Por Isabela Fraga
No Brasil, atualmente, existem mais de 4.000 rádios comunitárias em atividade. Se forem contabilizadas também as emissoras sem autorização para funcionar, esse número aumenta drasticamente. O processo de outorga para execução de serviço de radiodifusão, no entanto, é lento: em alguns casos, a espera foi de quase 10 anos. Por isso, não são raros os casos como o de José Eduardo Rocha Santos, proprietário de uma rádio comunitária no estado de Sergipe, que foi condenado a dois anos e meio de prisão por manter sua rádio no ar ilegalmente.
Na opinião do presidente nacional da Associação Mundial de Rádios Comunitárias (Amarc), Arthur William, um dos primeiros passos rumo a uma legislação que valorize as rádios comunitárias no Brasil é a descriminalização da transmissão de emissoras de baixa potência . Nesta entrevista, concedida por telefone ao Centro Knight para o Jornalismo nas Américas, William explica os maiores problemas enfrentados pelas rádios comunitárias e livres no Brasil hoje, sua importância no direito à comunicação e alguns exemplos de outros países americanos.
Como você avalia a legislação brasileira sobre radios comunitárias hoje? Houve alguma evolução ao longo dos anos?
A legislação brasileira sobre rádios comunitárias é ultrapassada e conservadora, elaborada em 1998, numa época de privatizações e enfraquecimento dos movimentos sociais. Por essa lei, uma rádio comunitária deve ter potência muito baixa (25 watts) e no máximo 1 km de alcance. Pela legislação, também não é permitida publicidade em rádios comunitárias, mas tampouco é oferecida alternativa de financiamento. Em 2011, aprovou-se uma norma que atualizou a lei de 1998 (portaria 462). Mas, como a lei de 1998 é ruim, uma atualização dela também foi ruim, pois enfatizou os piores pontos da lei. Por exemplo, a portaria desclassifica automaticamente qualquer rádio que transmitir sem licença e, no entanto, o processo de outorga para rádios comunitárias é lento e burocrático, chegando às vezes a durar mais de 10 anos. E, se nesse meio tempo ela colocar o transmissor no ar, automaticamente está desclassificada do processo de legalização.
O que pode ser feito para melhorar essa situação e tornar o processo de legalização mais efetivo?
Há uma proposta no congresso para descriminalizar a transmissão de frequências abaixo de 100 watts: isso é um exemplo de melhora, porque no Brasil, hoje, qualquer pessoa que transmitir frequências acima de 25 watts é acusado de um crime. Uma outra proposta que está sendo avaliada pelo governo, elaborada a partir da pressão das rádios comunitárias, permitiria a publicidade comercial em rádios comunitárias, mas sem possibilidade de veiculação de preço ou de condições de pagamento. Essa proposta, se aprovada, também ampliaria o alcance das rádios comunitárias para a extensão da comunidade, sem a amplitude fixa de 1 km de alcance. No que diz respeito ao financiamento de rádios comunitárias, é preciso haver um financiamento garantido, um fundo público ou o percentual de algum imposto.
Como analisa a postura e o papel da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) na relação com as rádios comunitárias?
A Anatel tem o papel de fiscalizar e regulamentar, mas, em relação às rádios comunitárias, só se faz presente por meio da polícia. A Anatel não auxilia no financiamento, não orienta, não ajuda no processo burocrático de legalização. Um exemplo da atuação da Anatel nesse sentido é quando ela tentou fechar a rádio Cúpula dos Povos [rádio livre administrada coletivamente por diversos movimentos sociais, incluindo a Amarc, que funcionou durante a Cúpula dos Povos, evento paralelo à Rio+20, no Aterro do Flamengo]. A Anatel tentou realizar o fechamento da rádio e retirar o transmissor com ajuda da Polícia Militar, mas conseguimos com que isso não acontecesse. Em muitas partes do Brasil, também, a Anatel acaba sendo influenciada pelos poderes políticos locais, que perseguem rádios comunitárias, principalmente durante períodos eleitorais. Muitas dessas rádios acabam servindo aos interesses de grupos políticos ou religiosos.
Há situações no continente americano que podem servir de exemplo para o Brasil?
A realidade das rádios comunitárias na América Latina, de forma geral, é bem similar à do Brasil, mas alguns países têm modificado suas leis para que rádios comunitárias e livres sejam valorizadas como devem ser. A Argentina, por exemplo, dividiu seu espectro eletromagnético em três partes: emissoras estatais, emissoras privadas com fins lucrativos (que chamamos de comerciais) e emissoras privadas sem fins lucrativos. Entre estas, estão as rádios indígenas, sindicais, de movimentos sociais, rádios livres e comunitárias. O governo argentino também confere um percentual da publicidade estatal para essas emissoras. Esse tipo de postura valoriza as rádios livres e comunitárias. O Chile também aprovou recentemente uma lei que descriminaliza a transmissão de frequências em baixa potência -- donos de rádios livres não são mais presos, assim. O Brasil está na contramão dessas iniciativas: precisa acompanhar o resto da América.
Como você define uma rádio comunitária qual sua importância para o Brasil?
A rádio comunitária, para mim, é um complemento da comunicação. A rádio comercial visa o dinheiro; rádio publica tem programação cultural e educativa, mas sem muito contato com as comunidades. A rádio comunidade, por sua vez, é feita por e para a comunidade, que conhece seus problemas, as notícias mais importantes ali, divulga sua cultura, música e ajuda a desenvolver o comércio local. É por isso, aliás, que queremos a permissão da publicidade em rádios comunitárias. Rádios comunitárias conseguem se comunicar com a própria comunidade: fazem campanhas de vacinação, de saúde, mobilizam a população etc.
Nota do editor: Essa história foi publicada originalmente no blog de jornalismo nas Américas do Centro Knight, o predecessor do LatAm Journalism Review.