Enquanto o jornalismo experimenta vertiginosamente a mudança do impresso para o digital, o site peruano de jornalismo investigativo Ojo Público aposta em fazer o oposto. Pelo menos em parte.
Com o seu mais recente projeto editorial, El Tercer Ojo, os jornalistas começaram a publicar em um formato diferente suas reportagens mais importantes - como os da indústria farmacêutica transnacional, o tráfico de patrimônio cultural na região, entre outros - em uma série de edições impressas, com versão digital, com as quais esperam alcançar novas audiências.
A série de jornais temáticos bilíngües de curta tiragem chamada "Times" é o primeiro lançamento do projeto El Tercer Ojo. Com essas edições, impressas e digitais, o que buscam é colocar novamente em pauta graves problemáticas e histórias transcendentais que afetaram e seguem afetando o Peru. Em muitos casos, são temas que a imprensa tradicional esqueceu ou aos quais não deu a devida importância ao longo do tempo, explicou David Hidalgo, diretor jornalístico de Ojo Público, para o Centro Knight.
Assim nasce o recentemente lançado Llakiy Times (Tempos de Pesar, traduzido do quechua e do inglês), um jornal contra a impunidade, que trata temas de direitos humanos na realidade peruana. Esta primeira edição apresenta, através de micronarrativas de um parágrafo e de reportagens gráficas de renomados fotógrafos peruanos, os principais casos de desaparecimentos forçados e violações de direitos humanos no Peru, nas mãos do grupo terrorista Sendero Luminoso e das forças armadas durante as décadas de 1980 e 90.
"Queremos chegar tanto aos leitores insatisfeitos com a imprensa tradicional como também a pessoas que não têm acesso assegurado à internet todo o tempo, devido à brecha digital que existe no país", disse Hidalgo.
Entre os casos mais importantes destacados pelo Llakiy Times está o de La Cantuta. Trata-se do assassinato de nove estudantes e um professor que foram torturados, assassinados e enterrados em partes, nos arredores de Lima, pelo grupo paramilitar Colina. Este grupo militar de extermínio foi criado durante o primeiro governo do agora preso ex-presidente Alberto Fujimori (1990-2000) para mitigar as ações terroristas que flagelavam o país naquele momento.
O tratamento visual dos temas expostos no Llakiy Times também rompe com a proposta dos jornais tradicionais, mostrando histórias fotográficas em vez de imagens descritivas para ilustrar o texto. O renomado fotógrafo peruano Musuk Nolte foi responsável pela edição fotográfica. Leslie Searles, outra das fotógrafas peruanas que participaram da edição com seu trabalho no caso do massacre de Soras, Ayacucho, comentou que foi interessante ter a oportunidade de mostrar essas histórias importantes no impresso, dando espaço também às imagens. "Algo que os jornais locais já não fazem", disse Searles ao Centro Knight.
Para Max Cabello, outro fotógrafo participante, foi sugestivo poder ser parte deste projeto e compartilhar imagens que são memória de denúncia, de temas de interesse público. Segundo Cabello, para muitos jornalistas estes temas são parte do passado, não se fala sobre isso, e também "existem forças políticas, institucionais, a quem não interessa que se fale sobre isso. No máximo, lhes interessa que se fale disso em voz baixa."
Um professor da Universidade de Yale disse que usará o conteúdo de Llakiy como parte de seu curso. O peruano José Ragas, doutor em História, disse ao Centro Knight que planeja incorporar esse material em seu curso de “Histórias Globais de Identificação e Vigilância”, no qual ensina sobre violência política, genocídio e identificação a alunos de diferentes disciplinas.
"Penso em ler com eles o texto de Fabiola Torres, aproveitando que está também em inglês, para explicar as estratégias de identificação em vítimas de violência e os avanços da medicina forense e de DNA", disse Ragas, que destacou a qualidade da pesquisa jornalística do Llakiy Times.
De acordo com Hidalgo, a versão impressa da Llakiy Times será distribuída gratuitamente em universidades, através de organizações da sociedade civil e seus membros, sobretudo as que trabalham em comunidades de diferentes regiões do país, com vítimas de abusos de direitos humanos que muitas vezes vivem em contextos difíceis, com pouco ou nenhum acesso à internet.
No Peru, os povoados pobres de zonas rurais, especialmente os camponeses, foram as principais vítimas da violência terrorista e do Estado que o país viveu durante os anos 1980 e 90. A Comissão da Verdade e da Reconciliação do Peru, que analisou o que aconteceu no país durante essas décadas, publicou em seu relatório final que mais de 35% das vítimas fatais da violência, sem contar as pessoas desaparecidas, estão localizadas nos departamentos mais pobres da serra peruana.
"Neste caso, é uma questão de promover a memória em vários públicos do país", acrescentou Hidalgo, referindo-se também ao pouco acesso que a maioria dos peruanos ainda tem à informação digital.
Peru, embora seu número de usuários de internet esteja aumentando, segue sendo um dos países latino-americanos com menos usuários do serviço, superando apenas a Bolívia. Pouco mais da metade da população nacional tem acesso à internet, tendo maior acesso nas cidades do que nas áreas rurais do país, informou El Comercio.
Até agora, de acordo com Hidalgo, estão planejadas seis edições desta série temática. A próxima é o Hampi Times (Tempos de Remédio), que será dedicado aos abusos da indústria farmacêutica transnacional contra os pacientes, e que incluirá os resultados das reportagens de sua plataforma The Big Pharma Project. Os próximos da lista tratarão sobre crime organizado, patrimônio cultural - que incluirá investigações de sua plataforma Memória Roubada -, etc. Cada um tem entre 8 e 12 páginas, e mil exemplares em sua versão impressa.
Como antecedente da série Times do projeto El Tercer Ojo publicaram o jornal Q'umir Times (Tempos Verdes) no início de dezembro de 2016. Esta edição abordou questões nacionais e internacionais na região latino-americana sobre meio ambiente.
Com o projeto editorial El Tercer Ojo também se busca fazer destes documentos algo mais permanente no tempo, que os leitores possam guardar e reler. Em breve, publicarão livros impressos de suas investigações, também como parte deste projeto.
De acordo com Hidalgo, "El Tercer Ojo é uma aposta em converter nossas investigações digitais em documentos físicos, que deem nova vida às histórias e permitam novas leituras por outros públicos. Trabalhamos com conteúdo de alta qualidade, de autores de prestígio, que nos ajudam a comunicar melhor os problemas complexos que abordamos".
Nota do editor: Essa história foi publicada originalmente no blog de jornalismo nas Américas do Centro Knight, o predecessor do LatAm Journalism Review.