No México, jornalistas vivem sob o terror da violência da qual são alvo, e embora o governo tenha criado mecanismos de proteção a estes profissionais, a impunidade e a insegurança continuam sendo a tônica em todo o país. Estas são algumas das conclusões de David Kaye, relator especial da ONU para a promoção e proteção do direito à liberdade de opinião e expressão, e Edison Lanza, relator especial da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) para a liberdade de expressão, ao concluir uma missão de uma semana no México.
Os relatores apresentaram suas observações preliminares em uma conferência conjunta realizada na Cidade do México, capital do país, no dia 4 de dezembro. “Percebemos uma categoria atemorizada em muitas partes do país; aterrorizados, em alguns casos, pelo que tiveram que viver e ver, porque perderam colegas ou foram eles mesmos objetos de diversas formas de agressão; porque têm companheiros ainda desaparecidos e esta é uma realidade que golpeia e impacta”, disse Lanza, segundo reportou El Universal.
“O México é um país democrático e não pode continuar com essa dinâmica de violência e assassinatos contra jornalistas”, continuou o relator da CIDH. “Quando se compara com a Síria e outros países do mundo onde há conflitos e autoritarismo, acreditamos que o México se sai pior, porque é uma democracia que, em muitos sentidos, aspira ser um país desenvolvido.”
Desde 2000, 111 jornalistas foram assassinados no México; 38 deles desde que o atual presidente, Enrique Peña Nieto, assumiu o cargo.
Com o objetivo de avaliar a liberdade de expressão e a segurança dos jornalistas no país, os relatores visitaram 21 Estados mexicanos e se encontraram com mais de 250 jornalistas e membros de organizações da sociedade civil entre os dias 27 de novembro e 4 de dezembro, informou a CIDH. Eles divulgaram no dia 4 observações preliminares sobre a visita, que foi também uma avaliação dos progressos alcançados desde 2010, quando ocorreu a última missão de relatores da ONU e da CIDH para a liberdade de expressão no país.
Em seu relatório preliminar, Kaye e Lanza reconheceram como avanços a criação de órgãos como a Procuradoria Especializada para a Atenção a Crimes Cometidos Contra a Liberdade de Expressão (FEADLE, na sigla em espanhol), o Mecanismo para a Proteção de Defensores de Direitos Humanos e Jornalistas e a Comissão Executiva de Atenção a Vítimas (CEAV). No entanto, ressaltaram que “o México progrediu pouco ou nada na erradicação da impunidade.”
“A impunidade de assassinatos e outros ataques contra jornalistas tem sido documentada por instituições governamentais e organizações da sociedade civil, sugerindo que pelo menos 99,6% destes crimes permanecem sem solução. É moralmente inaceitável que o governo mexicano tenha falhado em determinar as circunstâncias nas quais pelo menos 20 jornalistas desapareceram, localizar seu paradeiro e processar os responsáveis”, escreveram os relatores.
“O governo deve lidar com a percepção e a realidade de que é muito absurdo que os autores materiais dessa violência não sejam responsabilizados”, disse Kaye, segundo El Universal. “O esforço nacional, que já se estabeleceu na infraestrutura, com o mecanismo de proteção e a FEADLE, deve receber mais recursos. Precisamos ver um esforço muito forte para melhorar os recursos e as capacidades da Procuradoria.”
Os relatores também se referiram à investigação da FEADLE sobre o uso do software Pegasus, supostamente empregado pelo governo de Peña Nieto para espionar jornalistas e ativistas de direitos humanos.
“Nos preocupa que a FEADLE, mesmo com um esforço de boa fé, não tem a independência necessária para investigar esta questão muito séria. De fato, a Procuradoria-Geral da República, da qual a FEADLE faz parte, é um dos órgãos acusados de ter comprado o Pegasus”, escreveram Kaye e Lanza nas observações preliminares. Eles afirmaram que “qualquer investigação deve ser independente dos governos federal e estaduais acusados de terem comprado ou usado o spyware e deve incluir especialistas de organizações acadêmicas e da sociedade civil, inclusive potencialmente de fora do México.”
O relatório completo com as conclusões e recomendações finais dos relatores da ONU e da CIDH será lançado em 2018.
Meios mexicanos dizem “Basta Ya”
No mesmo dia em que os relatores Kaye e Lanza apresentaram seu diagnóstico das ameaças a jornalistas e à liberdade de expressão no México, 39 empresas de mídia mexicanas, incluindo jornais, revistas e emissoras de TV e rádio, lançaram um manifesto intitulado “Basta Ya” (“Basta Já”) em resposta aos ataques à imprensa no país.
“O sistema de Justiça mexicano, tanto nas instâncias locais como federais, se encontra ultrapassado diante da violência contra a imprensa que não só golpeia o setor jornalístico como lesa sua missão de velar pelo direito da sociedade a saber, chave para consolidar uma democracia”, diz o texto divulgado simultaneamente pelos meios subscritores, entre os quais estão jornais como El Universal, La Jornada, La Razón, El Economista e Milenio, emissoras de TV e rádio como Univisión, TV Azteca, Televisa e Radio Centro, e revistas como Nexos e Proceso.
Os veículos acusam o crime organizado de “cancelar a livre expressão em regiões inteiras do país”, e incluem “servidores públicos dos três níveis de governo” entre os agressores à imprensa e a jornalistas. “Ante este panorama, no México se requerem com urgência governantes, legisladores, promotores, juízes, policiais e outros funcionários que estejam mais comprometidos com a necessidade de prover esquemas de proteção. Este compromisso se exige tanto do governo federal como dos governos estatais e municipais, estes que são os primeiros responsáveis de garantir a segurança dos comunicadores.”
Os 39 meios de comunicação também reconheceram sua responsabilidade em dar sua própria contribuição “para proteger jornalistas e empresas”. Estas últimas são chamadas a “dotar os jornalistas de esquemas de capacitação, segurança social, salários adequados e seguros de vida, especialmente nos casos em que estejam desempenhando coberturas que representem um perigo claro”.
Os veículos disseram ter acordado em desenvolver uma estratégia conjunta para prevenir ataques contra jornalistas. Também propuseram a criação de um grupo de trabalho para delinear ações de curto, médio e longo prazo nesse sentido, assim como estabelecer objetivos a serem alcançados como indústria de meios de comunicação e como categoria profissional. O grupo também irá abrir canais de comunicação com instituições de direitos humanos nacionais e internacionais e outras entidades em busca de apoio para seus objetivos. Finalmente, se comprometeram em promover uma campanha para sensibilizar a sociedade para os desafios enfrentados pela imprensa no México.
“A batalha contra a impunidade só será eficaz se temos ao nosso lado uma sociedade que sinta que com cada assassinato de um jornalista é arrancado de suas mãos seu direito de saber, de participar; sua própria essência como cidadãos”, encerram.
A agência Efe observou que este é o segundo “Basta Ya” lançado por meios de comunicação sobre a situação no México em menos de um ano. Em 24 de maio, poucos dias após o assassinato do jornalista Javier Valdez em Sinaloa, veículos nacionais e internacionais divulgaram um apelo similar para denunciar uma “ofensiva assassina” contra comunicadores no México, exigindo segurança e garantias ao direito a informar.
Além disso, após o assassinato de Valdez, a iniciativa Agenda de Periodistas foi criada e convocou centenas de jornalistas para discutir ações a serem tomadas com o objetivo de acabar com os ataques contra jornalistas.
Desde maio, pelo menos outros cinco profissionais de mídia foram assassinados no país: os mexicanos Salvador Adame, Cándido Ríos Vásquez, Juan Carlos Hernández Ríos e Edgar Esqueda e o hondurenho Edwin Rivera Paz.
Nota do editor: Essa história foi publicada originalmente no blog de jornalismo nas Américas do Centro Knight, o predecessor do LatAm Journalism Review.