Por mais de um quarto de século, elPeriódico foi o mais renomado jornal diário guatemalteco, orgulhando-se, segundo sua própria descrição, de exercer “o papel de contrapeso mais agressivo, menos complacente, mas crítico e inconformista frente aos abusos do poder público” entre as publicações jornalísticas do país. Então, citando perseguição e pressões políticas e econômicas, em maio de 2023 o jornal anunciou que estava fechando as portas. O seu fundador, José Rubén Zamora, estava detido desde julho do ano anterior por suposta lavagem de dinheiro, em um processo repleto de suspeitas por parte do Ministério Público.
Embora o fechamento de elPeriódico seja definitivo e Zamora ainda não tenha conseguido encerrar todos os processos contra si e esteja em prisão domiciliar, as contribuições do veículo para a história voltaram a ficar disponíveis para quem quiser conhecê-las e estudá-las partir da última sexta-feira (31/01), quando foi ao ar o Arquivo Independente de Meios da América Central (Caima, na sigla em inglês).
Organizado por Ramón Zamora, filho de José Rubén, financiado com o apoio da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID) e com o apoio técnico de profissionais do Bard College, em Nova York, o arquivo disponibiliza gratuitamente todas as edições impressas do jornal, assim como de outros oito veículos jornalísticos guatemaltecos e do Confidencial, da Nicarágua. No futuro, o fundador da iniciativa espera incluir ainda mais meios da América Central.
Para Ramón Zamora, que desde 2023 vive no exílio nos Estados Unidos, o arquivo representa, simultaneamente, uma contribuição para tornar mais conhecida a história recente de seu país, e também uma forma de trazer justiça a seu próprio pai e a seu trabalho de décadas.
“Isto não só representa a história do país, mas também contém investigações e denúnciais ainda fundamentais”, afirmou Ramón Zamora à LatAm Journalism Review (LJR). “Sempre falamos que parte do objetivo da perseguição contra meu pai era apagar todas as denúncias que desagradam as pessoas com poder no país”.
Segundo Ramón Zamora, o site de elPeriódico ficou disponível por apenas três dias após o anúncio do fim de suas atividades, porque então não havia mais recursos para pagar os servidores online, disse Ramón Zamora. O projeto de um arquivo, todavia, era antigo. Um ataque digital em 2013 que apagou 10 anos de material arquivado deixou evidente a necessidade de ter o material organizado em um lugar seguro.
"Quando sofremos um ataque digital ao site, perdemos todo o arquivo que existia online de 2003 a 2013, uma década inteira de jornalismo," afirmou. "E de antes de 2003, só tínhamos edições que nunca foram digitalizadas nem preparadas para estarem disponíveis publicamente."
Nos últimos dias antes do jornal fechar, sabendo que provavelmente precisaria deixar o país, Ramón pediu à equipe administrativa da publicação que o ajudasse a digitalizar os quase 27 anos de edições impressas, missão lograda com sucesso. Quando saiu do país, ele levou consigo salvas em um disco rígido cópias digitalizadas de todas as edições.
Graças ao apoio da USAID e ao trabalho de arquivistas do Bard College que antes trabalharam no Arquivo da Mídia Independente Russa, o projeto de um arquivo público tornou-se viável. Inicialmente, apenas o acervo de elPeriódico estaria disponível. Desde dezembro, quando o projeto foi anunciado publicamente, no entanto, Ramón Zamora chegou a acordos para arquivar o acervo de outras oito publicações guatemaltecas: Agencia Ocote No-Ficción, Ojo con mi Pisto, Plaza Pública, Prensa Comunitaria, Ruda GT, Con Criterio e Crónica.
Ao todo, são mais de 500 mil documentos arquivados. Fora da Guatemala, o único participante, por ora, é o nicaraguense Confidencial. O projeto é incluir no futuro outros jornais da América Central, pois publicações de países como Nicarágua, El Salvador e Honduras enfrentam suas próprias ameaças à liberdade de imprensa.
"Na nossa região, vimos sequestros, atentados e assassinatos. E na nossa época, as ferramentas para silenciar os meios de comunicação também se estendem ao mundo digital, com ataques DDoS ou páginas falsas," afirmou Ramón Zamora. "Ter cópias de segurança fortalece os meios de comunicação. Aumenta nossa resiliência, e, em momentos de ataque que buscam silenciar investigações, permite se recuperar mais rápido."
Um desafio para atrair mais publicações para a iniciativa diz respeito a direitos autorais. Muitos veículos oferecem o acesso a seus acervos como uma das vantagens de ser assinante, afirmou Ramón Zamora. Isso significa que nem todos os materiais que serão arquivados serão oferecidos facilmente ao público online, acrescentou.
"Então estamos falando, bem, fazemos a cópia, mas o conteúdo não estará acessível ao usuário comum do arquivo, porque isso faz parte do seu modelo de negócios ou de sustentabilidade," disse Ramón Zamora. "A ideia é que não vamos ser donos do conteúdo. Só queremos protegê-lo".
Jornalistas que trabalharam em elPeriódico explicam qual é a importância de que as denúncias que saíram nas páginas do jornal estejam disponíveis. Para Lucy Chai, que ficou de dezembro de 2002 a dezembro de 2022 em elPeriódico, começando como repórter de política e chegando a subdiretora, e que hoje está no Prensa Comunitaria, muitas denúncias que elPeriódico fez ainda seguem relevantes.
"Há investigações que tratam de estruturas que ainda existem na Guatemala, como juízes, deputados, empresários e políticos," afirmou Chai à LJR. "Há muitas investigações sobre corrupção nas quais somente o elPeriódico trabalhou, especialmente sobre corrupção nas esferas mais altas".
Alexander Valdéz, que cobria especialmente o Poder Judiciário quando trabalhava em elPeriódico, afirma que uma das importâncias do arquivo é mostrar que casos de corrupção não somente nos governos mais recentes da Guatemala, mas também em administrações anteriores.
Muitas das denúncias que saíram nas páginas do jornal geraram processos judiciais e responsabilização. Houve também, afirmou ele, casos em que a impunidade predominou.
"Ainda há muitos casos que não foram processados devido ao controle corrupto do setor de justiça," afirmou Valdéz à LJR. "Por isso é importante que esse trabalho permaneça acessível em um espaço onde a cidadania possa lê-lo e exigir que as autoridades investiguem casos pendentes”.
Ramón Zamora, enquanto isso, vê o arquivo de forma profuundamente pessoal. Enquanto sua família a prisão e exílio, o arquivo, repleto de denúncias disponíveis ao público, representa uma forma particular de justiça.
"Para mim, é importante poder dizer: isso aconteceu," afirmou. "É algo muito pessoal para mim o fato de terem conseguido fechar o elPeriódico, mas também é uma vitória pessoal dizer: tentaram nos calar, mas aqui estamos. Vamos continuar dizendo a verdade, e ninguém poderá tirar o que fizemos."