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Projeto Caravana fortalece conexão entre organizações de jornalismo local e suas comunidades pelo Brasil

O jornalismo local “virou hype”, acredita Raquel Lemos, cofundadora do meio digital Coreto, que cobre a cidade de Poções, na Bahia, onde ela nasceu e cresceu. Ainda assim, ela considera que os debates mais recentes sobre a importância de veículos locais e os esforços para fortalecê-los raramente contemplam meios como o que ela fundou.

“Quando se fala em ‘estratégias para cobertura local’, é estratégia para cobertura local na Rocinha [favela no Rio de Janeiro] ou em Salvador [capital da Bahia]. É sempre sobre jornalismo local em um grande local”, disse ela à LatAm Journalism Review (LJR).

Poções, com 50 mil habitantes e a 450 quilômetros de distância de Salvador, não é um grande local. Também por isso o Coreto, que se descreve como “um veículo de jornalismo hiperlocal”, está entre as dez iniciativas contempladas pelo projeto Caravana, da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji).

Desde outubro de 2023, o Caravana oferece formações especializadas para organizações de comunicação local, com cursos sobre jornalismo e temas pertinentes à realidade de cada comunidade servida. Até o momento, segundo a Abraji, mais de 100 jornalistas e comunicadores já participaram das formações do projeto.

Nina Weingrill, coordenadora do projeto, disse à LJR que o Caravana foi desenhado para “capilarizar o alcance” da Abraji. A ideia é chegar a jornalistas e comunicadores que não têm tanto contato com a entidade, mas têm demandas relacionadas à atuação dela e podem se beneficiar das ferramentas e oportunidades oferecidas pela Abraji.

A proposta foi construir percursos formativos com cada organização que combinassem as necessidades delas com o que a Abraji pode oferecer, fazendo “uma costura entre esses dois universos e sendo respeitoso das demandas que cada território traz”, disse Weingrill.

As formações oferecidas são internas, com encontros online realizados a cada mês e meio com as equipes das organizações em torno de temas gerais do jornalismo, e externas, com encontros presenciais com a participação da comunidade e das redes das organizações nos territórios. Os eventos presenciais, que podem durar dois ou três dias, são realizados com recurso oferecido pelo Caravana para esse fim.

O projeto também oferece um recurso financeiro, no valor de R$ 8 mil, para que as organizações invistam no próprio desenvolvimento institucional como julgarem mais apropriado.

Já foram realizados cinco encontros presenciais: com a Associação Fala Roça, do Rio de Janeiro, em novembro de 2023; com o site Coreto, em Poções e em Vitória da Conquista, na Bahia, em dezembro; com o coletivo de comunicação popular Magnífica Mundi, em Corumbá de Goiás, em março de 2024; em Chapecó, Santa Catarina, durante o I Fórum Catarinense de Comunicação, realizado pela Kombi Livros, em abril; e em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, no Circuito Falante de Comunicação Antirracista com a TV Restinga.

No segundo semestre de 2024 serão realizadas formações presenciais com a Abaré Escola de Jornalismo, do Amazonas; a Associação Gira Mundo e o Coletivo Utopia Negra Amapaense, do Amapá; a Associação MATPHA, do Acre; e o Telas em Rede, do Pará.

Weingrill disse que, na seleção, a equipe responsável pelo Caravana privilegiou organizações lideradas por pessoas não brancas, com perspectiva de gênero e presentes nas regiões Norte e Nordeste. Também buscou “se distanciar das capitais”, afirmou.

“A relação dessas organizações com o território e com as redes dentro desse território era um critério importante. E também que trabalhassem comunicação e jornalismo com distribuição de informação para a cidadania e acesso a direitos”, disse Weingrill.

Correspondentes cidadãos no território

Ainda antes de concluir a faculdade de jornalismo, Lemos e sua colega Leila Costa já projetavam a fundação de um meio jornalístico que fizesse uma cobertura qualificada de Poções e arredores. Elas lançaram o Coreto em 2022, com o apoio do programa Acelerando a Transformação Digital, realizado pela Meta, proprietária do Facebook e do WhatsApp, e pela Abraji em parceria com o Centro Internacional para Jornalistas (ICFJ, na sigla em inglês).

Segundo Lemos, embora houvesse rádios e blogs em Poções, não havia “cobertura jornalística de fato” na cidade.

“Não existia cobertura noticiosa, porque os blogs não publicavam notícia. Eles publicavam uma manchete e um parágrafo sobre um assunto, e geralmente o assunto era cobertura policial. Eles pegavam a informação com a polícia e não tinha uma investigação ou diálogo com outras fontes”, disse ela.

Raquel Lemos and Leila Costa, cofounders of news outlet Coreto. (Photo: Leonel Brito/Coreto)

Raquel Lemos e Leila Costa, cofundadoras do site Coreto, durante a formação realizada com o projeto Caravana. (Foto: Leonel Brito/Coreto)

Portanto, quando lançaram o Coreto, buscaram “educar a comunidade para consumir jornalismo”, disse Lemos. Elas publicaram vídeos explicando o que são alguns gêneros jornalísticos – notícia, reportagemjornalismo opinativoeditorial – e as diferenças entre eles.

Em 2024, o Coreto pretende realizar – pela primeira vez em Poções, segundo Lemos – uma cobertura jornalística das eleições municipais, que acontecem em outubro. Para isso, lhes parecia necessário realizar uma “educação midiática prévia” com a população sobre o que é uma cobertura eleitoral e também “construir pontes com pessoas estratégicas da comunidade” para ter apoio na cobertura, disse ela.

O Coreto tem um núcleo de educação midiática que realiza oficinas em escolas estaduais com estudantes do ensino médio. Com o Caravana, elas decidiram realizar um evento de dois dias, aberto à população em geral, que fosse uma “edição curta” dessa oficina, contou Lemos.

O evento teve como tema o jornalismo local e a participação comunitária na cobertura das eleições. Participaram comunicadores locais, estudantes de jornalismo e membros da comunidade. As formações ofereceram noções de jornalismo, segurança física e digital durante coberturas e uso da Lei de Acesso à Informação (LAI), além de uma sessão sobre a formação da cidade e o cenário político de Poções.

Segundo Lemos, o encontro aproximou a comunidade à equipe do Coreto, e também permitiu que a equipe do site entendesse como pode se articular com essas pessoas para cobrir as eleições. No momento, as seis pessoas que fazem o Coreto – as duas cofundadoras e quatro estagiários – são voluntárias e têm outros trabalhos remunerados para se sustentar.

“Além de sermos poucos, temos pouco tempo”, disse ela. “Não conseguimos estar nos bairros para saber o que está acontecendo lá, então queremos que essas pessoas nos contem, como se fossem nossos ‘correspondentes’ nesses bairros. Com o Caravana, conseguimos identificar quem são as pessoas que podemos trazer para participar conosco dessa cobertura.”

O encontro também permitiu que a comunidade entendesse que “não é fácil fazer jornalismo”, disse Lemos.

“Eles entenderam a complexidade que enfrentamos ao fazer o que fazemos sem recursos, sem estrutura. Foi uma troca. Pudemos mostrar para eles que [o Coreto] não é só um espaço de visibilidade, não é só ‘decidimos abrir um site de notícias’. E conseguimos ver que não podemos criar um estigma em relação à nossa audiência. Não é porque as pessoas não são letradas que elas não têm conhecimento de comunidade”, disse ela.

Rede de comunicadores

Com 72.154 habitantes e a maior concentração de moradores por km2 do Brasil, a Rocinha é mesmo um “grande local”: é a maior favela da cidade do Rio de Janeiro e a segunda maior do país. A Associação de Comunicação Fala Roça, que nasceu como um jornal impresso em 2012, se dedica ao jornalismo hiperlocal na Rocinha e presta serviços de comunicação para financiar parte de suas atividades.

“O Fala Roça não é só um jornal”, disse Michel Silva, cofundador e editor-chefe da publicação, à LJR. “É uma organização que quer usar o conhecimento como ferramenta no desenvolvimento da favela. Nós trabalhamos as questões da Rocinha para envolver os moradores na comunicação de uma forma geral.”

Silva contou que a organização realiza um encontro mensal com moradores da favela chamado “Desenrola Rocinha”. Nesses encontros, a equipe do Fala Roça e os moradores debatem um problema presente na comunidade e constroem em conjunto possíveis soluções, que depois são publicadas como reportagem no site da associação.

Attendees of Abraji's Caravana project at Fala Roça

Participantes da formação do projeto Caravana no Fala Roça, em outubro de 2023. (Foto: Fala Roça)

Em parceria com o Caravana, o Fala Roça decidiu fazer uma edição especial desse encontro voltada para comunicadores da favela. Houve aulas sobre o uso da LAI, fundamentos de práticas jornalísticas e segurança dos comunicadores, entre outros temas. E também uma aula de história da Rocinha.

“Não dá para fazer jornalismo sem entender a história do território”, disse Silva. “Para fazer jornalismo na Rocinha, você tem que entender a história e as complexidades da Rocinha para poder abordar determinados temas. Esse é um problema muito grande que identificamos na grande imprensa, que vem até a favela e produz uma reportagem, mas às vezes é uma reportagem muito rasa, que não engloba as complexidades do território.”

Silva disse que se surpreendeu com o fato de que a maioria das pessoas presentes na formação não conhecia a LAI.

“No Fala Roça, nós temos uma cultura muito forte de usar a LAI em nossas reportagens. Então oferecer essa capacitação é fundamental para mostrar que o dado é público e também como é que se pede a informação, pois existe um jeito de pedir, não dá para fazer isso de qualquer forma”, disse Silva.

Segundo ele, os comunicadores que participaram da formação que teve apoio do Caravana são hoje parte da rede de colaboradores freelancers do Fala Roça e muitos já publicaram reportagens no jornal impresso ou no portal online.

“A partir desse encontro do Desenrola, alimentamos uma base de pessoas que podem contribuir com o Fala Roça na parte jornalística, e isso está ligado com a questão da construção de comunidade também”, disse Silva.

Outros frutos

A partir das trocas com as organizações e a presença nos territórios, a equipe do Caravana entendeu que recursos dados como certos em determinados centros urbanos nem sempre estão disponíveis em “pequenos locais”. É o caso da LAI, que regulamenta o acesso a dados públicos junto a órgãos e entidades municipais, estaduais e federais e que completou 12 anos em vigor no Brasil no último dia 16 de maio.

Em Poções, por exemplo, “não existe formalização da Lei de Acesso”, disse Lemos.

“Não existe mandar um email para a prefeitura seguindo um passo a passo. Você tem que falar no WhatsApp com alguém que conhece que está dentro da prefeitura. (...) Não funciona na nossa realidade. Já tentamos, mas não funciona. Temos que mandar pelo WhatsApp, temos que encontrar a pessoa no barzinho e conversar com ela”, disse Lemos.

Nina Weingrill, coordinator of Abraji's project Caravana. (Photo: Leonel Brito/Coreto)

Nina Weingrill (centro) durante formação do projeto Caravana com o site Coreto. (Foto: Leonel Brito/Coreto)

A equipe do Caravana entendeu que essa é a realidade na maior parte dos municípios do país. Por isso, está criando um guia para auxiliar comunicadores e jornalistas a implementar a LAI em nível municipal, disse Weingrill. Esse é um dos impactos do trabalho nos territórios, destacou ela.

“Estamos tendo que repensar e entender quais são as orientações que precisamos construir, porque essa é a realidade na maior parte dos lugares aos quais estamos indo”, disse ela.

A coordenadora do Caravana considera que a potência do projeto está em apoiar as organizações na construção de uma “rede de sustentabilidade local”. Se a comunidade entende como o jornalismo local é feito e o seu valor, aumentam as chances de que ela o defenda e apoie as organizações em seu trabalho, inclusive financeiramente. Os encontros também possibilitam que a população entenda sobre seus direitos e como podem reivindicá-los.

“[As organizações] estão formando outros jornalistas e comunicadores, mas também estão formando a própria comunidade para cobrar direitos, entender quais informações ela tem direito de acessar, como o poder público deveria ser fiscalizado, o que é de fato direito”, disse ela. “Então esse recurso, que é pequeno, acaba sendo muito importante para começar um processo de mobilização dentro do território.”

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