Por Silvia Higuera y César López Linares
Cinco anos após sua implementação, o projeto da UNESCO para capacitar juízes, promotores e outros operadores da Justiça na América Latina sobre liberdade de expressão e acesso à informação tornou-se o programa de capacitação judicial mais ambicioso da região e levou a resultados concretos nos tribunais. Esta é a conclusão de um relatório especial para a UNESCO produzido pelo jornalista americano Bill Orme.
No relatório “Schools for Judges: Lessons in Freedom of Information and Expression from (and for) Latin America’s courtrooms” (“Escolas para juízes: Lições de liberdade de informação e expressão de (e para) tribunais da América Latina”, em tradução livre), publicado pela UNESCO em inglês e espanhol, Orme destaca que mais de 600 operadores judiciais participaram dos seminários presenciais do programa, e cerca de 8.000 realizaram o curso massivo aberto online (MOOC) que é oferecido em conjunto com o Relator Especial para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e o Centro Knight para o Jornalismo nas Américas na Universidade do Texas em Austin.
O alcance desses cursos online, que permitem a "democratização da capacitação judicial", conforme citado por Orme em seu relatório, tornou-se um elemento de grande apoio a esse programa de treinamento da UNESCO. Por exemplo, o curso online, chamado “Quadro Legal Internacional sobre Liberdade de Expressão, Acesso à Informação Pública e Proteção de Jornalistas”, tem o apoio das mais altas autoridades judiciais da América Latina, o que Orme destaca como um dos mais importantes resultados da iniciativa.
Esses cursos online, pioneiros no mundo em termos de liberdade de expressão, começaram em 2014 com o programa piloto para juízes e outros operadores judiciais no México. Naquela ocasião participaram cerca de 900 pessoas, o que, para Rosental Alves, diretor e fundador do Centro Knight, foi uma resposta "quase esmagadora" e inesperada, segundo o relatório de Orme.
Seguiu-se uma versão especial do curso para juízes do Estado mexicano de Coahuila em 2015. Nesse mesmo ano, o curso foi oferecido pela primeira vez para América Latina e Espanha. Esta edição do curso tem sido oferecida anualmente com atualizações tanto das aulas de vídeo como das decisões judiciais, com um número crescente de operadores da Justiça da região participando.
No total, o Centro Knight, a UNESCO e o Escritório do Relator Especial ofereceram a versão internacional do curso cinco vezes. A edição mais recente terminou em maio de 2018, atingindo um número recorde de 2.418 participantes aceitos.
"Para a Relatoria Especial, é muito importante participar desse processo em conjunto com os operadores judiciais da região. Um trabalho que faz parte da incansável tarefa de promoção que este escritório vem realizando nos últimos 20 anos na sua relação com tribunais superiores, tribunais nacionais e promotores dos vários países da região; desde múltiplas visitas presenciais a promotorias em vários países, a escolas judiciais e espaços de reflexão com juízes, através dos relatórios temáticos e da sistematização das normas; para os casos promovidos pela Comissão e perante a Corte Interamericana que geram decisões emblemáticas”, Edison Lanza, Relator Especial para a Liberdade de Expressão da CIDH e um dos instrutores desses cursos online, disse ao Centro Knight.
"A implementação deste MOOC juntamente com a UNESCO e o Centro Knight é uma prática bem sucedida que temos apoiado ao longo do tempo e que permite uma maior disseminação através de novas tecnologias. Destacamos a figura de 8.000 operadores judiciais como uma grande conquista conjunta com os nossos parceiros. Isso não poderia ser compreendido sem o conhecimento especializado, a doutrina e a jurisprudência que o Escritório da Relatoria tem promoveu em nível interamericano em seus 20 anos e na justiça individual em casos específicos processados perante o sistema interamericano”, acrescentou Lanza.
O apoio da Organização dos Estados Americanos (OEA) por meio do Escritório do Relator Especial para a Liberdade de Expressão ao programa de treinamento da UNESCO, bem como a decisão da Cúpula Judicial Ibero-Americana de alinhar suas atividades com a Agenda 2030 das Nações Unidas, é outra conquista notável desta iniciativa, de acordo com o relatório.
Projeto busca inspirar outras regiões
A UNESCO convidou Orme, ex-correspondente do jornal americano The New York Times no Oriente Médio e especialista em mídia internacional e comunicação estratégica, para escrever o relatório para que alguém analisasse os resultados do programa sob um ponto de vista objetivo, e em um formato jornalístico que pudesse ser entendido por um público geral. O resultado, segundo a UNESCO, foi um informe menos burocrático e mais humanizado.
“Este relatório conta a história desde a perspectiva dos juízes envolvidos, do ponto de vista deles”, disse Guilherme Canela, assessor regional da UNESCO em comunicação e informação, ao Centro Knight. "Ter alguém que é um completo estranho para contar esta história é, na minha opinião, muito útil para que tenhamos uma nova perspectiva, novo oxigênio, sobre como ler esta história, que muitas pessoas consideram uma história de sucesso."
Para escrever seu relatório, Orme viajou ao Paraguai em novembro de 2017 para o mais recente programa de capacitação presencial. Lá, o jornalista entrevistou vários dos juízes participantes, bem como ex-presidentes de tribunais envolvidos na criação do programa.
Após suas entrevistas no Paraguai, Orme foi capaz de corroborar o impacto de longo prazo que o programa teve no sistema de Justiça criminal do país e na defesa da liberdade de imprensa e do acesso à informação.
Como exemplo, ele analisou o caso do assassinato do jornalista paraguaio Pablo Medina em 2014, que estava investigando relatos de supostas ligações de um prefeito com o tráfico de drogas. Mais tarde, foi revelado que o prefeito havia encomendado o assassinato. Ele foi condenado a 39 anos de prisão.
“Um dos juízes do julgamento do ex-prefeito foi um dos formandos no seminário da UNESCO em 2015”, escreveu Orme em seu relatório. “O juiz disse aos colegas que o curso lhe havia dado orientação valiosa sobre o caso, destacando os precedentes para julgar o assassinato premeditado de um jornalista não como um homicídio comum, mas como um ataque à liberdade de imprensa e aos direitos de todos os paraguaios de ‘buscar, receber e transmitir informações e idéias’, nas palavras da Declaração Universal dos Direitos Humanos.”
A UNESCO espera que o relatório de Orme inspire outras regiões a realizar programas de treinamento semelhantes aos da América Latina para apoiar o fortalecimento dos poderes judiciais em casos de liberdade de expressão e outros direitos.
“Partes dessa iniciativa já estão sendo aplicadas na África, no interesse dos operadores judiciais africanos”, disse Canela. “Um treinamento inicial de juízes africanos aconteceu no ano passado, totalmente inspirado - com as adaptações correspondentes, é claro - por esta iniciativa que começou na América Latina.”
"Juízes e outros operadores judiciais foram treinados em um momento em que esses marcos legais não existiam em seus próprios países", disse Canela. "Acreditamos que um desafio é que eles conheçam e sejam treinados nessa nova lógica de governança após essa onda de aprovação de leis sobre acesso à informação pública."Orme destacou em seu relatório que a maior parte das leis atuais sobre acesso à informação pública no mundo datam do ano 2000 até o presente, e que a América Latina está na vanguarda tanto em termos do rigor de sua legislação como no sucesso da sua implementação. No entanto, a maioria das faculdades de Direito da região ainda não trata desses marcos legais. Esse é o desafio que levou a UNESCO a criar o programa de treinamento.
Canela disse que os temas que mais interessam juízes e magistrados latino-americanos em cursos e seminários são aqueles que têm a ver com legislação sobre Internet e liberdade de expressão.
"Essas dificuldades são ainda mais explícitas por causa da novidade e da aceleração que a tecnologia traz em termos de direitos como liberdade de expressão ou privacidade", disse o consultor da Unesco.
Canela espera que o relatório de Orme estimule o interesse de jornalistas latino-americanos pela importância do Judiciário na proteção da liberdade de expressão, no acesso à informação pública e na proteção dos próprios jornalistas.
"Se isso pode estimular outros jornalistas latino-americanos, independentemente de eles falarem ou não sobre a iniciativa da UNESCO, a falar sobre a questão, sobre a importância do Judiciário em promover e proteger a liberdade de expressão, acho que teremos atingido o objetivo com este relatório", disse Canela.