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Casos de censura judicial à imprensa proliferam no Brasil, e mídia enfrenta ‘nova fronteira’ de assédio

Reportagens tiradas do ar, revistas recolhidas em bancas de jornal, documentários proibidos de serem vistos: nos últimos meses, por diversas vezes a própria imprensa foi tema de notícias no Brasil, após a Justiça do país determinar a censura imediata de matérias em acolhimento a ações de partes que se sentiram difamadas.

A tendência de amordaçar a imprensa por meio dos tribunais já acontece há anos no Brasil e vem se intensificando, em um sinal de alerta para defensores da liberdade de expressão. A tática, classificada como “assédio judicial”, é, nas palavras da presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), Katia Brembatti, “a nova fronteira” das intimidações a jornalistas brasileiros.

“Todo cidadão e cidadã tem direito a acesso à Justiça para recorrer quando se sente prejudicado, mas algo diferente disso é a chamada litigância de má fé, o uso do Judiciário como um instrumento de intimidação, para impedir alguém de revelar fatos inconvenientes”, afirmou Brembatti à LatAm Journalism Review (LJR). “Nos últimos anos tivemos uma escalada de ataques à imprensa, como violência digital em redes sociais, ou violência física nas ruas, e os assassinatos de Dom Philips e Givanildo  [Oliveira] em 2022. E agora o assédio judicial se torna cada vez mais intenso”.

Tentativas de silenciamento

Os casos recentes de censura incluem várias ações envolvendo o atual presidente da Câmara dos Deputados em Brasília, Arthur Lira (PP-AL). Em meados de julho, o deputado federal processou os sites Agência Pública e Congresso em Foco e o canal de Youtube ICL Notícias após eles publicarem matérias independentes com Julyenne Lins Rocha, sua ex-mulher, nas quais ela o acusava de violência doméstica e sexual. 

Na ação, Lira argumenta que as acusações foram consideradas inverídicas e difamatórias pelo Supremo Tribunal Federal (STF), pedindo, além da censura, indenizações de até R$ 300 mil . Além desses processos, Lira também processou o ICL Notícias pela publicação de vídeos com denúncias de corrupção.

Os pedidos de retirada imediata dos conteúdos de Agência Pública e ICL Notícias foram negados, mas um tribunal de Brasília determinou a retirada da entrevista ao Congresso em Foco. Todos os casos seguem em tramitação na Justiça, sem que haja sentença.

A agência de fact checking Aos Fatos, que já sofreu censura em 2021 a pedido da revista de extrema direita Oeste, também foi proibida de divulgar informações devido a uma decisão judicial recente. No último dia de maio, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS) manteve a censura, determinada um ano antes, a uma reportagem publicada em abril de 2020 que denunciava uma rede coordenada de desinformação integrada pelo site Jornal da Cidade Online.

Outro caso de censura foi contra a revista piauí. Em sua edição de junho, a publicação trazia uma reportagem sobre como o governo de Jair Bolsonaro enfraqueceu o programa Mais Médicos e o substituiu por uma agência considerada repleta de irregularidades. A reportagem citava os nomes de um casal, L.W. e D.O.M., que integrava o órgão denunciado.

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A capa da revista Piauí 201, de junho, de 2023, que foi retirada das bancas

Alegando que a matéria noticia “fato inverídico”, o casal recorreu à Justiça e pediu a remoção da reportagem do site da Piauí e a retirada de circulação da edição impressa da revista. O juiz Hilmar Castelo Branco Raposo Filho, do Distrito Federal, ordenou que a publicação suprimisse os nomes citados. Na prática, isso significou o recolhimento da piauí das bancas.

Mais um caso recente envolveu uma série de reportagens e um documentário do site The Intercept Brasil sobre a chamada Lei de Alienação Parental. A publicação revelou o nome de juízes, desembargadores, promotores, psicólogos e assistentes sociais que, ao aplicarem a lei, às vezes livram acusados de estupro de vulnerável ou de violência doméstica, muitas vezes tirando os filhos de mulheres e entregando-os a quem elas denunciaram.

A decisão judicial supostamente visava proteger a privacidade das crianças, que no entanto não eram identificadas. Após o site recorrer, em meados de julho um tribunal determinou que as reportagens poderiam voltar ao ar, mas o documentário segue censurado.

Uma triste tradição

Segundo Silvio Henrique Barbosa, professor de Comunicação Social na Universidade Federal do Piauí e coautor do livro  “Imprensa e censura”, os episódios recentes constituem casos de censura judicial e censura prévia, nos quais informações e denúncias são censuradas de imediato, antes de serem consideradas difamatórias por tribunais.

“O juiz que toma uma decisão dessas, que fala ‘recolham isso, não se pode divulgar essa informação’, continua tendo por inspiração a censura prévia. Ele não quer que a informação chegue a ninguém, por isso manda suprimir o conteúdo”, afirmou Barbosa à LJR.

De acordo com Barbosa, os casos entram em conflito com a Constituição Federal brasileira e com as decisões do STF. Os fundamentos jurídicos dos processos são os chamados direitos da personalidade, que incluem a proteção à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem, e estão previstos na Constituição. 

O mesmo documento, no entanto, também prevê o direito ao livre acesso à informação. Quando os dois princípios entram em conflito, o direito à informação deve prevalecer, e este tem sido o entendimento da mais alta corte brasileira, afirmou o pesquisador.

“Quando há o confronto entre esses dois direitos constitucionais, o Supremo Tribunal Federal (STF) entende que o direito maior é o direito da sociedade de ser informada, que tem um peso maior e estará sempre garantido em relação aos direitos à personalidade”, disse Barbosa. “Em todas as suas decisões, o STF manda cancelar as liminares dos juízes, diz que não pode haver censura prévia, que a correção, quando for necessária, deve ser posterior [ao julgamento]”

Até o STF julgar as ações, passam-se anos. Em 2019, a Corte julgou improcedente um pedido de censura prévia do jornal Estado de São Paulo envolvendo Fernando Sarney, filho do ex-presidente José Sarney, depois de 3.327 dias, ou oito anos. Para veículos menores que não têm recursos para recorrerem até as instâncias superiores, os processos podem significar altos custos jurídicos e que denúncias não terão qualquer efeito.

“Esse processos representam um custo jurídico muito grande, e também um grande um estresse mental para os repórteres, que ficam se culpando ou pensam se poderiam ter feito algo diferente”, disse Brembatti, da Abraji.

O empobrecimento da esfera pública atinge até mesmo manifestações por parte do público, segundo Fernando Oliveira Paulino, professor da Universidade de Brasília e presidente da Associação Latino-Americana de Investigadores da Comunicação (ALAIC).

“O aumento de ações e decisões judiciais pode influenciar em maior cuidado com o que é veiculado, e também pode significar restrições ao que é publicado, incluindo material jornalístico e comentários que são enviados pelo público”, afirmou Oliveira Paulino à LJR.

Embora em geral julgue a favor da liberdade de informação, o próprio STF já tomou decisões a favor da censura para se proteger de denúncias. Em 2019, a Corte ordenou a retirada do ar de reportagens que denunciavam o seu então presidente, Dias Toffoli, publicadas pela revista Crusoé e pelo site Antagonista. No ano passado, Rubens Valente, um dos mais premiados jornalistas brasileiros, foi condenado a pagar R$ 310 mil por denúncias envolvendo o ministro Gilmar Mendes.

Tamanho desconhecido

Não existe nenhum monitoramento sistemático de casos de censura judicial no Brasil, de modo que não é possível saber o quanto eles vem aumentando, se é que de fato o estão, ou se somente têm mais visibilidade agora. Segundo Brembatti, a Abraji, em parceria com Taís Gasparian, do Instituto Tornavoz, começou a tentar mapear o número de casos, e também há uma iniciativa do Ministério Público Federal do Rio de Janeiro neste sentido.

Outra iniciativa que a Abraji vem desenvolvendo, desta vez em parceria com um professor da Universidade de São Paulo (USP), é a realização de reuniões de trabalho em busca de uma definição do conceito de “assédio judicial”, hoje inexistente na doutrina jurídica brasileira.

De acordo com Brembatti, um dos motivos de tantos processos é a facilidade, inclusive em termos de custos, com que os tribunais podem ser usados para processos contra jornalistas no Brasil. “Acessar a Justiça nos Estados Unidos é muito caro, e esse é um dos motivos por que processar um jornalista nos Estados Unidos não é uma prática recorrente. No Brasil,  temos por exemplo juizados especiais sendo usados para isso de uma forma equivocada”, afirmou. 

Outro motivo, segundo Oliveira Paulino, é a presença cada vez maior do Poder Judiciário na política e no cotidiano brasileiro.  “Nos últimos anos, houve um aumento da estrutura, das atribuições e da atuação do Poder Judiciário e, por consequência, da judicialização de situações do cotidiano. Por um lado, o acesso à Justiça cresceu e contribuiu para uma maior reivindicação de direitos. Por outro, o Poder Judiciário tem sido central em processos políticos, transformando-se em instrumento importante da luta por poder, com estratégicas de sua utilização para a busca de hegemonia”, afirmou Oliveira Paulino. 

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O escritor João Paulo Cuenca, processado 144 vezes por pastores da Igreja Universal do Reino de Deus (Foto: Rafael Andrade)

Além disso, o professor observa que a internet possibilita estratégias de organização para uso da Justiça como ferramenta contra comunicadores, “dificultando a defesa e também constrangendo a atuação de profissionais”. Este foi o caso, por exemplo, do escritor João Paulo Cuenca, que por causa de uma frase sofreu 144 processos diferentes em várias regiões do Brasil promovidos por pastores da Igreja Universal do Reino de Deus.

Necessidade de nova legislação

A proteção dos jornalistas, segundo os especialistas consultados, exige mudanças na legislação. Brembatti cita a chamada Lei Anti-SLAPP da União Europeia (UE), uma iniciativa para proteger jornalistas e defensores de direitos humanos no bloco, como um exemplo a ser seguido. 

A última Lei de Imprensa no Brasil, escrita em 1967, durante a ditadura militar, previa a censura prévia, e foi revogada em 2009. O professor Barbosa, da UFPI, entende que um novo marco jurídico pode oferecer proteção a comunicadores. 

“A regulamentação da imprensa seria boa para limitar a capacidade de tribunais de decretar punições e para definir isso claramente. Seria possível, por exemplo, estipular como deve ser feita a correção de uma informação errada, com direito de resposta e indenização”, afirmou.

Para complicar ainda mais a situação, há ainda o problema das chamadas fake news, incluindo muitas situações em que a desinformação é deliberada. Nestes casos, Barbosa entende que, sim, os tribunais podem agir; mas são exceções. 

“Temos que pesar cada situação. Penso que a Justiça Eleitoral pode, sim, ordenar a retirada de informações falsas, mas nesses casos, isso é necessário para a preservação da democracia. Em outras situações, como essas recentes, a democracia não está sendo ameaçada”.

 

Fotos do banner e da chamada  por Mariordo –  Mario Roberto Durán Ortiz, CC BY-SA 4.0, via Wikimedia Commons

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