Informações precisas e de alta qualidade fornecidas ao público por meio do jornalismo profissional têm influência positiva sobre a democracia, o engajamento cívico, a responsabilidade do governo e o combate à corrupção, de acordo com um relatório recente da Unesco.
O relatório “Journalism for development: the role of journalism promoting democracy and political accountability and sustainable development” (“Jornalismo para o desenvolvimento: o papel do jornalismo na promoção da democracia, da prestação de contas e do desenvolvimento sustentável”) também argumenta que o investimento público em jornalismo melhora a confiança social e tem efeitos importantes sobre a proteção e a promoção dos direitos humanos, bem como sobre o desenvolvimento sustentável.
O relatório, elaborado pelos pesquisadores Joseph E. Stiglitz, Anya Schiffrin e Dylan W. Groves, analisou e compilou as pesquisas mais recentes e as ferramentas metodológicas rigorosas aplicadas por cientistas sociais nos últimos anos, que confirmam os benefícios do jornalismo, especialmente no Sul Global.
“Sabemos que o jornalismo é importante para a democracia, para a prestação de contas, para a sociedade e que é um bem público, e sinto que os jornalistas vêm dizendo isso há anos”, disse Anya Schiffrin, uma das autoras do relatório, à LatAm Journalism Review (LJR).
“Mas o objetivo deste relatório é levar as ideias a públicos diferentes, a um público de formuladores de políticas e governos. E sabemos mais agora, obviamente no mundo do jornalismo pensamos há anos que o jornalismo é importante, mas agora existem todos esses estudos rigorosos que nos explicam como isso funciona", acrescentou Schiffrin, diretora da especialização em tecnologia e mídia da Escola de Assuntos Internacionais e Públicos da Universidade de Coumbia, nos Estados Unidos.
Esses efeitos positivos do jornalismo de qualidade sobre a democracia, a prestação de contas e o combate à corrupção são particularmente relevantes no contexto atual de ataques contínuos à liberdade de expressão e à liberdade de imprensa em todo o mundo e em regiões como a América Latina, concordaram os pesquisadores entrevistados. O relatório também destaca o valor das informações precisas e do jornalismo de qualidade diante dos efeitos nocivos da desinformação e da perda de confiança no jornalismo.
Guilherme Canela, chefe da seção da Unesco sobre Liberdade de Expressão e Segurança dos Jornalistas, explicou que o objetivo desse relatório e de outros que foram produzidos é neutralizar um movimento que começou há alguns anos por vários atores poderosos, sejam políticos, celebridades ou outros, para construir narrativas que buscam gerar uma profunda desconfiança no jornalismo como uma instituição fundamental para a consolidação democrática.
“Narrativas como ‘toda imprensa é corrupta’, ou toda ‘imprensa é fake news’, ou ‘toda imprensa está associada a elites poderosas’. Essas narrativas acabam tendo uma consequência comum, que é esse descrédito aos olhos da população como um todo, de que o jornalismo tem uma função fundamental na engrenagem da democracia", disse Canela.
E isso, acrescentou, consolida uma percepção equivocada de que a liberdade de expressão é um direito dos jornalistas, quando o que a sociedade deveria entender é que a liberdade de expressão é muito mais do que isso.
“É um direito individual de todos e, ao mesmo tempo, é um direito coletivo de nossa sociedade”, disse ele. “Quando há um ataque ao jornalismo, temos que encontrar maneiras de fazer com que a população como um todo entenda que esse ataque é, no fim das contas, um ataque à sociedade.”
Recentemente, como parte das comemorações do Dia Mundial da Liberdade de Imprensa no Chile, jornalistas ambientais denunciaram as ameaças e a censura que enfrentam por seu trabalho; e, de acordo com uma pesquisa da Unesco, mais de 70% dos jornalistas relataram que foram alvo de ataques, ameaças ou pressões enquanto cobriam questões ambientais.
Uma das conclusões do recente relatório é como o jornalismo enfrenta muitas dificuldades, incluindo leis que limitam a liberdade de expressão e o domínio da receita de publicidade pelo Google e pela Meta. Como o jornalismo de qualidade é um “bem público”, ele está sujeito a que todos queiram que alguém pague por ele, portanto, é improvável que seja fornecido em quantidade suficiente sem o apoio de governos e doadores.
Canela disse que esses relatórios procuram demonstrar com números muito claros que o jornalismo gera impactos muito mensuráveis sobre questões fundamentais da vida cotidiana, como o combate à corrupção, a proteção dos direitos humanos, entre outros.
“Se conseguirmos fazer com que as pessoas comuns entendam que onde não temos um jornalismo livre, independente e pluralista, as chances de termos mais corrupção, menos desenvolvimento e mais violações dos direitos humanos são altas. Se conseguirmos fazer com que as pessoas entendam essa correlação, haverá um esforço coletivo para proteger o jornalismo como uma instituição democrática", disse ele.
Para que o relatório seja melhor recebido por todos os públicos e tenha um impacto maior, ele é apresentado em um formato muito acessível, acrescentou Schiffrin, e especialistas de várias disciplinas se reuniram para produzi-lo.
“A ideia é que o governo, ou as pessoas da vida pública que estão muito ocupadas, possam aprender rapidamente sobre um tema específico. O formato é muito prático e inclui recomendações para diferentes partes interessadas", disse ela.
Schiffrin disse que eles esperam que o relatório seja muito útil para os jornalistas, para o setor de jornalismo em si e para as organizações de jornalismo que desejam provar que a informação de qualidade é muito importante.
“Qualquer pessoa que esteja tentando obter apoio do governo ou financiamento filantrópico agora tem algo em que pode se basear”, disse ela.
O relatório da Unesco apresenta o papel do jornalismo na promoção da democracia, da prestação de contas e do desenvolvimento sustentável como algo simples e claro, pois sem informações sobre o que os governos estão fazendo, como os cidadãos podem exigir prestação de contas?
“A informação sobre o que o governo está fazendo e o que deveria estar fazendo é o que os economistas chamam de ‘bem público’, algo do qual todos se beneficiam e ninguém pode ser excluído”, cita o relatório.
O jornalismo fornece esse 'bem público', tanto em seu papel de investigador, na descoberta de informações, quanto em seu papel na disseminação de informações. Em entidades políticas que funcionam bem, as informações sobre comportamento inadequado, corrupção ou outras formas de má conduta têm consequências, e o conhecimento de que esse comportamento será descoberto tem um efeito dissuasivo. O desafio é ter um suprimento suficiente desse bem público.
A esse respeito, o relatório cita a pesquisa de Amartya Sen, “The Food Problem: Theory and Policy” (“O problema dos alimentos: teoria e política pública”), que constatou que um dos motivos pelos quais a Índia não teve grandes fomes, como a da China após o Grande Salto Adiante, foi o fato de a imprensa ter funcionado como um sistema de alerta antecipado e uma fonte de pressão sobre o governo para atender às necessidades dos cidadãos.
Outros pesquisadores, como Tim Besley e Robin Burgess, analisaram a mídia local na Índia e descobriram que, em áreas onde havia mais jornais, a resposta do governo a desastres naturais era mais rápida e melhor do que em outros lugares onde havia menos jornais, de acordo com seu artigo “Political agency, government responsiveness and the role of the media” (“Agência política, capacidade de resposta do governo e o papel da mídia”).
O relatório da Unesco também cita como essas metodologias de pesquisa levantaram novas questões sobre por que e em que circunstâncias o jornalismo tem efeito. Uma das questões contemporâneas é se o jornalismo pode contribuir para a governança democrática em um contexto de crescente desinformação e declínio da confiança na mídia.
As pesquisas sugerem que o jornalismo de alta qualidade e a verificação de fatos podem combater com eficácia a desinformação, e é por isso que o relatório da Unesco se concentra no jornalismo de qualidade e no que pode ser feito para sustentá-lo, em vez de se concentrar nas redes sociais e em ambientes de baixa qualidade.
De acordo com o relatório, a área que tem recebido mais atenção dos pesquisadores na avaliação de desempenho é a responsabilidade eleitoral e a capacidade de resposta democrática. Os estudiosos têm abordado as seguintes questões: os cidadãos usam as reportagens da mídia para exigir a prestação de contas do governo? E essa ameaça de prestação de contas leva as autoridades a tomar medidas que atendam às necessidades dos cidadãos?
Um motivo pelo qual o trabalho dos meios de comunicação pode promover a prestação de contas é que os políticos sabem que serão removidos do cargo se não se comportarem.
“Matérias jornalísticas aumentam o conhecimento dos cidadãos e influenciam seu comportamento eleitoral”, diz o relatório. Portanto, alguns acadêmicos estudaram se os padrões de votação mudam quando novos meios de comunicação e jornais abrem ou fecham.
Outras pesquisas sugerem que, além de estimular o engajamento político, as publicações da mídia sobre corrupção e o desempenho dos candidatos podem ajudar eleitores a fazer escolhas mais bem informadas sobre seus candidatos preferidos.
A esse respeito, o relatório da Unesco cita o trabalho de Claudio Ferraz e Frederico Finan intitulado “Exposing Corrupt Politicians: The Effects of Brazil's Publicly Released Audits on Electoral Outcomes” (“Expondo políticos corruptos: os efeitos das auditorias públicas no Brasil sobre os resultados eleitorais”), que mostra como os políticos apontados como corruptos pela mídia têm menos probabilidade de serem reeleitos, um efeito acentuado em locais onde há maior cobertura de rádio.
A pesquisa realizada no México por Horacio Horacio Larreguy, John Marshall e James Snyder, por outro lado, baseia-se em variações plausivelmente aleatórias no alcance da mídia local para mostrar que a mídia local permite que os eleitores sancionem os candidatos em resposta a auditorias de corrupção.
Seu estudo, “Publicising Malfeasance: When the Local Media Structure Facilitates Electoral Accountability in Mexico” (“Divulgando a má conduta: Quando a estrutura da mídia local facilita a prestação de contas eleitoral no México”), constatou que cada novo meio de comunicação aumenta as sanções dos eleitores sobre prefeitos corruptos em cerca de 1 ponto percentual. Ele mostra que esses efeitos são mais pronunciados em áreas relativamente pobres em mídia, sugerindo que o efeito de novas estações de mídia sobre a responsabilidade eleitoral é mais forte em áreas com os níveis mais baixos de desenvolvimento midiático.
Em outro estudo, também no México e realizado com financiamento da Unesco, o pesquisador Eric Arias mostra que os programas midiáticos transmitidos para a comunidade como um todo são mais eficazes na formação de normas sociais do que as mensagens transmitidas individualmente.
Em relação à luta contra a corrupção, o relatório da Unesco cita o trabalho da cientista política Alina Mungiu-Pippidi, intitulado “Controlling Corruption Through Collective Action” (“Controlando a corrupção por meio da ação coletiva”), que afirma que a luta contra a corrupção é um problema de ação coletiva que a mídia pode ajudar a resolver. Ele ressalta que as eleições, e até mesmo alguma competição política, não garantem que uma sociedade seja realmente democrática.
De fato, nas últimas décadas, houve a eleição e reeleição de várias figuras autoritárias, algumas das quais defendem a ideia de “democracia iliberal”. O controle da corrupção no contexto do ressurgimento do iliberalismo exige uma resposta da sociedade civil.
“A sociedade civil pode ser vista como uma forma de ‘ação coletiva’ voluntária entre um grupo de cidadãos para promover suas perspectivas sobre o que deve ser feito na esfera pública”, cita o relatório.
O relatório da Unesco diz que há um conjunto de pesquisas importantes que mostram que a mídia pode desempenhar um papel vital nesse processo. Por exemplo, o trabalho “The role of the media in fighting corruption” (“O papel da mídia no combate à corrupção”). Essas descobertas são apoiadas por uma análise histórica de Matthew Gentzkow, Edward Glaser e Claudia Goldin, que documenta a contribuição do boom dos jornais no final do século 19 para a redução da corrupção pública nos Estados Unidos.
Embora jornalistas em algumas sociedades fechadas possam expor a corrupção, é importante que a imprensa esteja livre de controles externos. O relatório cita que um ambiente de mídia pluralista e diversificado ajuda os jornalistas a desempenharem suas funções de vigilância com eficácia e credibilidade para gerar restrições normativas à corrupção.
Nesse sentido, e levando em consideração os contextos de regimes autoritários e ataques à imprensa em ascensão em todo o mundo, e na América Latina em particular, o pesquisador Dylan Groves, professor assistente de governo e direito no Lafayette College e um dos autores do relatório da Unesco, disse que o jornalismo local é especialmente importante nesses contextos semiautoritários.
“É fácil para os governos nacionais proclamarem ‘notícias falsas’ sobre questões que os cidadãos não vivenciam diretamente. É muito mais difícil para eles desacreditarem o jornalismo sobre coisas que os cidadãos veem diretamente, como a falta de suprimentos médicos e estradas transitáveis", explicou ele em uma entrevista à LJR.
Parte da pesquisa de Groves está atualmente concentrada em saber se e como o jornalismo local de qualidade pode criar confiança na mídia em geral. Ele acrescentou que é vital lembrar às pessoas por que os governos semiautoritários estão tão determinados a tentar fechar os meios independentes.
“Eles sabem, mais do que ninguém, que a mídia independente está entre as maiores ameaças aos seus regimes”, disse ele.
Finalmente, o relatório enfatiza especialmente como a liberdade de imprensa é necessária para que a mídia reduza a corrupção, citando o estudo de Rudiger Ahrend “Press Freedom, Human Capital and Corruption” (“Liberdade de imprensa, capital humano e corrupção”), que examina a correlação entre liberdade de imprensa e corrupção. Depois de ajustar os níveis de educação, os níveis de renda e a abertura comercial, Ahrend encontrou uma forte correlação entre a liberdade de imprensa e níveis mais baixos de corrupção.
“Encontramos fortes evidências de que mais liberdade de imprensa leva a menos corrupção, portanto, aumentar a liberdade de imprensa é um importante mecanismo indireto de combate à corrupção”, afirmou Ahrend.
Perguntado sobre o que mais e como o jornalismo pode ajudar a sociedade civil em geral a colaborar na defesa da liberdade de expressão e da liberdade de imprensa e na manutenção de um jornalismo de qualidade, Canela disse que, por várias razões, o jornalismo em diferentes partes do mundo não percebeu que a investigação jornalística sobre os efeitos da falta de liberdade de expressão nas sociedades é uma questão que deveria ser central para o próprio jornalismo.
“Não basta dizer que a liberdade de expressão é um direito. É essencial demonstrar às pessoas os impactos da diminuição desse direito, e ainda acredito que o jornalismo, por várias razões, não está conseguindo fazer isso, e tenho a sensação de que poderia ajudar muito. Por exemplo, a cobertura da mídia sobre crimes contra jornalistas, em muitos lugares, é muito inexistente ou de baixa qualidade", explicou.
Dylan Groves reiterou que um dos objetivos desse relatório da Unesco é ter informações precisas para responder aos não-jornalistas, que às vezes têm uma visão mais cética do impacto do jornalismo.
“Sempre quero dizer aos jornalistas: sei que vocês estão convencidos do impacto do seu trabalho, mas precisamos desenvolver evidências que convençam os não-jornalistas! Minha impressão é que os jornalistas nem sempre falam a linguagem do impacto mensurável que os doadores querem ouvir", enfatizou Groves.