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Um ano após ser criado, Observatório Nacional da Violência contra Jornalistas ‘tem longo caminho a percorrer’ para ser efetivo, dizem organizações

Trabalhadores da imprensa no Brasil viveram entre 2019 e 2022 sob ataques e ofensas partindo diretamente da Presidência, então ocupada por Jair Bolsonaro. A criação do Observatório Nacional da Violência contra Jornalistas, em janeiro de 2023, foi recebido como um sinal de que o novo governo, liderado por Luiz Inácio Lula da Silva, pretendia inaugurar uma nova fase na relação com jornalistas.

Um ano depois, organizações da sociedade civil que fazem parte do órgão saúdam a “boa vontade” do governo, mas consideram que falta de pessoal e insuficiente priorização do tema são obstáculos para que o Observatório seja efetivo.

A transição em curso no Ministério da Justiça e Segurança Pública, onde o Observatório está abrigado, também é um ponto de atenção para as organizações. Flávio Dino, ministro da Justiça que criou o Observatório, foi indicado para o Supremo Tribunal Federal (STF) por Lula, e em seu lugar na pasta entra o ex-ministro do STF Ricardo Lewandowski, que assume no dia 1o de fevereiro.

LatAm Journalism Review (LJR) conversou com representantes da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), Federação Nacional de Jornalistas (Fenaj) e Repórteres Sem Fronteiras (RSF). As três organizações fazem parte do conselho do Observatório, formado por 33 entidades da sociedade civil e do Estado e que foram nomeadas em dezembro. Abraji, Fenaj e RSF também participam da construção do órgão desde que ele foi anunciado por Dino, em 17 de janeiro do ano passado.

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Lázara Carvalho, secretária executiva do Observatório, ao lado de Augusto Botelho, secretário nacional de Justiça. (Foto:Isaac Amorim/MJSP)

“Nossa avaliação do primeiro ano [do Observatório] é de que ainda tem um longo caminho a percorrer para que efetivamente tenha a funcionalidade que as organizações demandam de um projeto dessa natureza, albergado dentro do Estado brasileiro”, disse Samira de Castro, presidenta da Fenaj, à LJR.

Ela destacou que a expectativa das organizações é de que o Observatório “avançasse muito mais no ponto de vista de ter diagnósticos, para que pudesse orientar a atuação pública e gerar políticas públicas capazes de mitigar o risco e a violência contra jornalistas no exercício da profissão”. Até o momento, segundo ela, isso ainda não foi alcançado.

Bia Barbosa, coordenadora de incidência da RSF, disse à LJR que “os tempos do poder público são diferentes” dos tempos da sociedade civil. Ela considera que houve avanços importantes nesse primeiro ano, entre os quais o próprio estabelecimento desse espaço de interlocução entre as organizações e o governo.

“É natural que no primeiro ano a gente fique muito em reuniões e primeiros contatos. As pessoas do Estado brasileiro estão se apropriando desse tema. O [secretário nacional de Justiça, Augusto] Botelho falou várias vezes: 'estou aprendendo a cada dia com vocês aqui'. Que bom que ele tem essa abertura para aprender e ouvir as organizações, mas acho que o tempo de aprendizado foi esse. Agora, precisamos ir para um tempo de estruturação da política mesmo”, disse Barbosa.

Augusto Botelho, secretário nacional de Justiça e autoridade responsável pelo Observatório dentro do Ministério, é um dos membros da atual equipe que Lewandowski pretende trocar, reportou a Folha de S.Paulo. A LJR entrou em contato com a assessoria de Lewandowski para perguntar quais são os planos do novo ministro para o Observatório, mas não obteve resposta.

“Boa parte do nosso trabalho agora nesse começo de ano vai ser pressionar para que o Observatório não esmoreça com a saída do Dino”, disse Kátia Brembatti, presidenta da Abraji, à LJR. “E para que o segundo ano seja mais efetivo do que o primeiro, que foi de construção, mas agora precisamos de coisas mais práticas.”

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Samira de Castro, presidenta da Fenaj, durante reunião do Observatório em 31 de outubro de 2023. (Foto: Isaac Amorim/MJSP)

A secretária-executiva do Observatório, Lazara Cristina do Nascimento de Carvalho, destacou que o órgão, estabelecido por portaria publicada no Diário Oficial em 16 de fevereiro de 2023, faz parte da estrutura do Ministério da Justiça.

“Seja qual for o ministro ou o secretário [nacional de Justiça] que vier, ele vai ter que manter essa estrutura do Observatório, que nós pensamos com as entidades e o conselho do Observatório”, disse ela à LJR.

Segundo Carvalho, a construção conjunta do órgão entre o governo e as organizações que fazem parte do conselho é uma maneira de “cercar o Observatório de um acompanhamento e uma construção que seja feita de fora para dentro”.

“Para que seja uma política permanente e para que, independentemente de quem seja o ministro, ele entenda a importância disso e entenda que só precisa fazer a manutenção e o aprimoramento da estrutura existente”, afirmou.

Canal de denúncias

O Observatório Nacional da Violência contra Jornalistas e Comunicadores Sociais foi criado na esteira dos atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023, quando apoiadores de Bolsonaro invadiram e depredaram o Palácio do Planalto, o Congresso e o Supremo Tribunal Federal e agrediram pelo menos 12 jornalistas. A virulência das agressões aos profissionais moveu o recém-empossado governo a se reunir com representantes de organizações de defesa dos jornalistas no dia seguinte aos ataques.

Nas conversas que continuaram na semana seguinte, as organizações apresentaram demandas para coibir a violência contra jornalistas, inclusive a criação do Observatório. Dino, então, anunciou no Twitter a criação do órgão no dia 17 de janeiro. A partir daí, iniciou-se a construção do Observatório, dentro da Secretaria Nacional de Justiça, em conjunto com organizações da sociedade civil, entre elas Fenaj, Abraji e RSF.

As competências do Observatório, segundo a portaria que o estabeleceu, são “monitorar casos relacionados a condutas violentas contra jornalistas e comunicadores sociais”, “apoiar às investigações” de tais casos, “criar e manter banco de dados com indicadores sobre atos de violência” contra esses profissionais, e “sugerir a adoção de políticas públicas voltadas à garantia do pleno gozo das funções dos jornalistas e comunicadores sociais, em articulação com as demais áreas competentes”.

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Katia Brembatti, presidente da Abraji. (Arquivo pessoal)

Nesse primeiro ano, representantes das organizações da sociedade civil e de órgãos estatais e do governo se reuniram a cada dois meses para estruturar e encaminhar as ações do Observatório. Nessas reuniões se estabeleceram cinco grupos de trabalho, com os temas Raça e Diversidade, Violência de Gênero, Assédio Judicial, Ataques Digitais e Protocolo de Proteção, e Caminhos Processuais e Protocolos Legais. Segundo um comunicado do governo, os grupos de trabalho são “responsáveis pela unificação de dados e indicação de caminhos para superar problemas relacionados a ataques a esses profissionais no âmbito nacional”.

“O Estado brasileiro pela primeira vez ter olhado oficialmente para o problema da violência contra jornalistas e comunicadores foi positivo, sobretudo porque viemos na esteira do 8 de janeiro do ano passado. Foi uma reação importante”, disse Castro. “Apesar disso, por exemplo, não temos nenhum levantamento que indique se os agressores dos jornalistas em 8 de janeiro [de 2023] foram responsabilizados e como ficaram essas investigações.”

Outro exemplo de morosidade no trabalho do Observatório, segundo ela, é o canal de denúncias, aberto para que jornalistas possam reportar diretamente ao órgão os ataques de que são alvo no exercício da profissão. “O próprio canal de denúncias, que era uma das primeiras coisas a serem criadas, só foi lançado no fim de outubro”, disse Castro.

Carvalho considera que a criação do canal é a ação mais importante do Observatório em seu primeiro ano. Segundo ela, o canal foi desenvolvido com a ajuda das entidades de jornalismo e “demorou um pouco” para ir ao ar por conta do cuidado na elaboração do protocolo de tratamento das denúncias.

“Tínhamos que pensar exatamente no caminho que a denúncia vai percorrer e como nós no Observatório conseguiríamos acompanhar isso, para [a denúncia] não se perder (...). Às vezes, numa delegacia, [fazer uma denúncia] é tão burocrático e difícil que o jornalista ou comunicador acaba deixando para lá. Por isso demorou um pouco mais para implementar [o canal], porque queríamos ter uma base que realmente funcionasse”, disse ela.

As organizações consultadas pela LJR disseram não ter conhecimento até o momento de qual é esse protocolo de tratamento das denúncias. Carvalho disse que as denúncias são encaminhadas a “órgãos competentes da Segurança Pública” e que o Ministério da Justiça acompanha os casos “do começo ao fim”.

Tanto Carvalho quanto as organizações disseram que o protocolo seria validado junto ao conselho do Observatório na próxima reunião do órgão, que até o fechamento dessa reportagem ainda não tinha data para acontecer.

Segundo a assessoria do Ministério da Justiça, entre o dia 31 de outubro de 2023, quando o canal de denúncias foi ao ar, e o dia 22 de janeiro de 2024, o Observatório recebeu por esse meio 158 denúncias, das quais 30 eram “denúncias-teste”. As 128 denúncias restantes se dividiram entre as modalidades “violência de gênero contra mulheres jornalistas” (72), “perseguição” (23), “assédio judicial” (12), “violência física” (10), “ameaça” (8), “homofobia” (3).

Falta de pessoal

Barbosa, da RSF, afirmou que um “problema enorme” do Observatório é a falta de pessoal dedicado ao órgão. Carvalho, que também é chefe de gabinete do secretário nacional de Justiça, foi a única pessoa do Ministério dedicada ao Observatório nos primeiros seis meses, segundo Barbosa. Depois disso, a pasta teria alocado uma pessoa para auxiliar a secretária executiva no órgão. A LJR questionou o Ministério sobre quantas pessoas trabalham no Observatório, mas não obteve resposta até o fechamento dessa reportagem.

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Bia Barbosa, da Repórteres Sem Fronteiras (RSF). (Arquivo pessoal)

“Acho que existe um comprometimento institucional muito grande do Ministério da Justiça com o Observatório. Mas eles têm 20 incêndios por dia para apagar, e aí apagam o incêndio que vem primeiro. Nesse sentido, ainda temos dificuldade de conseguir fazer as coisas andarem ali dentro, porque as pessoas estão tendo que se desdobrar em vários outros temas pelo fato de não ter uma equipe dedicada [ao Observatório]”, disse Barbosa.

“Um desafio claro” para o Observatório em 2024, segundo ela, é a estruturação de um corpo técnico que dê conta não apenas de processar as denúncias de violência contra jornalistas, mas também de fazer o órgão ser mais conhecido entre os profissionais.

“Tem um desafio grande aí que é para que [o Observatório] tenha um corpo estrutural, uma equipe, para funcionar e para que essas denúncias que chegarem tenham um tratamento e gerem uma credibilidade da política [pública]. Se os jornalistas não confiarem na política, eles não vão procurá-la. Eles vão continuar fazendo como sempre fizeram, que é criar sua própria rede de proteção e se virar, e não buscar o Estado para ajudar”, disse Barbosa.

As organizações também cobram a realização de uma campanha de conscientização sobre a importância do trabalho jornalístico junto à sociedade e também a agentes de segurança.

“Nós não somos inimigos e isso precisa ficar muito claro para a população”, disse Brembatti, da Abraji. “Isso só vai ficar claro se você agir nos principais agressores, que são os agentes de segurança nos Estados e as turbas que veem a imprensa como inimiga. Então você precisa de políticas públicas e campanhas [de conscientização] adequadas, com a linguagem adequada, e você precisa acabar com a impunidade [nos ataques contra jornalistas]”, afirmou.

Conferências regionais

Carvalho disse à LJR que o Observatório é “uma iniciativa ainda muito recente” e destacou que o órgão “tem sido construído em conjunto com as pessoas que trabalham no campo para entender qual é a necessidade dos próprios jornalistas e comunicadores”.

“A conclusão a que chegamos [no Ministério da Justiça] é de que não adiantava construir nada que fosse vertical. Decidimos construir de maneira horizontal, o que é trabalhoso, leva um pouco mais de tempo, mas também nos dá a consciência de que é algo sólido e que está sendo acompanhado de perto pelas entidades que trabalham a liberdade de imprensa e a proteção de jornalistas e comunicadores. Elas conseguem ser essa régua, e se estamos saindo do prumo, ou [temos] alguma ideia que não vai atingir a finalidade, [as organizações] conseguem nos dar esse feedback e dizer ‘olha, não é esse o caminho’”, disse a secretária executiva.

Para ela, um dos pontos mais urgentes de melhora é a comunicação com jornalistas e comunicadores “para fora do Observatório”.

“Acho que esse é o ponto chave: que as pessoas entendam o que é [o Observatório], para que serve, como funciona, e tenham confiança em nos procurar. Muitos jornalistas e comunicadores são perseguidos e sofrem violência por parte de autoridades. Então é muito difícil dizer para as pessoas confiarem e virem de coração aberto para uma estrutura criada dentro do Poder Executivo ou de qualquer outro Poder. Sabemos que há uma dificuldade de confiar, e é completamente compreensível”, afirmou Carvalho.

Uma das iniciativas programadas nesse sentido é a realização de conferências regionais, reunindo representantes do governo e das organizações presentes no Observatório e jornalistas e comunicadores nas cinco regiões do país. A ideia é conversar com esses profissionais no território em que atuam, para entender quais são os problemas que eles enfrentam, divulgar as ações do Observatório e elaborar políticas direcionadas para garantir o exercício do jornalismo nessas áreas. A meta, segundo Carvalho, é realizar essas cinco conferências em 2024.

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