texas-moody

Repórter Brasil completa 20 anos de prêmios, furos, investigações e se consolida como referência em direitos humanos

O jornalista Leonardo Sakamoto, diretor-geral da Repórter Brasil, gosta de citar o número de horas de ônibus que percorreu para fazer reportagens no início da organização, em 2001.

"A gente não tinha grana no começo, avião na época era caro. Então a gente ia de ônibus. Fui fazer matéria no interior de Alagoas e foram 48 horas. Outra no interior do Amapá que deu 53 horas de ônibus até Belém, mais 18 de lancha rápida, mais horas até o interior do Amapá. E por aí vai", lembra Sakamoto, em entrevista à LatAm Journalism Review (LJR).

Na época, cerca de dez jovens, a maioria jornalistas, se juntaram para formar a Repórter Brasil, com o objetivo de "trazer à tona a voz daquelas pessoas que não conseguiam ter suas histórias contadas publicamente, trazer os invisíveis para dentro da pauta", conta Sakamoto. Eles queriam fazer algo diferente, não no sentido de se opor à grande imprensa, mas para complementar a cobertura dos veículos tradicionais.

Equipe da Repórter Brasil em 2015

Equipe da Repórter Brasil em 2015; Sakamoto aparece em primeiro plano

Quando viajavam, ofereciam as reportagens para meios parceiros, mas nem sempre conseguiam vender o material, e ficavam no prejuízo. Dos fundadores iniciais, muitos trabalhavam para outros veículos e usavam seu próprio dinheiro para fazer as matérias da Repórter Brasil. "Tinha vezes que não fechava a conta", recorda Sakamoto.

Desde esse período de falta de recursos e jovens jornalistas viajando de ônibus atrás das pautas, muita coisa mudou. A ONG cresceu, se profissionalizou e se institucionalizou. Conquistou dezenas de prêmios e reconhecimentos dentro e fora do país, fez investigações jornalísticas e especiais multimídia, documentários, parcerias com veículos nacionais e internacionais e deu furos que impactaram a conduta de empresas e políticas públicas. Também se consolidou como referência em direitos humanos e socioambientais, principalmente nas áreas do combate ao tráfico de seres humanos, trabalho escravo e violações trabalhistas.

A Repórter Brasil comemora 20 anos em 9 de outubro, data em que o site foi lançado originalmente – nas palavras de Sakamoto, a ONG é hoje, pelo seu histórico no país, "um vovô das organizações de jornalismo digital". Para marcar o aniversário, a LJR conversou com pessoas-chave da Repórter Brasil para contar como ela funciona, sua forma de fazer jornalismo e os planos para o futuro.

De acordo com Sakamoto, a Repórter Brasil é não apenas uma ONG de jornalismo, mas "um hub de informação" sobre temas socioambientais e trabalhistas. Com cerca de 25 funcionários fixos, a organização está dividida em quatro programas: jornalismo, documentário, investigação e educação.

O braço de jornalismo é a agência de notícias, especializada em grandes reportagens, de profundidade e investigativas. Há também uma espécie de subárea, independente, que é a de documentários, cujos filmes ganharam prêmios em festivais nacionais e internacionais.

"Desde 2006 a gente produz longas metragens sobre a realidade brasileira, trabalho escravo, trabalhadores nos frigoríficos, na construção de grandes hidrelétricas, ou que foram massacrados pelo trabalho com amianto", enumera Sakamoto.

Outro programa importante é o de investigação, que faz pesquisa de campo e produz relatórios sobre atores econômicos. Essa área é conhecida por fazer o chamado "follow the money", explica Sakamoto, ou seja, eles seguem o rastro do dinheiro e das mercadorias nas cadeias produtivas.

"A gente rastreou mais de duas mil unidades produtivas, como fazendas, carvoarias, locais de produção, construção e indústrias, mostrando como mercadorias fabricadas com trabalho escravo, com tráfico de seres humanos, com trabalho infantil, com desmatamento ilegal, com ataques a comunidades tradicionais, com danos ambientais, chegam ao mercado nacional e internacional", conta Sakamoto.

Os relatórios produzidos pela Repórter Brasil nos últimos 18 anos impactaram a formulação de políticas por parte dos setores produtivo, bancário e financeiro, bem como de governos e da sociedade civil. Para Sakamoto, o jornalismo é a principal atuação da Repórter Brasil, porque englobaria essas três áreas: a agência de notícias, documentários e investigação. Além disso, a grande maioria dos funcionários da organização são jornalistas.

Formação de professores e lideranças no programa Escravo, nem pensar!

Formação de professores e lideranças no programa Escravo, nem pensar! Foto: Divulgação

O quarto braço é o de educação, com vários programas, sendo que o mais importante é o  Escravo, nem pensar!. Criado em 2004, o projeto já capacitou mais de 22 mil professores, assistentes sociais e lideranças populares em 465 municípios de 11 estados sobre o tema da prevenção do trabalho escravo. A Repórter Brasil também se juntou a professores de universidades de jornalismo para fazer um curso online de combate à desinformação, chamado de Vaza, Falsiane!, que recebeu apoio do Facebook.

Para a coordenadora de jornalismo da Repórter Brasil, Ana Magalhães, o fato de a organização ter núcleos separados, que se dedicam a fazer jornalismo, educação ou advocacy, por exemplo, é algo raro no Brasil, mas comum em outros países.

"Acho que esse é outro pioneirismo da Repórter Brasil", explica ela à LJR.

Magalhães afirma que as áreas são independentes financeiramente, ou seja, ela é a responsável por captar recursos para o núcleo de jornalismo. "Tenho bastante autonomia. Posso contratar, sou eu que gestiono o recurso que eu mesmo capto", conta. Ao mesmo tempo, todos os núcleos contribuem para manter o setor administrativo, que lida com gastos comuns como aluguel, contabilidade, entre outros.

Essa separação dos recursos também ajuda a garantir a independência editorial da agência de notícias, explica Magalhães. Ela conta que o braço de jornalismo não participa de campanhas ou advocacy. "Acho que essa mistura não pode acontecer. A gente tenta isolar o jornalismo, justamente para fugir dessa pecha de ativistas", diz.

Magalhães explica que o jornalismo da Repórter Brasil é "combativo e guerreiro" e, ao mesmo tempo, muito rigoroso e técnico. "O que eu faço dentro da Repórter Brasil é exclusivamente jornalismo, dentro de todos os critérios técnicos de qualidade e de comprovação científica, confirmação da origem da informação e outros lados. E a prova do nosso tecnicismo é que a gente é republicado em grandes veículos do país".

Os relatórios feitos pelo núcleo de investigação da Repórter Brasil costumam ser usados como referência para melhorar políticas das empresas, e pode haver alguma interlocução nesse sentido, mas isso não afeta em nada a produção jornalística, diz Magalhães.

Ana Magalhães, da Repórter Brasil

A coordenadora de jornalismo da Repórter Brasil, Ana Magalhães. Foto : Arquivo pessoal

"Tem um braço da Repórter que de fato muitas vezes senta com empresas que são alvo das nossas matérias, [...]  para conversar sobre como eles podem melhorar o controle sobre fornecedores que desmatam ou usam trabalho escravo. É interessante que não há nenhuma influência editorial, eu nem aviso os demais núcleos das reportagens que vamos publicar. E nunca recebi alguma sugestão de outro núcleo para não investigar, uma interferência no meu trabalho", afirma.

Perguntado se o trabalho de advocacy da organização poderia representar algum conflito editorial para o jornalismo, Sakamoto respondeu que "não, nenhum". E acrescentou que apenas jornalistas costumam colocar essa questão dessa forma, como oposição. Ele explicou que a Repórter Brasil faz advocacy contra o trabalho escravo e tráfico de seres humanos, temas universais e presentes da Constituição brasileira. "Acharia muito estranho fazer advocacy a favor do trabalho escravo. Como dá para ser imparcial na questão do combate ao trabalho escravo? Eu não sei", questiona.

Ele aponta que o jornalismo moderno nasceu "de mãos dadas com os direitos humanos", "no mesmo caldo".

"A liberdade de imprensa e de expressão é um dos direitos humanos. Então o jornalismo nasce com uma das funções de preservar e garantir que os direitos humanos sejam efetivados numa sociedade. Se o jornalismo se omite disso, ele está agindo em nome da sua própria destruição, porque sem a garantia de direitos humanos o jornalismo não existe. O advocacy pela dignidade humana deveria ser condição obrigatória da atividade jornalística", argumenta.

Sakamoto destaca que não é função do jornalista, por exemplo, "libertar pelas mãos todos os trabalhadores escravizados", mas é sim sua obrigação levar informação de qualidade para a sociedade, para que ela possa agir para efetivar os direitos humanos.

Ele reforça que a Repórter Brasil é muito rigorosa com o outro lado. "Inclusive ele é mais ouvido do que em muitos veículos tradicionais. Seguimos parâmetros muito pesados [nisso]. Quando vai fazer investigação, e o outro lado dá uma versão que é realmente forte, a matéria cai. O outro lado não é pro-forma, é para tentar descobrir os fatos mesmo".

Magalhães concorda que essa é uma característica do jornalismo da Repórter Brasil. Não basta enviar um email com um pedido de posicionamento, é preciso insistir e ser transparente na demanda. "Se a empresa pedir mais prazo a gente costuma dar, e publicamos o outro lado na íntegra. Para nós, o outro lado não é protocolar nunca".

DNA da Repórter Brasil

Outra marca do jornalismo da organização é investir tempo e dinheiro em reportagens investigativas, aprofundadas e com trabalho de campo – ainda que esse último aspecto tenha sido prejudicado com a pandemia, lembra Magalhães.

"É muito comum ter um repórter meu um ou dois meses investigando um assunto só para fazer uma matéria. Outro diferencial é ir a campo, ir aonde ninguém vai, em lugares da Amazônia de muito difícil acesso e muitas vezes perigosos. Isso tá muito no DNA da Repórter, apurar em campo, mesmo que sejam matérias caras e demoradas", diz ela.

Especial Cova Medida, da Repórter Brasil

Especial Cova Medida, da Repórter Brasil. Imagem: Print do site

A Repórter Brasil também se consagrou como produtora de grandes especiais multimídia. De acordo com Magalhães, eles procuram publicar pelo menos um por ano. No início de 2021, por exemplo, eles lançaram o especial Cova Medida, que acompanha os 31 assassinatos no campo de 2019, primeiro ano do governo do presidente Jair Bolsonaro, para discutir a impunidade. A investigação apontou que, um ano depois, ninguém tinha sido condenado, e apenas um caso tinha sido considerado encerrado.

Magalhães afirma que o impacto é um dos grandes trunfos do jornalismo da Repórter Brasil, porque as reportagens conseguem pautar o debate público e melhorar a vida das pessoas. Muitas vezes, o primeiro impacto é imediato, já no momento de pedir o outro lado, conta ela. Isso ocorre com frequência em investigações sobre as cadeias produtivas, que revelam, por exemplo, o uso de trabalho escravo por parte de algum fornecedor ou a associação entre frigoríficos e o desmatamento ilegal.

"Ao pedir o outro lado, se a empresa é séria, ela suspende o fornecedor. Ou suspende até investigar [a denúncia da reportagem]. Então é um jornalismo que batalha para que esse segmento [empresarial] seja um pouco mais transparente e sustentável", diz ela.

Da mesma forma, matérias sobre violações trabalhistas costumam gerar consequências rapidamente, com investigações por parte do Ministério Público do Trabalho. "Em muitas das reportagens, a gente liga para algum procurador para ouví-lo sobre aquela denúncia e acontece com uma certa frequência de eles abrirem uma investigação".

Por exemplo, em agosto, a Repórter Brasil revelou que o Exército tinha criado um "canto dos maus-tratos" em abrigos no Norte do país para confinar indígenas venezuelanos alcoolizados. Três dias após a reportagem, o Ministério Público Federal e a Defensoria Pública da União fizeram uma inspeção surpresa no alojamento e confirmaram a existência do "canto dos maus tratos", bem como recolheram denúncias dos migrantes e refugiados.

Talvez a marca mais relevante do jornalismo da Repórter Brasil seja os temas que a organização cobre: violações de direitos humanos no campo trabalhista e socioambiental. E isso abarca muita coisa, como trabalho escravo, tráfico de seres humanos, desmatamento, comunidades indígenas e tradicionais, violência no campo, agrotóxicos, cadeias produtivas, direitos trabalhistas, só para citar alguns.

Aplicativo da Repórter Brasil avalia como marcas combatem trabalho escravo

Aplicativo da Repórter Brasil avalia como marcas combatem trabalho escravo. Foto: divulgação

Foram essas coberturas que tornaram a organização famosa, como lembra Kátia Brasil, cofundadora e editora-executiva da agência Amazônia Real.

"A Repórter Brasil é uma referência no jornalismo brasileiro no combate ao trabalho análogo ao escravo, o que ela reportou em inúmeras matérias, as condições de trabalhadores encontrados em situações degradantes e de violações de direitos", disse ela, em entrevista à LJR. Os dois meios de comunicação são parceiros em diversos projetos especiais de reportagem.

A editora-executiva conta que deixou de comprar produtos de certas empresas após ler reportagens da Repórter Brasil sobre trabalho escravo.

"Tenho certeza que inúmeros brasileiros mudaram a sua visão de mundo, principalmente sobre consumir marcas que foram investigadas por contratarem trabalhadores dessa forma". Ela afirma que, só por essa cobertura, a organização já pode ser considerada "uma grande mídia brasileira", e seus jornalistas, "verdadeiros combatentes das violações de direitos humanos".

Ataques e nova sede

Todas essas investigações, em um país como o Brasil, renderam processos judiciais de censura contra a organização e seus jornalistas, inclusive uma tentativa de invasão da sua sede em janeiro e ataques hackers que tiraram o site do ar.

"Tem censura contra a gente hoje? Tem. Censura por divulgar informação pública de interesse público. [...] É ataque atrás de ataque, mas faz parte. Aprendi ao longo do tempo, com ameaça de morte, sendo agredido fisicamente, perseguido na rua, a entender o processo e não ficar paranóico. Fazemos uma atividade que nos coloca em evidência, mas também em risco", diz Sakamoto.

A comemoração do aniversário coincidiu com a compra de uma nova sede, mais segura, e será marcada pela produção de conteúdo especial e uma campanha institucional. A ideia original era fazer eventos presenciais e uma festa, mas tudo foi cancelado com a pandemia.

Sakamoto conta que tem muito orgulho do que a organização conquistou nos últimos vinte anos, em um país em que, "em muitos lugares, direitos humanos é quase um palavrão".

"A gente viu o Brasil se transformar [nesse período], só que, ao mesmo tempo, independentemente dos governos que passaram, sejam eles progressistas ou conservadores, os direitos fundamentais dos grupos mais vulneráveis do Brasil continuam sendo vilipendiados. Então a gente continua. Acho que o trabalho da Repórter Brasil vai ser essencial nos próximos anos, porque os direitos humanos vão continuar sendo um produto de luxo pro país".

(Foto de banner é uma ilustração do especial Cova Medida/Repórter Brasil)

 

Artigos Recentes