*Este artigo foi atualizado.
“Nesse momento de calmaria, ainda na parte do lado do Masp [Museu de Arte Moderna de São Paulo], a gente estava num grupo de colegas, comentei, 'olha, acalmou, parece que parou' [a repressão policial aos manifestantes]. Fui eu falar isso, caiu uma bomba de gás lacrimogêneo do nosso lado. Puxei um colega e [a polícia] começou a atirar de novo. Falei 'começou de novo' e levei a pancada.”
A cena ocorreu há 21 anos, no dia 18 de maio de 2000, e mudou para sempre a vida do fotógrafo brasileiro Alexandro Wagner Oliveira da Silveira, Atingido por uma bala de borracha disparada pela polícia, ficou cego do olho esquerdo.
Na época, ele tinha 29 anos e trabalhava para o Agora S.Paulo, jornal do Grupo Folha. Ele cobria uma manifestação de professores e profissionais da saúde na Avenida Paulista, no coração de São Paulo, a maior cidade do Brasil. Na semana passada, o Supremo Tribunal Federal (STF), a corte constitucional e última instância judicial do país, reconheceu que ele tem direito a uma indenização do Estado.
“Eu não tenho nada para comemorar. Nem no meu lado pessoal da história, pelo ressarcimento dos danos, nem ao que isso vai contribuir para o fortalecimento da democracia, da segurança dos colegas e da liberdade de imprensa. Até então, nada foi ganho, nada está seguro,” disse Silveira à LatAm Journalism Review (LJR) depois da decisão do STF.
O ceticismo de Silveira se justifica pelos 21 anos de uma custosa, árdua e desgastante batalha judicial. Na primeira decisão do caso, em 2007, a Justiça reconheceu o seu direito à indenização, mas em 2014 tudo mudou: no julgamento do recurso, a indenização foi negada com a alegação de que o próprio jornalista foi responsável por seu ferimento por ter se mantido no local do conflito.
Foram necessários mais sete anos para a reversão no STF, que, no entanto, não estipulou prazo nem valores para o pagamento da indenização a que tem direito. O receio de Silveira é que seja necessária uma nova batalha sobre o valor de uma indenização justa. Na primeira instância judicial, este valor havia sido fixado em 100 salários-mínimos, equivalente hoje a BRL 110 mil (ou USD 21.803).
“Ninguém vai ser preso, demitido, ficar anos na prisão, ninguém vai me pedir desculpas. A única coisa que pode fazer alguma diferença é a reparação financeira. (...) Não acredito que vai ter melhora alguma, para mim ou para a estabilidade de segurança da profissão, se a multa for só simbólica. Para que surta efeito, só se o valor for significativo e justo,” disse Silveira.
Aos 50 anos, ele nunca abandonou a fotografia, embora tenha deixado o jornalismo. Atualmente, ele estuda oceanologia e atua como fotógrafo freelancer e designer 3D.
“Nunca mais fui contratado na minha vida como carteira assinada. Só trabalhei como freelancer. [Apareceu] uma proposta de emprego, mandei meu portfolio, me chamaram e souberam da minha situação e me dispensam. Isso aconteceu inúmeras vezes,” disse Silveira.
Quem acompanha o desenrolar do caso de perto é o também fotógrafo Sérgio Andrade da Silva. Em 13 de junho de 2013, ele cobria uma das muitas manifestações da série de protestos que varreu o Brasil naquele mês. Atingido por uma bala de borracha, também perdeu a visão de um dos olhos.
“Teve uma grande transformação na minha vida pessoal e profissional. Na época, como eu trabalhava como freelancer, a fotografia era a minha única renda. Minha carreira no jornalismo foi interrompida pela violência. Eu saí da rua, da movimentação, da reportagem,” disse Silva à LJR.
Na época em que perdeu a visão, Silva trabalhava para a agência Futura Press e atuava há cinco anos como fotojornalista profissional. Hoje, ele trabalha com produção de vídeos, com “câmera parada, num tripé” e retomou a fotografia com trabalhos autorais.
“Eu trabalhava numa agência pequena se comparada com outros veículos. Eu estava buscando o meu espaço, buscando caminhos. Meu grande objetivo, e ainda é, conseguir um espaço num grande veículo de comunicação no qual eu pudesse contribuir [com o fotojornalismo],” disse Silva.
Seu processo contra o Estado caminha em paralelo ao de Silveira. Em primeira instância, a Justiça entendeu que a responsabilidade pelo ferimento era dele por ter se exposto ao risco durante a cobertura. Como a decisão do STF no outro caso tem caráter vinculante, Silva acredita que poderá reverter a sentença.
“O STF dizer por 10 a 1 que o Estado é responsável por uma ação provocada por agentes de segurança pública é o óbvio. Mas a decisão não é final afirmando que o Estado nos deve atender ao nosso pedido de indenização. E aí a gente está falando sim de uma indenização razoável para que no mínimo nos dê suporte para ter reparo em relação ao dano material que nos foi provocado,” disse Silva.
Jornalistas feridos no olho na América Latina
Os casos dos dois fotógrafos brasileiros não são únicos nem no Brasil, nem na América Latina. Organizações de defesa da liberdade de imprensa colecionam casos de jornalistas feridos durante protestos, alguns dos quais com sequelas graves para o resto da vida.
O peruano Rudy Huallpa Cayo tinha 24 anos quando saiu à rua em 1º de abril de 2014 para cobrir uma manifestação que pedia a conclusão das obras de um hospital ao governo regional de Melgar. Ferido no olho por uma bala de borracha disparada pela polícia, nunca mais foi capaz de enxergar.
“Eu estava quase à frente dos manifestantes. [Um policial] pega uma arma, eu vejo, e ele atira. O tiro, a uma distância de 12 metros, cai no meu olho esquerdo,” relembrou Huallpa Cayo à LJR. “A visão, eu não podia mais enxergar. Achei que fosse uma consequência [temporária] do golpe. Mas os médicos mais tarde me disseram que seria irreversível.”
O jornalista segue na profissão, trabalhando no Diario Sin Fronteras, em Puno, mas com poucas esperanças em receber uma indenização Estado. Segundo ele, o Ministério Público, que deveria investigar o caso, pediu o seu arquivamento por suposta falta de provas para responsabilizar a polícia.
“Havia fotos, depoimentos, vídeos de outros colegas jornalistas, do momento que eles atiraram, do momento que eu caí. No entanto, o Ministério Público nos pede uma perícia balística, [mas] não consegui um perito [independente]. Quando digo que estou processando a polícia, eles desistem. Eles não queriam realizar a perícia balística ”, lamentou o jornalista. “O trauma permanece. Não sou mais uma pessoa normal. Tornei-me uma pessoa com deficiência."
No dia 5 de janeiro de 2017, o também peruano Marco Antonio Ramón Huaroto chegou atrasado a um protesto de moradores de Puente Piedra, em Lima, contra a instalação de uma cabine de pedágio. Na época, ele era estagiário do Diário Peru 21, do grupo El Comercio. Assim que soube que já havia ocorrido um choque entre manifestantes e a polícia, tratou de procurar feridos. Foi quando recomeçou o enfrentamento e a repressão da polícia ao protesto popular.
“Passaram 40 minutos, 45 minutos desde que eu estava deste lado [dos manifestantes] e em algum ponto, daquele tanque onde já me apontaram várias vezes, dispararam uma rajada direto no corpo e me acertaram como cinco vezes, na cabeça, nas mãos, na câmera também. E uma daquelas bolinhas entrou no meu olho esquerdo, e daquele momento em diante, já perdi. Já não me lembro muito bem. Eu só sei que caí para trás e que comecei a ver tudo escuro,” disse Huaroto à LJR. No caso dele, em vez de bala de borracha, a polícia usava munição que dispara pequenas bolinhas de chumbo.
Como estagiário, o jornalista não tinha seguro de saúde e sua família pagou do próprio bolso pelo custo de seu tratamento e das quatro cirurgias que se seguiram. Hoje, cinco anos depois, tem apenas 30% da visão do olho ferido, desenvolveu glaucoma e foi diagnosticado com estresse pós-traumático. Mesmo assim, não obteve qualquer reparação e ainda acumula dívidas médicas.
“Para um fotógrafo, perder a visão é o pior pesadelo, porque é minha ferramenta de trabalho, minha missão. (...) não podia mais continuar com uma carreira que estava começando a construir e que sentia que tinha muitas possibilidades porque estava indo bem, porque estava começando a participar de exposições, estava começando a participar de festivais e isso terminou abruptamente,” disse Huaroto.
Um ano depois do incidente, o fotógrafo regressou ao grupo El Comércio, mas acabou demitido em 2020, e vem atuando como freelancer. Junto com outros colegas, criou o coletivo Fotografxs AutoConvocadxs-FAC com o objetivo de servir como uma organização de proteção para fotojornalistas independentes, mas também denunciar a violência policial e realizar atividades artísticas.
“Sobre a notícias do Brasil, me parece algo positivo”, disse Huaroto, “porque, só o fato de ela ter feito você me fazer essas perguntas, e me permitir dar meu testemunho novamente depois de tanto tempo, já me dá como uma esperança de que meu caso não ficará totalmente impune."
*Este artigo foi atualizado para esclarecer que Marco Antonio Ramón Huaroto foi atigindo por chumbinho, e não balas de borracha.