“Minha vida mudou radicalmente. Sinto dores na cintura, no quadril e na cabeça, onde me golperam mais vezes e desenvolvi um problema pulmonar. Sobretudo, sinto medo de trabalhar no meu estúdio,” disse o jornalista argentino Luis Mancini à LatAm Journalism Review (LJR) oito meses depois da covarde agressão que sofreu enquanto apresentava o seu programa ao vivo na FM Horizonte, na cidade de Villa Río Bermejito, província do Chaco. As dores frequentes são resultado do ataque, que lhe causou traumatismo craniano e de tórax e uma lesão pulmonar.
O caso de Mancini é um dos 82 ataques a jornalistas e comunicadores registrados na Argentina no ano passado de acordo com o Informe del Monitoreo de Libertad de Expresión 2020, do Foro de Jornalismo Argentino (Fopea, na sigla em espanhol). Depois de dois anos de relativa estabilidade, os ataques a jornalistas deram um salto de 41%. Em 2019, haviam sido registrados 58 ataques enquanto 2018 contou com 51.
O então secretário municipal de Obras Públicas César Gavilán e seu irmão foram presos na ocasião, mas foram liberados e respondem ao processo em liberdade. Eles foram facilmente identificados porque a violência foi registrada pela câmera do estúdio.
“Seguem me ameaçando,” disse Mancini, que acrescentou que trocou seu filho de escola porque uma familiar dos seus agressores trabalha lá. Apesar disso, segue trabalhando na rádio e no seu site, Horizonte Impenetrable.
Antes das agressões, Mancini havia denunciado irregularidades na construção de casas populares e na arrecadação ilegal de um auxílio social (Ingreso Familiar de Emergencia, IFE) por parentes do prefeito de Villa Río Bermejito.
O Chaco, onde Mancini vive, lidera o número de registros de ataques contra a liberdade de expressão no levantamento do Fopea quando se consideram apenas as províncias do interior – excluídas a província de Buenos Aires e a capital argentina. No Chaco, que tem 2,6% da população argentina, ocorreram sete casos de violência contra jornalistas em 2020, 8,5% do total.
"Eu estava tirando fotos. Quando em dei conta, [os agressores] já estavam em cima de mim," disse à LJR o jornalista Raúl Oscar Argañaraz, da Rádio FM Contacto 94,5 e do site Panorama Informativo Digital. "Eram quatro pessoas, tinham tijolos nas mãos, me empurraram. Diziam que eu não tinha autorização para fazer fotos, não deixei que levassem meu telefone, mas pegaram minha câmera."
Algarañaz cobria uma manifestação de integrantes dos povos originários em frente à sede do município de Miraflores, também no Chaco, em 16 de outubro de 2020, quando sofreu o ataque. À LJR, ele disse que conseguiu identificar e denunciar os agressores posteriormente, mas, segundo ele, a denúncia não deu em nada.
A situação do Chaco reflete uma tendência de expansão da violência contra jornalistas no interior da Argentina, segundo os dados do Fopea. Ao passo que a cidade de Buenos Aires e a província de Buenos Aires têm 46% da população argentina, elas concentraram apenas 35% dos casos em 2020.
Já as demais províncias reuniram 65% dos ataques a jornalistas, um crescimento de 14 pontos percentuais na proporção de casos em relação a 2019, quando as demais províncias do interior concentraram 51% dos ataques contra a liberdade de expressão.
“À medida que melhoramos nosso sistema de alerta no território, conseguimos tornar mais visíveis as situações e desnaturar aquelas que nos parecem ataques à imprensa. Temos os monitores de cada província em maior contato com os restantes monitores do país, e também incorporamos uma rede de consulta jurídica mais ampla. Os casos também cresceram porque nos protestos públicos aumentaram as agressões contra jornalistas, o que também está acontecendo em outros países latino-americanos,” disse à LJR Fernando Ruiz, presidente do Fopea.
Profissionais que atuam no rádio, como Mancini e Argañaraz, estão entre os que mais sofreram ataques na Argentina em 2020: 21% dos casos monitorados pelo Fopea ocorreram com trabalhadores deste meio. Já os de TV lideram o recorte por meio, com 23%.
Além disso, agressões físicas, psíquicas e materiais são mais da metade do total das violações registradas no levantamento do Fopea, com 43 casos. Já 19 casos são de intimidações, como as ameaças sofridas pelo jornalista Diego Brancatelli, da América TV, depois que o número de seu telefone pessoal foi vazado na internet.
“Todos estamos acostumados a insultos, a liberdade de expressão não nos incomoda, temos uma opinião diferente e pronto. Mas desta vez houve ameaças concretas de muitos grupos,” disse Brancatelli na América TV. “Todos estavam indo para a mesma coisa: 'Vamos fazer você desaparecer', 'Vamos colocá-lo no Falcão verde', 'Temos que exterminá-lo', 'Vamos colocar uma bala sua cabeça ', Coisas que até me envergonho de reproduzir."
O jornalista registrou queixa depois que as ameaças passaram a ser dirigidas à sua família, incluindo seus filhos.
“O pior que temos é que existem governos a nível provincial e nacional que têm vozes que perseguem as práticas jornalísticas. (...) Dentre todos esses setores, eles tentam intimidar os principais jornalistas investigativos, e também gera um efeito de autocensura nos demais. O uso das redes sociais para realizar campanhas para destruir o prestígio dos jornalistas é talvez a principal ameaça que temos hoje,” disse Ruiz.
“Eu gostaria que houvesse consequências [para os agressores], que se faça respeitar a liberdade de expressão, que possamos trabalhar livremente,” disse Algarañaz. “Mas as denúncias não prosperam.”
Ainda sim, sob risco e ameaças, o trabalho de jornalistas da Argentina segue provocando um impacto positivo na sociedade. Uma investigações de Mancini, sobre desvio de recursos para a construção de casas populares, resultou na apreensão de bens de um ex-prefeito da cidade: seis imóveis, 20 veículos e mais de 3 milhões de pesos em dinheiro (R$ 170 mil). A Justiça Federal confirmou a sentença em segunda instância e os recursos retornarão aos cofres públicos.
“Uma satisfação,” disse Mancini.