A transmissão ao vivo de uma procissão de Semana Santa em uma conta do Facebook foi a razão pela qual o jornalista nicaraguense Victor Ticay passou 517 dias na prisão.
Em agosto do ano passado, Ticay foi condenado a oito anos de prisão após ser acusado de conspirar para desestabilizar a integridade nacional e de disseminar informações falsas. Esta última sob a aplicação da Lei Especial de Crimes Cibernéticos, número 1042, aprovada em 27 de outubro de 2020 pelo Parlamento da Nicarágua.
"Eu já vinha enfrentando atritos com o governo por cobrir os protestos de 2018 e por não seguir sua política informativa nos meios tradicionais", disse Ticay à LatAm Journalism Review (LJR). “No dia seguinte à publicação do vídeo da procissão religiosa, agentes de segurança foram à minha casa, roubaram alguns pertences e me sequestraram.”
Em 5 de setembro, enquanto o então diretor da página de Facebook "La Portada" e correspondente do Canal 10 cumpria sua sentença na La Modelo, uma prisão de segurança máxima nos arredores de Manágua, ele foi libertado e desterrado para a Guatemala.
Sua libertação ocorreu junto a outras 134 pessoas como parte de uma negociação do regime do presidente Daniel Ortega com o governo dos Estados Unidos.
Mas o exílio não é sinônimo de liberdade. Apenas quatro dias depois, o Parlamento da Nicarágua aprovou a Iniciativa de Lei de Reformas e Adições à Lei Especial de Crimes Cibernéticos, que "não só servirá como mecanismo de censura dentro da Nicarágua, mas também busca perseguir aqueles que praticam o jornalismo independente e a denúncia fora do país", declarou à LJR Alexa Zamora, ativista política, defensora de direitos humanos e membro da organização Assembleia Nicaraguense pela Democracia.
Na Nicarágua, o exercício do jornalismo independente resulta em desqualificação, perseguição, criminalização e exílio. Entre 2018 e 2024, pelo menos 54 meios de comunicação foram fechados, e cerca de 275 trabalhadores da imprensa foram forçados ao exílio, de acordo com dados da Fundação pela Liberdade de Expressão e Democracia (FLED). Pelo menos 25 jornalistas foram privados de sua nacionalidade.
"Na Nicarágua, não restam meios de comunicação independentes operando devido ao alto nível de perseguição e criminalização", disse Zamora. "O objetivo desta reforma é impedir o trabalho jornalístico no exílio, intimidando aqueles que continuam informando."
De acordo com o documento aprovado, a reforma da Lei de Crimes Cibernéticos estabelece que quem, utilizando tecnologias da informação, redes sociais ou aplicativos móveis, publique ou divulgue informações falsas ou que causem pânico entre a população receberá uma pena de três a cinco anos de prisão e uma multa de trezentos a quinhentos dias.
A categorização do que é ou não informação falsa, tanto na lei original quanto na reforma, fica a critério do governo da Nicarágua. Meios nicaraguenses documentaram o caso de um agricultor que foi condenado, em 2022, sob a versão anterior da lei de crimes cibernéticos, apesar de não saber usar celular ou computadores.
"A ditadura é a maior fabricante de notícias falsas na Nicarágua, não a sociedade nem seus críticos, como querem fazer parecer", disse Octavio Enríquez, jornalista independente nicaraguense no exílio, à LJR.
Zamora explicou que, mesmo que o acusado esteja no exílio, o governo pode processá-lo à revelia. As consequências de um julgamento à distância podem incluir monitoramento, assédio a familiares, processos de desnacionalização e confisco de bens no país.
"A ditadura não conseguiu parar o fluxo de informações vindas do exílio. Com essa reforma, buscam intimidar, pois nem todos podem tirar toda a família do país", disse Ticay.
Enríquez concorda. Para ele, a lei de crimes cibernéticos é mais uma ferramenta do "terror que o regime da Nicarágua adotou como política de Estado".
Enríquez deixou a Nicarágua em 2021, após ser convocado pela segunda vez pelo Ministério Público em relação ao caso contra a Fundação Violeta Barrios de Chamorro, organização que promovia o jornalismo independente e a liberdade de imprensa na Nicarágua. A ex-diretora dessa fundação foi condenada pela justiça da Nicarágua a oito anos de prisão por lavagem de dinheiro e apropriação indevida.
Embora Enríquez não tenha sido ameaçado com a aplicação da Lei de Crimes Cibernéticos, outros jornalistas citados no caso foram. Foi o caso de Wilfredo Miranda, jornalista e cofundador do meio Divergentes.
Em entrevista ao meio Confidencial, Miranda relatou que, em 2021, durante uma entrevista com a promotora Heidy Ramírez, foi questionado e acusado de violar a Lei Especial de Crimes Cibernéticos.
"Ela começou a perguntar qual era minha relação com a Fundação Violeta e falei sobre prêmios, algumas consultorias pontuais que fiz... mas fiquei surpreso quando ela fez uma pausa, voltou com seu celular e começou a ler todos os meus artigos, me incriminando, dizendo que eu mentia, que estava violando a Lei de Crimes Cibernéticos", contou Miranda ao Confidencial.
Atualmente, Miranda também está no exílio.
Em agosto, os Estados-membros das Nações Unidas aprovaram o primeiro tratado juridicamente vinculante sobre crimes cibernéticos após três anos de negociações. Esse documento visa fornecer ferramentas que melhorarão a cooperação internacional em matéria de crimes cibernéticos.
No entanto, organizações e especialistas identificaram lacunas e contradições no tratado que podem ser usadas para validar abusos contra a liberdade de expressão.
"Essa convenção dá aos Estados o poder de monitorar e espionar em tempo real pessoas de interesse", disse Zamora. “Isso é bastante preocupante, pois já vimos o mau uso que as ditaduras fazem dos mecanismos de controle internacional.”
Mesmo assim, os jornalistas nicaraguenses no exílio afirmam manter seu compromisso com o jornalismo. "Eles estão informando no exterior em condições difíceis, com baixos salários, sem seguro em alguns casos. E, apesar de tudo, continuam", disse Enríquez.
Durante a detenção de Ticay, ele foi privado de seus bens e, no momento de seu exílio, recebeu apenas um passaporte com uma foto sua vestindo o uniforme de prisioneiro. Apesar disso, ele ainda não pensa em deixar o jornalismo e espera poder se mudar para os Estados Unidos no futuro.
"Quero continuar fazendo jornalismo", disse Ticay. "É o que estudei, no que trabalhei – divulgando as necessidades das pessoas nas comunidades. Meu compromisso continuará sendo com a verdade."