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Prêmio Gabo 2023 reconhece jornalismo latino-americano que revela casos de repressão, injustiça e corrupção

Uma reportagem sobre violência sexual na Colômbia, uma reconstrução de casos de repressão social no Peru e a cobertura das elites por trás da pecuária no Brasil foram os trabalhos latino-americanos reconhecidos com o Prêmio Gabo 2023, durante cerimônia realizada na sexta-feira, 30 de junho, no Teatro Colón, em Bogotá, Colômbia.

A Fundação Gabo, fundada pelo jornalista colombiano e ganhador do Prêmio Nobel de Literatura Gabriel García Márquez, concede há 11 anos o Prêmio Gabo, que reconhece o melhor do jornalismo em espanhol e português nas Américas, na Espanha e em Portugal.

"El grito por justicia y reparación de las mujeres afro violadas sexualmente", escrito pela jornalista Beatriz Valdés, tornou-se o primeiro trabalho colombiano a ganhar o Prêmio Gabo na categoria Texto nos 11 anos de história do prêmio. Trata-se de uma reportagem que relata como, durante o conflito armado na Colômbia, as mulheres afro-colombianas foram vítimas de crimes sexuais cruéis motivados pelo racismo.

"Conseguimos mostrar como o racismo, o classismo e a periferia estavam presentes o tempo todo para que esses crimes passassem despercebidos, mas foram extremamente dolorosos, como pode ser visto nesse trabalho", disse Valdés ao receber o prêmio. "Espero que a divulgação dessas histórias faça com que essa necessidade de reparação que elas [as vítimas] têm se concretize".

Colombian journalist Beatriz Valdés receivea an award at the Gabo Awards ceremony, in Bogotá.

A jornalista Beatriz Valdés é a primeira ganhadora colombiana do Prêmio Gabo de melhor Texto. (Foto: Captura de tela do YouTube)

A obra é baseada na história de Aura, uma mulher negra que, assim como suas irmãs, foi vítima de violência sexual por membros de grupos armados legais e ilegais entre 2001 e 2007. A autora entrevistou dezenas de mulheres durante quase seis anos para escrever sua reportagem, que explora as repercussões dessa violência nos corpos das vítimas.

A reportagem, que foi publicada em fevereiro de 2023 no Colombia +20, o suplemento do jornal El Espectador dedicado à cobertura dos acordos de paz e do conflito armado na Colômbia, também serviu como um meio para que as vítimas apresentassem propostas de reparação que elas acreditam que as autoridades estão em posição de implementar para fazer justiça àquelas que sofreram violência sexual.

"[É] Uma reportagem impressionante em todos os seus aspectos: a dedicação, a apuração, a redação. [...] Este trabalho coloca os holofotes em um tópico bastante opaco, que precisa ser falado claramente, ser narrado, porque os crimes sexuais continuam a ser uma ferida brutal na Colômbia", escreveu em sua ata o júri na categoria Texto, formado pelos jornalistas Mónica González (Chile), Yásnaya Aguilar (México) e Paulo Roberto Pires (Brasil). "É emocionante o desenrolar de todos os aspectos do personagem, que pode ser conhecido em sua totalidade graças a uma aposta maravilhosa que equilibra redação e estrutura".

Na categoria Imagem, o trabalho vencedor foi "Ayacucho: radiografía de homicidios", um projeto jornalístico de reconstrução de vídeo realizado por uma equipe liderada por Rosa Laura e César Prado, da organização de jornalismo investigativo IDL-Reporteros.

Com base na análise de material audiovisual, documentos e testemunhos, os autores reconstruíram seis execuções extrajudiciais pelas mãos dos militares durante um dia violento de protestos contra a presidente Dina Boluarte em Ayacucho, Peru, em dezembro de 2022.

O trabalho de reconstrução foi capaz de identificar os locais e horários exatos de onde foram disparados os tiros que tiraram a vida das vítimas, bem como os locais onde elas caíram. A equipe também determinou, com evidências, que foram elementos militares que dispararam os tiros em todos os seis casos.

"Realizar essa reportagem foi um dos maiores desafios de nossas carreiras. Houve seis mortes que reconstruímos [...], pessoas cujas famílias, como as dos outros 43 mortos nos protestos contra este governo no Peru, ainda estão buscando justiça", disse Laura em seu discurso de agradecimento. "Esperamos que esse reconhecimento sirva para que os crimes ocorridos nas manifestações sociais no Peru possam continuar a ser conhecidos em nível ibero-americano".

Pardo, por sua vez, disse que o projeto, que foi publicado em fevereiro de 2023, foi possível graças ao trabalho colaborativo de jornalistas, médicos, advogados, antropólogos e moradores de Ayacucho, onde ele nasceu. O jornalista dedicou o prêmio a todos eles.

Peruvian journalists Rosa Laura and César Pardo, from IDL-Reporteros, receive an award at the Gabo Awards ceremony.

Rosa Laura e César Prado foram os autores de “Ayacucho: radiografía de homicidios”, trabalho ganhador na categoria Imagem. (Foto: Captura de tela do YouTube)

Para os membros do júri da categoria Imagem, formado por Eliza Capai (Brasil), Leiqui Uriana (Colômbia/Venezuela) e Martín Caparrós (Argentina), "Ayacucho: radiografía de homicidios" é o jornalismo "em seu estado mais puro", no qual os autores utilizam todos os recursos à sua disposição para revelar algo que outros querem esconder, no caso, o Estado peruano.

"Por um lado, consegue estabelecer, por meio de uma narrativa audiovisual, fatos que estavam ocultos e que são importantes para a compreensão de seu país e para, de alguma forma, colocar seu processo nos trilhos, cujo conhecimento tem um impacto positivo em sua sociedade", afirmou o júri em sua ata. "E, por outro lado, é construído sem nenhuma ostentação, com uma austeridade narrativa que aumenta ainda mais o valor da história que está sendo contada, além de qualquer tentação sensacionalista.”

O trabalho vencedor na categoria Cobertura foi "Nome aos bois", de uma equipe de oito jornalistas da organização de jornalismo investigativo Repórter Brasil, liderada por Ana Magalhães.

"Nome aos bois" é um especial multimídia que investigou a elite do agronegócio brasileiro. A investigação identificou 10 dos mais poderosos grupos pecuaristas do país e suas conexões com crimes ambientais e a prática de formas modernas de escravidão. A equipe da Repórter Brasil apresenta uma análise aprofundada da questão, incluindo fichas biográficas dos magnatas da pecuária, mapas interativos com a localização de suas fazendas e duas reportagens longas.

Após seis meses de investigação, a equipe descobriu que nove dos dez maiores pecuaristas estão ligados a conflitos ambientais ou foram investigados por corrupção. Os autores conseguiram superar a opacidade das autoridades que, por razões de sigilo comercial, não fornecem informações sobre quem está por trás da pecuária do país.

"A sociedade brasileira sabe quem são os principais exportadores de café ou soja, mas não sabemos quem são os maiores produtores de gado do Brasil. E esse foi o principal desafio que enfrentamos", disse Magalhães no vídeo de apresentação dos finalistas. "Mas conseguimos cruzar dados de terras públicas e registros públicos das grandes fazendas para chegar a esses nomes.”

O júri dessa categoria, composto pelos jornalistas María Sánchez Díez (Espanha), Bruno Patiño (França) e Rosental Alves (Brasil), elogiou os elementos visuais e explicativos do especial e destacou a boa contextualização das matérias, que permitem que leitores não familiarizados com a realidade do Brasil entendam o assunto.

As categorias Fotografia e Áudio do Prêmio Gabo foram para jornalistas da Espanha. O fotógrafo documental Santi Donaire venceu com "¿Conseguirá la Ley de Memoria Democrática reparar los daños del franquismo?", um ensaio fotográfico publicado na revista National Geographic Spain, que cobre seis anos de documentação sobre as consequências dos crimes e violações dos direitos humanos ocorridos durante a ditadura de Francisco Franco na Espanha.

O podcast "Costa Nostra", da produtora espanhola La Maldita para a Amazon Music, ganhou o prêmio de Áudio. Nessa série de áudio de não ficção, o jornalista Antonio Pampliega conta as histórias de traficantes de drogas, gângsteres e policiais que vivem e trabalham na Costa del Sol, no sul da Espanha, em 10 episódios.

Honduran journalist Jennifer Ávila receives the Gabo Award for Excellence at the Gabo Award ceremony, in Bogotá.

Jennifer Ávila, cofundadora de Contracorriente, de Honduras, foi eleita ganhadora do Reconhecimento à Excelência do Prêmio Gabo 2023. (Foto: Captura de tela do YouTube)

Também foi homenageada durante a cerimônia a jornalista hondurenha Jennifer Ávila, que este ano foi escolhida como a vencedora do Prêmio Gabo de Reconhecimento à Excelência. Esse prêmio é concedido pela Fundação Gabo desde 2013 e já foi entregue em anos anteriores a personalidades do jornalismo ibero-americano como Javier Darío Restrepo (Colômbia), Jorge Ramos (Estados Unidos), Juan Villoro (México) e a equipe do El Faro (El Salvador), entre outros.

Ávila, diretora e cofundadora do meio digital Contracorriente, foi escolhida para receber o prêmio "por seu compromisso com a verdade, a justiça e a luta contra a violência estrutural que afeta as mulheres e a democracia em um dos países latino-americanos onde é mais difícil exercer o jornalismo", de acordo com o Conselho Reitor da Fundação Gabo.

Em sua mensagem de agradecimento, a jornalista lembrou seus colegas de países da América Central, Cuba, México e Venezuela que enfrentam prisão, exílio, impunidade ou violência. Ela também contou que, para ela, o jornalismo tem sido uma terapia que lhe permite contar histórias sobre as crises e os ataques à democracia que têm ocorrido em seu país e afetado sua família.

"Qual é o objetivo do que fazemos? Para salvar a memória. A impunidade do poder procura acabar com a memória, a memória de um arquivo, a memória de um povo, a memória das lutas, a memória da dignidade. Nós, jornalistas, nos tornamos os guardiões da memória, os protetores da palavra", disse ela.

A cerimônia do Prêmio Gabo também homenageou o jornalista francês Jean-François Fogel, que foi presidente do Conselho Reitor da Fundação Gabo e faleceu em 19 de março deste ano. Fogel, que era amigo pessoal de Gabriel García Márquez, foi lembrado por seus colegas como um pioneiro da transformação digital do jornalismo.

Denúncia de injustiça contra José Rubén Zamora

A Fundação Gabo dedicou um espaço em sua festa de premiação para lembrar o jornalista guatemalteco José Rubén Zamora, que está preso há quase um ano, em meio a um processo judicial que tem sido considerado irregular.

Guatemalan journalist José Zamora speaks at the Gabo Awards ceremony, in Bogotá, Colombia.

José Zamora agradeceu pelo apoio que jornalistas da região têm dado a seu pai, José Rubén Zamora, fundador de elPeriódico da Guatemala, que segue na prisão. (Foto: Captura de tela do YouTube)

Seu filho, também jornalista, José Zamora, fez um discurso no qual afirmou que as acusações do Estado guatemalteco contra seu pai são um sinal de que fazer jornalismo em seu país é um crime.

"Hoje, nossa região e o mundo estão experimentando uma regressão acelerada contra a democracia e a liberdade. Os jornalistas e as vozes críticas que denunciam a corrupção, o crime organizado, as violações dos direitos humanos e os abusos de poder estão sendo perseguidos", disse ele ao público no Teatro Colón. "Estar aqui esta noite enquanto meu pai está em sua cela é um verdadeiro realismo mágico".

Zamora agradeceu à equipe do elPeriódico, o meio de comunicação que seu pai fundou e que anunciou seu fechamento em maio passado como resultado do processo judicial. Ele também expressou sua admiração pelos jornalistas guatemaltecos que continuam a fazer seu trabalho apesar do ambiente hostil e agradeceu aos colegas da região que demonstraram empatia com a situação enfrentada por sua família e pelo jornalismo na Guatemala.

"Obrigado por todo o apoio e por continuarem a contar as histórias que a corrupção, a repressão e o poder querem esconder. A melhor defesa contra os ataques ao jornalismo é mais jornalismo", disse ele. "Não nos calarão. Continuaremos a expor e a dizer não ao poder".

Foto do banner: Cortesia Fundação Gabo

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