Depois de 10 anos de um processo judicial, a concentração do mercado de imprensa sofreu um golpe no Peru. Um juiz de um tribunal de Lima decidiu no dia 19 de julho que a compra em 2013 pelo Grupo El Comércio, o maior conglomerado jornalístico da imprensa escrita do país, do grupo Epensa, então o segundo maior, cria um monopólio que ameaça o direito constitucional à liberdade de expressão e opinião e determinou a anulação da operação.
Em seu cerne, a sentença afirma que “a propriedade nos mercados de mídia está condicionada aos objetivos da liberdade de expressão: maior pluralidade de agentes e menor concentração do poder de mercado. Para serem compatíveis com o direito à livre circulação de notícias e pensamentos, os meios de comunicação e suas empresas proprietárias devem se adequar às exigências dessa liberdade e, portanto, os donos dos meios não poderão exercer de maneira ilimitada seus atributos de proprietário, como se estivessem em qualquer outro setor econômico”.
Embora o Grupo El Comércio já tenha entrado com um recurso e o caso ainda vá ser julgado por instâncias superiores, a sentença é considerada histórica por advogados peruanos que trabalham com temas de direitos humanos e liberdade de expressão. A decisão – que se baseia em uma decisão anterior sobre o caso do mesmo juiz, Juan Macedo, de 2021, posteriormente anulada por razões processuais – se baseia em uma ampla revisão do direito constitucional peruano, de normas internacionais sobre liberdade de expressão e em literatura acadêmica sobre concentração de meios e pluralidade de imprensa.
Nem tudo, no entanto, é motivo de comemoração para aqueles que abriram a causa – oito cidadãos, entre jornalistas, editores e empresários da comunicação. Três deles são ligados ao jornal La República, que desde a compra se tornou o segundo maior do país.
O prazo de 10 anos para a emissão da sentença é considerado muito alto, e dois demandantes morreram nesse período. Os pleiteantes protestaram em 2021 contra a demora na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que acolheu sua demanda no final do ano passado. Além disso, várias operações econômicas adicionais ocorreram nesse ínterim que tornam improvável um retorno ao estado anterior de coisas.
Como primeiro noticiou o veículo Hildebrandt en sus trece, alegando ter havido demora excessiva para o julgamento, a Junta Nacional de Justiça (JNJ) peruana demitiu o juiz Macedo. A notificação formal da decisão, tomada em 11 de abril, ocorreu no dia 21 de julho, dois dias após a sentença contra o El Comércio. A medida radical contra um magistrado que integrava o Poder Judiciário peruano desde 2002, conhecido por decisões difíceis, levou pessoas que acompanham o caso a suspeitarem de retaliação.
Por ter condenado El Comércio, mas também demorado a emitir a sentença, o juiz Macedo acabou por se indispor tanto com o El Comércio quanto com os demandantes do La República, disse Eloy Marchán, o jornalista do Hildebrandt en sus trece que foi o único jornalista peruano a noticiar a demissão.
"Não encontro outra explicação. É uma represália”, disse Marchán à LatAm Journalism Review (LJR). “O que não tenho claro é se a decisão da Junta Nacional de Justiça busca agradar o El Comercio ou o La República, ou talvez, estrategicamente, ambos".
Fundado em 1839, o grupo editorial El Comercio detinha 49% das vendas comerciais de diários no Peru quando, em agosto de 2013, adquiriu por US $ 17 milhões a maior parte das ações da Empresa Periodística Nacional (Epensa). Na época, a empresa era detentora de 29% das vendas de jornais no país, contra 17% do La República. Com a transação, o El Comércio passou, portanto, a deter 78% do mercado jornalístico peruano.
Antes da venda ser confirmada, o La República tentou sem sucesso comprar o Epensa. Como a LJR noticiou na época, diversos atores afirmaram que a aquisição pelo El Comércio prejudicava a pluralidade de informações.
Segundo o La República disse à LJR então, a aquisição levaria a "uma altíssima concentração na venda e comercialização de jornais, o que contraria a ordem constitucional e afeta seriamente o mercado de mídia impressa do país".
Em vista disso, em novembro de 2013, oito jornalistas e empresário de mídia peruanos entraram com um pedido de anulação da compra.
No documento, diziam que "o juiz deverá ter em mente ao longo do processo que este é um debate entre a pluralidade e a diversidade contra a concentração e o acúmulo. Em outras palavras, entre a democracia e o totalitarismo informativo".
A ação na Justiça foi uma demanda de amparo, o principal mecanismo de proteção dos direitos constitucionais dos peruanos. A doutrina jurídica peruana entende que, por se tratar de casos de urgência, a proteção que oferece deve ser concedida de forma rápida, simples e eficaz, sem exigir uma intensa atividade probatória.
O caso, no entanto, caiu nas mãos do juiz Macedo, do Quarto Tribunal Constitucional de Lima, conhecido por suas sentenças minuciosas e destemidas frente a interesses poderosos, que chegaram a lhe custar ameaças de morte.
A primeira sentença de Macedo sobre o El Comércio, de teor parecido à atual, veio em julho de 2021. Ela acabou cancelada em outubro do mesmo ano por uma questão processual não relacionada ao mérito da sentença – não tinha sido nomeado um sucessor processual para um dos demandantes morto em 2019.
A nova sentença, que atualiza a decisão anterior e faz extensa revisão bibliográfica da jurisprudência sobre o tema, parte do entendimento de que, nas palavras do juiz segundo sua interpretação da Constituição peruana, “a liberdade de expressão constitui parte da ordem pública da democracia e a base para a formação da opinião política dos cidadãos, o que exige um maior pluralismo nos meios de comunicação social e uma maior circulação de ideias e informações”.
Em vistas disso, diz a sentença, “monopólios e oligopólios na propriedade dos meios de comunicação social [constituem] um exemplo de violação indireta da liberdade de expressão cometida por empresas privadas”.
O magistrado Macedo cita um estudo acadêmico de Alan Albarran que determina que”mercados são altamente concentrados se as quatro principais empresas conseguem controlar mais de 50% da audiência”, e observa que “a liderança e o domínio Grupo El Comercio (...) ultrapassa todos os limites de concentração no mercados de outros países latino-americanos”.
Sobre a região, a decisão afirma que “na América Latina, as populações apresentam uma grande diversidade de características sociais, econômicas, étnicas, linguísticas, entre outras. Portanto, a necessidade de receberem informações plurais exige como imprescindível a presença de posturas diversas e até divergentes. Além disso, mesmo que exista uma grande quantidade de meios de comunicação, o requisito implícito é evidente: é inaceitável que existam poucos meios ou que estes se concentrem em poucas mãos (oligopólio)”.
A sentença dá muita atenção ao parágrafo 2º do artigo 61 da Constituição peruana, que dispõe: “As empresas, a rádio, a televisão e os mais recentes meios de expressão e comunicação social; e, em geral, os negócios, os bens e os serviços conexos com a liberdade de expressão e comunicação, não podem ser objeto de exclusividade, monopólio ou aquisição, direta ou indireta, por parte do Estado ou de particulares”.
Embora haja legislações estipulando o que constitui monopólio na rádio e na TV, o mesmo não ocorre com a imprensa escrita. A este respeito, o juiz critica o Estado peruano por não ter criado legislações a respeito, o que, a seu ver, viola uma obrigação assumida na Constituição e em tratados internacionais: “O Estado Peruano NÃO CUMPRIU sua obrigação internacional de garantir a liberdade de expressão. OMISSÃO legislativa e constitucional”, escreveu Macedo.
Devido a esses e outros argumentos, numa decisão de 201 páginas, o juiz declarou nulo o contrato de compra e venda.
O grupo El Comércio não se manifestou sobre a decisão, e não respondeu a pedidos de posicionamento por parte da LJR.
Quando houve a sentença de 2021, o grupo afirmou em comunicado que “estabelecer limites aos meios de comunicação com base no seu público leitor (isto é, na preferência dos utilizadores da informação) constitui um ataque grave à imprensa e ao direito de escolha dos cidadãos”. O grupo já entrou com um recurso contra a sentença, que pode ser julgada em segunda instância e, possivelmente, também na Corte Suprema peruana.
A decisão foi comemorada pelos demandantes. “Vencemos! A ação de amparo movida há quase 10 anos, por posse de meios de comunicação em violação ao artigo 61 da Constituição, obtém sua segunda vitória na mesma instância”, disse a jornalista Rosa María Palacios, uma das reclamantes, no X, o antigo Twitter.
César Bazán Seminario, advogado da área de Litígio Constitucional e Povos Indígenas do Instituto de Defensa Legal (IDL), uma das principais ONGs de direitos humanos peruanas, também teve avaliação positiva. O IDL participou do processo como curador processual de um dos requerentes falecidos.
“É uma decisão positiva, que ratifica a decisão tomada alguns anos atrás, há uma concentração de meios e há a necessidade de neutralidade. É uma decisão bastante fundamentada para proteger direitos fundamentais. A decisão oferece a oportunidade para os peruanos exercerem melhor suas liberdades informativas para que haja pluralidade", disse Bazán à LJR.
Palácios – que várias vezes escreveu sobre a demora no caso – no entanto, criticou o prazo para a sentença.
“Se você não toma uma decisão, então favorece uma das partes. Primeiro demorou sete anos, e depois três anos. Nesse período, aconteceram muitas coisas, que tornam improvável um retorno ao estado anterior de coisas”, disse Palácios à LJR. “"Dos oito requerentes, dois estão mortos. Dos seis restantes, dois já se aposentaram. Sobram quatro. Eu sou a mais jovem e tenho 60 anos. Quantos anos mais vamos esperar?"
As “muitas coisas” que aconteceram no Peru desde então incluem, por exemplo, o fim do Ajá e do El Bocón, dois jornais que o El Comercio comprou junto ao grupo Epensa. Em janeiro, o El Comércio vendeu o Peru21, outro jornal, transações que tornam mais difícil reverter a compra do Epensa.
Após obter uma decisão da CIDH a respeito, Palacios espera que a Corte Interamericana de Direitos Humanos avalie o caso. “Queremos uma sentença que crie um ‘leading case’ para toda a América Latina”, disse Palacios.
A LJR escutou Juan Macedo para conhecer sua versão dos fatos. O juiz agora demitido afirmou que, desde que assumiu a magistratura em 2002, teve uma compreensão do ofício diferente da maioria de seus pares peruanos, por entender que “um juiz não deve delegar o seu trabalho a secretários ou assistentes. O princípio constitucional estipula que os cidadãos necessitam de um juiz que não só assine as sentenças, mas também as escreva de mão própria”.
Isso fez com que várias vezes ele sofresse sanções disciplinárias, incluindo duas suspensões de dois meses, em 2008 e 2013. Em 2010, disse Macedo, chegou a ser demitido em um processo como esse, mas conseguiu reverter a decisão. Desde então, flexibilizou um pouco seu princípio, procurando “combinar esse trabalho de não delegar com um trabalho no qual se delega”.
Segundo Macedo, quando começou a demanda de amparo sobre o monopólio da mídia, em 2013, ele imediatamente entendeu se tratar de um caso complexo e um desafio, e comunicou aos advogados das partes que a sentença poderia demorar, “e não disseram nada”.
A repercussão midiática do caso, segundo Macedo, tornava mais forte a pressão por uma sentença, mas mesmo assim ele resistiu, frente a outros casos que exigiam igual atenção, como por exemplo um julgamento sobre o matrimônio igualitário e, também, sobre a lei de terceirização laboral.
"Esse caso [do El Comércio], desde o início, tinha repercussão midiática”, disse Macedo à LJR. “Tinha um dilema ético: devia deixar todos os casos do meu escritório para dar preferência a este e evitar mais reclamações? Mas não, porque há outros casos que exigem igual atenção. Quis ser independente, inclusive diante do poder midiático dos próprios demandantes”, disse Macedo.
A decisão que lhe custou o emprego foi parte de um processo de avaliação de desempenho ao qual os magistrados peruanos estão submetidos a cada sete anos. A Junta Nacional de Justiça avaliou somente a demora deste caso, sem entrar no mérito da decisão. Um dos argumentos para votar pela demissão de Macedo foi “a demanda acolhida pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a situação na qual pôs o Estado peruano".
Após ser notificado formalmente numa sexta-feira, na segunda-feira seguinte, dia 24 de julho, Macedo já não podia mais trabalhar. O juiz comunicou que entrou com um recurso junto à Junta para tentar retomar o emprego. A resposta estava prevista para sair na semana retrasada, mas atualmente a própria Junta sofre pressões políticas do Legislativo peruano, cuja bancada conservadora tenta destituí-la.
Cézar Bazán Seminario, o advogado do IDL, disse que Macedo “ratificou uma sentença histórica” ao anular a venda. Segundo Bazán, a JNJ “não menciona que havia um risco latente nesse caso. A demora é real, mas mesmo assim esse juiz tomou decisões que outros magistrados não se atreveram.
Eloy Marchán, o jornalista que noticiou o caso, também fez uma avaliação sobre a decisão da Junta à LJR:
“A maior parte dos argumentos é a favor de Macedo e a única objeção se deve ao atraso no julgamento devido à concentração de jornais”, disse Marchán. “Analisei todo o legado de Macedo e vejo um juiz atípico: é cuidadoso no desenvolvimento de sua argumentação, não tem medo de decidir contra grandes empresas ou associações poderosas. Mas sim: tem problema de tempo e demora muito para emitir suas sentenças”.
Marchán afirmou que o juiz ficou em um limbo, com hostilidade dos dois maiores jornais peruanos.
“El Comércio odiava Macedo por decidir duas vezes contra eles e ordenar a anulação da compra da Epensa, o que levou a uma concentração no mercado jornalístico. Do La República, não ficaram satisfeitos com o trabalho de Macedo, não pela decisão, mas pela demora na sua realização”.
As consequências da concentração midiática peruana, enquanto isso, são sentidas no país.
“Atualmente vemos as consequências da concentração mediática que se originou com a compra da Epensa: demissões em massa de jornalistas, encerramento de jornais e revistas, descrédito geral dos meios de comunicação e condescendência com o governo de Dina Boluarte”, afirmou Marchán.