Apenas três semanas após a divulgação de que dezenas de jornalistas em El Salvador foram alvo de espionagem digital, a Assembleia Legislativa do país aprovou nova legislação que cria a figura do “agente secreto digital” e permite que policiais acessem dispositivos eletrônicos e recolham dados para serem usados como provas em processos penais. Opositores à medida alegam que se trata da legalização da espionagem digital de cidadãos e que pode ser usada para perseguir jornalistas críticos ao governo.
Para a jornalista Julia Gavarrete, do site El Faro, a nova legislação “é preocupante não só porque não há garantias institucionais de que nossos direitos à privacidade e à proteção de nossas informações não sejam violados, mas também porque estamos em um contexto em que se pôde confirmar o uso de um programa de espionagem capaz de acessar todas as nossas informações”, disse ela à LatAm Journalism Review (LJR).
Gavarrete é uma das 30 jornalistas cujos telefones foram hackeados com o software espião Pegasus, conforme foi revelado no dia 13 de janeiro pelas organizações Citizen Lab e Access Now. O programa foi desenvolvido pela empresa israelense NSO Group, que alega vender a licença do programa apenas para governos.
“O governo de El Salvador não está de maneira alguma relacionado com Pegasus e tampouco é cliente da NSO Group”, afirmou na ocasião Sofía Medina, secretária de Comunicações do presidente salvadorenho, Nayib Bukele, por meio de comunicado à imprensa. Ela também disse que o governo estava investigando “o possível uso” do programa no país.
Reforma do Código Penal
No dia 1o de fevereiro, a Assembleia Legislativa de El Salvador aprovou a reforma de quatro artigos do Código Penal relacionados a delitos informáticos, com os votos de 63 dos 84 deputados da casa. Essa maioria, pertencente aos partidos Nuevas Ideas, GANA e PCN, se encontra alinhada ao presidente Bukele, que é filiado ao Nuevas Ideas.
A reforma autoriza a polícia a realizar “operações secretas digitais” a pedido da Procuradoria-Geral da República, e não estabelece a necessidade de autorização judicial para tanto. Também permite que sejam aceitas como provas em processos penais “documentos digitais, mensagens eletrônicas, imagens, vídeos, dados e qualquer tipo de informação que seja armazenada, recebida ou transmitida (...) por meio de qualquer dispositivo eletrônico”.
Além disso, foram incluídas como possíveis medidas cautelares durante a investigação de delitos informáticos o bloqueio de contas, perfis ou sites e a apreensão da informação neles contida.
De acordo com o site da Assembleia Legislativa, a Procuradoria-Geral da República e o Ministério de Justiça e Segurança Pública enviaram “suas observações aos legisladores como insumo para a modificação” na lei.
Os parlamentares defensores da reforma alegam que ela é necessária para prevenir e combater delitos como fraudes digitais e compartilhamento de material relacionado a abuso sexual de menores, entre outros.
“Os que se opõem a esta reforma do Código Penal, para regulamentar a incorporação e a produção de provas digitais em processos judiciais, são somente os delinquentes”, disse o deputado Walter Coto, do partido Nuevas Ideas, segundo reportou Voz de America.
‘Ataque sistemático contra a imprensa’
Jornalistas e organizações da sociedade civil de dentro e fora de El Salvador têm manifestado sua oposição à reforma aprovada no dia 1o de fevereiro.
“A Casa Presidencial de El Salvador, através dos fantoches que apertam botões na Assembleia Legislativa, legalizará hoje a espionagem e enterrará a informação pública. A democracia morre com seu silêncio”, escreveu César Fagoaga, gerente da Revista Factum e presidente da Associação de Jornalistas de El Salvador (Apes), em seu perfil no Twitter no dia da votação.
A Sociedade Interamericana de Imprensa considera que a reforma representa “graves implicações para a liberdade de imprensa” e “possíveis represálias” ao jornalismo investigativo no país.
Gaspar Pisanu, Líder de Políticas Públicas na América Latina da organização Access Now, que colaborou na investigação que revelou a espionagem realizada com o programa Pegasus contra jornalistas salvadorenhos, disse à LJR que “uma lei não pode ser analisada sem a compreensão do contexto político e institucional em que ela será implementada”.
“Tem havido um ataque sistemático contra a imprensa e organizações da sociedade civil no país. Há muitas figuras mal definidas na lei que podem ser abusadas e aumentar o assédio de funcionários públicos [contra jornalistas e outros cidadãos]. Especialmente, os agentes secretos [digitais] poderiam ser autorizados pelo procurador-geral e não por um juiz como deveria ser. [A lei] não estabelece quaisquer salvaguardas para evitar tais abusos ou tecnologias que podem ser utilizadas para interferir com os sistemas”, disse Pisanu.
Ele também chamou a atenção para o fato de que a nova lei “permite solicitações para remover conteúdo, bloquear usuários ou um site inteiro por pelo menos um ano”. “Isso, se não for devidamente regulamentado (o que não é) pode ser usado como ferramenta de censura”, alertou.
Além disso, para Pisanu, “um dos aspectos mais problemáticos é ver o governo de El Salvador introduzir essas iniciativas em vez de tomar medidas para garantir a proteção de jornalistas, organizações da sociedade civil e comunidades em perigo, bem como investigar casos de abuso ou espionagem que foram relatados”.
Gavarrete expressou temor por como a nova legislação pode ser usada contra jornalistas em face da espionagem que já foi revelada, pois a reforma contempla o uso de evidências digitais como prova em processos penais.
“Assim como nossas informações foram roubadas sem que saibamos até agora para onde foram, tememos que possam ser usadas arbitrariamente diante da reforma recentemente aprovada pela Assembleia Legislativa controlada por Bukele”, disse ela.
“Há uma ‘legalização da espionagem’ e uma clara violação dos direitos constitucionais. Por que essas reformas podem nos afetar? Infelizmente, desde que Pegasus veio à tona, ainda estamos aguardando respostas do governo salvadorenho e das autoridades sobre quem estava por trás de sua operação. Se o governo dispõe de tecnologia desse nível, nada os impede de acessar as comunicações de críticos, vozes dissidentes ou jornalistas que lhes incomodem. Comprovamos que em El Salvador existe Pegasus. Agora não há mais nenhum impedimento para que entrar na vida de qualquer pessoa, através de seus celulares ou de suas telecomunicações, seja considerado ilegal”, disse Gavarrete.
Imagem destacada: Centro histórico de San Salvador, capital de El Salvador, por Mauricio Cuéllar/Unsplash