma coisa muito grande, é mais do que eu estar aqui escrevendo uma reportagem. E é o jornalismo que me propicia esse sentimento de ter um propósito na vida.

Mariama Correia: Tenho uma lembrança de desde criança pensar em jornalismo. Meu pai é escritor, então tinha uma coisa também de [gostar de] ler e escrever. Acho que nunca tive dúvida do curso que queria fazer. A dúvida veio depois. Trabalhei durante muito tempo com a área mais corporativa, e fiz faculdade de jornalismo pensando “quero escrever, gosto de escrever”. E depois na prática profissional em alguns momentos eu quase desisti. Pensei “não vou conseguir isso [escrever]”. Depois, os caminhos foram acontecendo, tanto a reportagem, quanto sair de um veículo tradicional para ir para um veículo que trabalhava com jornalismo independente, com defesa de direitos humanos, com algo que representava mais os meus valores. Entendi que trabalhar com algo que tivesse conexão com meus valores era importante para mim. E acho que continuo escolhendo [o jornalismo] por isso. O trabalho que fazemos é importante, tem um sentido. Vivemos quatro anos [de governo Bolsonaro] em que o trabalho da imprensa na defesa da democracia se mostrou fundamental. Muita gente fazia as coisas pensando num panorama maior, de Brasil; pensando que precisamos fazer isso porque temos um compromisso. E dentro dessa profissão também temos a possibilidade de criar coisas como a Cajueira, que é um projeto novo, pequeno, mas que tem um alcance legal e faz diferença, influencia, promove debates, muda olhares.

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