Este artigo foi publicado originalmente na MediaTalks By J&Cia.
Reconhecido por sua diversidade racial, o Brasil não tem feito jus à herança de país formado pela miscigenação das mais variadas raças e etnias em um estudo mostrando a participação de não brancos no comando das principais redações de cinco países. Relatório divulgado no dia 21 de março pelo Instituto Reuters para estudos do Jornalismo na Universidade de Oxford mostra o país ao lado de Reino Unido e Alemanha como um dos três únicos sem qualquer diretor de redação não branco nos veículos com maior audiência.
A data escolhida pelo Instituto para publicar seu novo trabalho coincide com o Dia Internacional para a Eliminação da Discriminação Racial, criado pela ONU em alusão ao Massacre de Sharpeville, na África do Sul, em 1960. As 69 vítimas fuziladas pelo Exército protestavam contra a obrigatoriedade de usar um passe indicando locais a que podiam ter acesso.
Jornalistas não brancos não precisam de passes para ocupar espaço nas redações, com várias delas tendo adotado programas de inclusão recentemente. E os exemplos de brilhantes profissionais de diferentes raças e etnias são a prova.
Mas isso não significa que eles consigam chegar facilmente aos “aquários” dos grandes veículos, parecendo haver necessidade de um “passe invisível” para acessar os cargos de comando no topo do jornalismo.
Em comparação ao ano passado, a participação de chefes de redação não brancos caiu de 18% para 15% na amostra de 100 veículos (vinte de cada país) examinada pelo Instituto no Brasil, África do Sul, Alemanha, Reino Unido e Estados Unidos.
O trabalho comparou a presença dos diretores de redação negros a dados demográficos e a índices de diversidade no jornalismo. O percentual de 15% de não brancos entre os 80 diretores de redação (alguns acumulam cargos) que lideram os 100 veículos pesquisados, é bem menor do que o índice de 42% dos não brancos na população combinada dos cinco países.
A representatividade no topo é também inferior ao percentual do total de jornalistas não brancos dos quatro países onde há estatísticas disponíveis (excetuando-se a Alemanha, por razões legais), que é de 21%.
A África do Sul concentra a maioria dos líderes de redação não brancos, mas viu a taxa cair de 68% em 2020 para60%em 2021. Nos Estados Unidos, há mais um diretor de redação não branco em relação ao ano passado.
“Os brancos estão significativamente super-representados entre os diretores de redação em todos os cinco países, e os não brancos estão significativamente sub-representados”, diz o relatório.
O Brasil contribuiu para a queda da representatividade dos diretores de redação não brancos aos perder seu único representante identificado na edição de 2020, que traz na capa três exemplos de jornalistas negros em posição de comando.
O resultado do Brasil equivalente ao da Alemanha e Reino Unido, dois países de população predominantemente branca, reflete as conhecidas desigualdades históricas que as políticas inclusivas ainda não foram capazes de corrigir, pelo menos na grande imprensa. E que influenciam não apenas a carreira dos profissionais do setor, mas a visão de mundo transmitida à sociedade pela mídia de grande alcance.
Segundo o Instituto, entre as pessoas que consomem notícias em meio digital, a proporção dos que disseram informar-se por pelo menos um grande veículo dirigido por um jornalista não branco é de zero no Brasil, chegando a 86% na África do Sul.
A diversidade racial não desafia apenas o jornalismo. Em junho do ano passado, a revista Forbes contabilizou apenas cinco CEOs negros na lista das empresas que apontam as 500 maiores empresas americanas.
A coleta de dados sobre os líderes das redações foi feita pelo Instituto Reuters a partir de consulta às páginas oficiais, buscando-se o cargo que correspondesse ao líder principal da redação. Os dados foram checados por jornalistas e pesquisadores para confirmação. No total, 80 profissionais fizeram parte do estudo.
A amostra da cada país incluiu os 20 veículos de maior audiência, sendo 10 off-line (TV, mídia impressa e rádio) e 10 online, tomando como referência a edição 2020 do Relatório de Mídia Digital publicado pelo Instituto.
Os dez veículos off-line brasileiros de maior audiência apontados no Relatório são: TV Globo, Record TV, SBT, TV Globo News, Rádio Band News, O Globo, TV Band News, Folha de S.Paulo, CNN e Rede TV. No online são Globo News (incluindo G1), UOL, Record (incluindo R7), O Globo, Yahoo! News, MSN News, Band News, Folha de S.Paulo, O Estado de S.Paulo e BBC News.
Houve pouca rotatividade em relação a 2020, segundo os pesquisadores: 89 dos veículos analisados ano passado se mantiveram entre os de maior audiência neste ano nos cinco países.
Tomando por base apenas essas organizações, o que permite uma base comparativa, foram observados 17% de chefes de redação não brancos em 2021, taxa que era de 16% em 2020. Isso reflete uma rotatividade nos cargos, segundo a pesquisa.
Onze novos diretores assumiram nessas organizações, dos quais cinco não brancos. No entanto, apenas um desses não brancos assumiu a posição em um país que não fosse a África do Sul (no caso, nos Estados Unidos).
Considerando os 100 veículos da amostra deste ano, 20 novos diretores assumiram seus cargos ao longo do ano passado (incluindo os onze das organizações que aparecem nas duas últimas edições). Excluindo-se a África do Sul, apenas um em cada sete desses novos diretores não é branco.
O trabalho é de autoria dos pesquisadores do Instituto Reuters Craig T. Robertson, Meera Selva (vice-diretora e responsável pelo programa de fellowship) e Rasmus Nielsen, que dirige a instituição.
Os autores salientam a importância prática e simbólica da diversidade racial no comando das redações, não apenas pela liderança dos diretores de redação na tomada de decisões, mas também pela percepção do público.
Eles chamam a atenção sobre a oportunidade para examinar o que aconteceu com a diversidade no jornalismo após um ano marcado pelo aumento do debate sobre justiça racial, equidade e diversidade em muitos países:
“Em 2020, cresceu a importância do jornalismo no diálogo sobre os temas expostos pelo movimento Black Lives Matter e sobre outros relativos à diversidade racial, como racismo estrutural, desigualdades no mercado de trabalho e barreiras de acesso à saúde. Tudo isso ficou ainda mais exposto depois da pandemia do coronavírus e dos questionamentos em torno do legado do colonialismo e do imperialismo.
Há o risco de que a mídia deixe de lado fatos ou perspectivas importantes relacionadas a essas questões, em parte porque a experiência pessoal dos principais editores e sua forma de enxergar os problemas pode ser diferente daquela das comunidades mais afetadas por elas.
Por isso é importante compreender quem são os principais líderes das redações.”
Os pesquisadores lembram também que, ao se concentrar nos 10 maiores off-line e online de cada país, o estudo não incluiu na amostra veículos importantes com editores não brancos, citando como exemplo o americano Miami Herald, que tem Monica Richardson, uma mulher negra, como líder da redação.
Os autores do estudo destacam que um dos grandes desafios de uma análise como essa é conceituar raça. Os pesquisadores consideram que a discriminação funciona de maneira complexa, nem sempre vinculada à cor da pele, abarcando também fatores como religião e etnia.
Por isso, dizem ter decidido adotar o termo não branco para designar os profissionais, como um método simples e reducionista “que não tem a intenção de sugerir uma identidade devido à grande diversidade e a complexidade das identidades, mas fornece uma parâmetro para classificar pessoas que vêm de grupos étnicos e raciais historicamente dominados”.
No entanto, admitem que o conceito é sujeito a debate, e que nem todos os diretores de redação podem se ver ou serem vistos da mesma forma como foram classificados.
A comparação feita pelo Instituto entre a presença de líderes não brancos no comando das redações e a composição racial dos profissionais de jornalismo em cada país tomou como referência o estudo Worlds of Journalism.
O Brasil e o Reino Unido foram apontados como os países onde proporcionalmente há menos diretores de redação não brancos do que jornalistas não brancos. Na África do Sul e nos Estados Unidos acontece o oposto.
No Brasil, que perdeu este ano o único líder de redação negro identificado pela pesquisa do ano passado, 34% dos profissionais de imprensa do país não são brancos, segundo o Reuters.
No Reino Unido, onde todos os editores das redações principais são brancos, há apenas 6% de jornalistas negros em atuação. Nos Estados Unidos eles somam 9% da força de trabalho do setor, mas conseguiram mais espaço na liderança, ocupando 18% dos cargos de chefia nas empresas jornalísticas que integraram a pesquisa.
E em uma grande editora, a Conde Nast, uma rara oportunidade de uma jornalista negra e jovem assumir a diretoria de redação da prestigiada Vogue Teen acabou sendo perdida devido a uma polêmica envolvendo tuítes racistas contra asiáticos postados quando Alexi McCammond era adolescente.
A África do Sul figura como exceção. Três quartos dos jornalistas do país são negros, proporção que sobe para 60% entre os editores dos veículos de maior audiência. Dados sobre a identidade racial de jornalistas na Alemanha não estão disponíveis.
Sobre os números da África do Sul, o jornalista britânico Ian Hughes, que mora no país e colabora com o MediaTalks, confirma que os jornais maiores são editados exclusivamente por negros, incluindo periódicos especializados como o Financial Mail & o Weekly Mail & Guardian. Ele aponta como exceção o Daily Maverick, com um conselho editorial misto. Para Hughes, editores e jornalistas brancos estão mais concentrados na mídia regional e em publicações comerciais.
Comparando os dados demográficos de cada país com a taxa de diretores de redação não brancos, o Reuters encontrou disparidades marcantes, a exemplo do ano passado.
Excluindo-se a África do Sul, a média de líderes de redação não brancos nos outros quatro países cai para 5%, percentual bem inferior ao da média da população não branca desses países, que é de 30%. A Alemanha não entra no cálculo porque há restrições legais para coleta e retenção de dados sobre raça no país.
E de novo o Brasil aparece em destaque devido à ausência de diretores não brancos confrontada com a taxa de 57% de pessoas que se declaram não brancas.
Nos Estados Unidos, a porcentagem de editores (18%) ficou abaixo da metade da população não branca do país, que inclui os latinos: 40%.
E mesmo na África do Sul, onde 92% dos habitantes são negros, há um abismo de representação entre os principais editores, com 40% de brancos no comando das redações de veículos com maior audiência.
Silvana Mautone, jornalista brasileira radicada nos Estados Unidos e colaboradora do MediaTalks, trabalhou no Wall Street Journal entre 2013 e 2017. E lembra que na época a cúpula na redação era majoritariamente composta por homens brancos.
“Era uma realidade muito próxima à que eu tinha vivenciado no Brasil. A diversidade que eu via mais presente no jornalismo − e ainda vejo − era na televisão, com vários apresentadores e repórteres negros, e em menor número asiáticos, inclusive fugindo do padrão de beleza tradicional, colocando em frente às câmaras mulheres com quilinhos a mais.
Mas uma coisa que hoje é clara para mim é que episódios de racismo, quando vêm à tona, não são tolerados, nem mesmo na chefia. Há um grande receio de como isso pode prejudicar a imagem do veículo”, diz Silvana.
Os pesquisadores identificaram ainda a proporção de pessoas em cada país que se informa por pelo menos um meio de comunicação importante cujo editor principal não é branco. Para chegar ao resultado, utilizaram os dados do Relatório de Mídia Digital de 2020, uma das mais importantes pesquisas globais de jornalismo, de autoria do pesquisador Nic Newman.
A conclusão é de que na semana anterior à da coleta dos dados do relatório digital, a totalidade dos entrevistados que utilizou um dos grandes veículos que fazem parte da amostra do estudo de diversidade como fonte de notícia em Brasil, Reino Unido e Alemanha não foi exposta a uma edição com a perspectiva de um não-branco.
Nos Estados Unidos, em 2021, 42% dos usuários de notícias online usaram pelo menos uma fonte editada por um profissional não branco, contra 30% no ano passado. Na África do Sul, a taxa permaneceu em 86%.
Para os pesquisadores, as críticas públicas, a autorreflexão dos profissionais e da indústria e algumas pesquisas sinalizam um reconhecimento de que a mídia precisa considerar “a quem o jornalismo não está servindo”. E fazer um acerto de contas para equacionar a falta de diversidade na indústria e na própria profissão, especialmente no topo.
Karina Gomes, jornalista brasileira residente na Alemanha que coordena o programa educativo multimídia da alemã Deutsche Welle para a África e colaborou para o especial sobre jornalismo na pandemia do MediaTalks, percebe mudanças. Ela conta que a empresa tem investido em políticas de diversidade nos times que escrevem em 30 idiomas e na forma de fazer as reportagens, abrangendo a cultura interna e os produtos. E que foram criados grupos de trabalho para avaliar a diversidade na equipe.
Há tamnbém iniciativas como a do projeto Projeto Diamond,que mensura anualmente a participação de minorias na TV do Reino Unido (nas telas e nos bastidores) como forma de guiar as emissoras em seus esforços de inclusão. E acões como a criação do grupo URL Media nos Estados Unidos, reunindo veículos editados por não brancos que tem como um dos objetivos fortalece-los comercialmente para aumentar o alcance.
Mas o caminho é longo. Em outro trabalho do Instituto Reuters, a ampla maioria dos líderes de empresas jornalísticas entrevistados reconheceu que suas organizações não estavam fazendo o suficiente para aumentar a diversidade nos escalões superiores.
O Instituto destaca o caso do Reino Unido, tomando por base o objetivo anunciado pela Sociedade de Editores em 2004: “Mudar a composição da redação é um desafio fundamental que exigirá comprometimento e uma abordagem estruturada, conduzida consistentemente a partir do topo”.
Dezessete anos depois, os pesquisadores não vêem sinais de que o perfil dos diretores de redação esteja significativamente mais diversificado em termos de raça do que era na época, observando que a rotatividade no topo é lenta e que nem sempre resulta em inclusão racial.
“A conversa − e as críticas − vão continuar. O ritmo da mudança aumentará? Saberemos mais quando repetirmos esta análise em 2022 para acompanhar a evolução nas questões de raça e de igualdade entre as principais empresas jornalísticas de todo o mundo”, finalizam os pesquisadores.
Que venham notícias melhores em 2022.