Em terras colombianas, um grupo de famílias políticas arrasta consigo uma sombra escura repleta de vínculos com forças do mal. Os cidadãos colombianos precisarão enfrentar uma série de desafios para descobrir a verdadeira face daqueles que pretendem ascender ao poder.
Isso não é o enredo de um filme nem o argumento de uma série. Trata-se de "Desencanto", um jogo interativo desenvolvido pelo meio nativo digital colombiano Cuestión Pública, lançado em outubro deste ano, durante as eleições locais na Colômbia.
O jogo se baseia no conceito do filme da Disney "Encanto", lançado em 2021 e cuja trama se passa na Colômbia, para apresentar de forma lúdica uma investigação jornalística sobre candidatos que enfrentam processos judiciais pendentes ou têm suspeitas de vínculos com organizações criminosas ou paramilitares.
O usuário deve escolher um candidato entre uma galeria de rostos animados ao estilo Disney e responder a uma série de perguntas até descobrir qual é o "desencanto" da realidade desse candidato.
"Desencanto" é o mais recente de cinco jogos interativos que a Cuestión Pública produziu desde 2020, com os quais consolidou uma proposta de "gamificação" do jornalismo de dados na região.
A Cuestión Pública e a Convoca, do Peru, são exemplos de meios de comunicação na América Latina que estão apostando em jogos interativos para aproximar o público mais jovem das notícias e para contribuir para a sua alfabetização midiática. Junto dos jogos, os veículos divulgam investigações que impactam a agenda pública e criam novas possibilidades de financiamento para a mídia.
A gamificação é definida como a aplicação de elementos de jogos em contextos não lúdicos, de acordo com a jornalista sueca Anna Thulin, que conduziu uma pesquisa sobre gamificação no jornalismo para a London School of Economics publicada em 2022. Essa técnica é usada há vários anos em áreas como educação, marketing e negócios. No jornalismo, a gamificação é o uso de princípios de videogames para tornar o consumo de notícias mais atraente e aumentar o engajamento e a fidelidade dos leitores.
"Esses aplicativos de notícias são realmente uma maneira de alcançar um público jovem. Está no nosso DNA na Cuestión Pública, não é uma moda", disse Claudia Báez, diretora-geral e cofundadora do meio digital, à LatAm Journalism Review (LJR). "Realmente acredito que é a marca registrada da Cuestión Pública essa combinação entre dados e pesquisa, pôr em cena as visualizações de dados ou do produto digital, de modo que façam justiça à pesquisa jornalística".
Antes de "Desencanto", a Cuestión Pública lançou
“Sabemos lo que hiciste la legislatura pasada” e “Juego de Votos” ("Sabemos o que você fez na legislatura passada" e "Jogo de Votos"). A primeira, publicada em 2020, é uma série investigativa que expôs o patrimônio, os supostos conflitos de interesse e as redes de poder de mais de 75 congressistas colombianos, incluindo o atual presidente e então senador Gustavo Petro, por meio de uma interface que simula um perfil no Instagram, chamada "Indi$cregram". Este foi o produto que estabeleceu o método de trabalho para o desenvolvimento de aplicativos lúdicos que o veículo aprimoraria até chegar a "Desencanto".
Em 2022, chegou "Juego de Votos", uma investigação sobre os clãs políticos mais poderosos do país, publicada durante as eleições presidenciais e legislativas daquele ano. Incluiu um jogo interativo em que o usuário podia fazer previsões para o primeiro e segundo turno das eleições presidenciais, tudo com o estilo gráfico da série da HBO "Game of Thrones".
"Nossos aplicativos de notícias são pensados para momentos conjunturais em que o cidadão comum realmente tem uma grande sede de informação. Pensamos muito bem em todos esses aplicativos para que as pessoas tomem decisões melhores", disse Báez. "A cultura popular oferece essa oportunidade de engajar rapidamente um público jovem, porque você tem imagens coletivas que atraem e despertam a curiosidade sobre um tema que, para o público colombiano, já está desgastado".
A Cuestión Pública solicitou autorização para criar uma versão da música-tema de "Game of Thrones" para "Juego de Votos". Para "Desencanto", eles pagaram por uma música tema semelhante à do filme da Disney. Em nenhum dos casos tiveram problemas com direitos autorais, pois se tratam de produtos de interesse público sem fins lucrativos.
As investigações de jornalismo de dados apresentadas na forma de jogos interativos valeram à Cuestión Pública reconhecimento internacional. "Juego de Votos" ganhou o Prêmio Digital LATAM 2022 da WAN-IFRA como Melhor Projeto de Jornalismo Digital e também foi premiado com o Sigma Award este ano. Em 2023, a Cuestión Pública recebeu o Prêmio Rei da Espanha de Jornalismo para Mídia Ibero-americana.
Embora apreciem o prestígio que "Juego de Votos" trouxe à Cuestión Pública como referência em jornalismo de dados e inovação, para Báez e sua equipe, o principal impacto de seus projetos de gamificação não são os prêmios, mas sim o interesse que despertam em seus leitores e as consequências que têm na agenda pública da Colômbia.
A jornalista contou que "Juego de Votos" e "Sabemos lo que hiciste..." foram ambos publicados em partes ao longo de vários fins de semana, criando expectativa entre o público e a classe política. Além disso, vários veículos de comunicação colombianos republicaram informações de "Juego de Votos" em suas coberturas das eleições de 2022. E, acima de tudo, ambos os produtos registraram um alto volume de visitas ao site e se tornaram referências para os cidadãos devido ao alto nível de documentação que os respalda.
"'Sabemos lo que hiciste...' é o aplicativo mais visitado da história da Cuestión Pública. As pessoas vão e consultam mesmo depois de ter sido publicado em 2020", disse Báez. "São investigações tão profundas e com metodologias tão bem estruturadas que se tornam investigações que não perdem relevância, porque todas essas informações foram coletadas ao longo de meses para criar um produto tão consolidado".
Mas o principal indicador de sucesso para o meio de comunicação é o desconforto causado nos envolvidos por seus produtos gamificados. Após a publicação de "Sabemos lo que hiciste...", vários congressistas, incluindo o atual presidente Petro, emitiram comunicados para tentar desmentir as informações. Outros solicitaram retificações. E alguns até levaram jornalistas aos tribunais.
Tanto Báez quanto Diana Salinas, diretora editorial e co-fundadora da Cuestión Pública, foram criminalmente denunciadas por difamação pelo ex-presidente do Senado por publicar em "Sabemos lo que hiciste…" seus supostos vínculos com traficantes de drogas. Em 2021, a Fundação para a Liberdade de Imprensa (Flip), que defende as jornalistas no caso, solicitou ao Ministério Público da Colômbia que a denúncia fosse arquivada por violação do direito à liberdade de imprensa. No entanto, não houve resposta, disse Báez.
"Isso significa que a investigação realmente os incomodou, que estão nos lendo", disse ela. "[O sucesso] não é medido tanto em termos de páginas [visualizadas] porque sabemos que somos um meio pequeno que não tem o alcance dos grandes meios. Mas para, nossas métricas, está muito bem. E o impacto é na realidade".
Aplicações lúdicas como "Sabemos lo que hiciste", "Juego de Votos" ou "Desencanto", que possuem um alto investimento em design e diversos tipos de interação, são produtos que demandam altos investimentos de recursos econômicos, técnicos e humanos. No entanto, segundo Báez, também são produtos mais fáceis de atrair financiadores devido à sua novidade e apelo.
"Para um meio como a Cuestión Pública, são esforços muito grandes, são custosos", disse. "Primeiro, há uma curva de aprendizado para que os jornalistas envolvidos aprendam o método. Em segundo lugar, são investigações que levam meses. E em terceiro lugar, é necessário ter uma equipe de desenvolvedores e designers de alto nível".
O meio colombiano desenvolveu uma fórmula eficaz para financiar e desenvolver investigações jornalísticas com jogos interativos, que consiste em gerar uma ideia, criar um pitch e apresentá-lo a organizações que financiam a inovação no jornalismo.
Após garantir os recursos financeiros, Báez recruta uma equipe de profissionais que formarão uma redação temporária dedicada exclusivamente ao desenvolvimento do produto. Sob essa metodologia, a Cuestión Pública, cuja equipe fixa é limitada a 20 pessoas, é capaz de desenvolver produtos inovadores sem negligenciar outras áreas de trabalho.
"É como uma redação paralela em termos de pesquisa. Você precisa contratar um exército de verificadores de fatos, porque aqui a parte de checagem de fatos é fundamental, é o que realmente vai ajustar o tamanho das descobertas jornalísticas", disse Báez. "Geralmente, para criar esses aplicativos, geramos e criamos todo um fluxo de trabalho que comunicamos a toda a equipe que integra o app, e fazemos com que funcione tal como um relógio".
A implementação dessas redações temporárias tem servido à Cuestión Pública como uma escola na qual jovens jornalistas são treinados na metodologia do meio e nas técnicas de desenvolvimento de investigações de dados. A jornalista explicou que vários membros de sua equipe se integraram após participarem da criação de produtos gamificados.
"Nem todo jornalista investigativo pode criar um 'Juego de Votos' ou 'Sabemos lo que hiciste...', porque tudo se baseia em planilhas de Excel. Portanto, quem não possui habilidades em Excel enfrenta muitas dificuldades na pesquisa", disse Báez. "Eu consigo identificar quais jornalistas têm o perfil para integrar a redação da Cuestión Pública, porque são investigadores. Quando passam por um aplicativo como 'Sabemos lo que hiciste’ ou 'Juego de Votos', já dominam o método da Cuestión Pública. Portanto, é mais fácil de integrá-los".
Desde a sua fundação em 2015, o meio de jornalismo investigativo peruano Convoca tinha como objetivo experimentar com diversas formas de narrativas digitais, incluindo jogos eletrônicos. Sua primeira abordagem foi em 2016, no contexto da mega investigação sobre o caso de corrupção transnacional Lava Jato, que incluiu um jogo de perguntas e respostas no estilo "Forca".
Em investigações subsequentes, o Convoca desenvolveu jogos interativos de crescente complexidade em design e programação, como “Ilusión Fiscal: El Juego de las Offshore” ("Ilusão Fiscal: O Jogo das Offshores"), no contexto da investigação sobre os Panama Papers.
O meio digital percebeu que, à medida que a complexidade dos jogos aumentava, também aumentavam os custos e o tempo de produção. Segundo Milagros Salazar, diretora e fundadora da Convoca, cada videogame custava entre US$ 8 mil e US$ 10 mil, e levava de um a quatro meses de trabalho, tornando-os produtos pouco viáveis para um veículo de comunicação independente.
Foi assim que surgiu a ideia de criar o Games for News, uma plataforma de criação de jogos personalizados que visa ampliar o alcance das reportagens investigativas e compartilhar conhecimento de maneira simples.
"Naquele momento, pensamos: 'por que não criamos uma plataforma intuitiva que nos permita criar mais jogos, mas no estilo dos jogos educacionais, que são simples, mas têm mensagens claras e diretas?'" disse Salazar à LJR. "A proposta básica do Games for News era permitir que você criasse um videogame sem precisar ser programador ou designer, apenas tendo uma boa história de interesse público para contar".
Após o lançamento do Games for News em 2020, com o apoio do Google News Initiative, o meio de comunicação percebeu que a ferramenta tinha potencial não apenas para apresentar seus conteúdos de maneira atrativa, mas também para fins educativos.
A Convoca incorporou o Games for News à Escola Convoca, sua divisão de treinamento em jornalismo investigativo. Eles o usaram para treinar jornalistas do Peru, por meio de iniciativas como o Investigatour Amazônia, e profissionais de outros países, como no programa Fact-Checking Mentorship Program, da International Fact-Checking Network, no qual atuaram como mentores.
"Quando ensinamos um programa de jornalismo investigativo, apresentamos o Games for News como um formato para que [outros jornalistas] contem sua pesquisa", disse Salazar. "Ele também está muito presente em workshops e congressos que organizamos".
Mais recentemente, a Convoca descobriu que o Games for News oferecia a oportunidade de gerar interesse pelas notícias entre o público mais jovem. Este ano, no contexto do 20º aniversário da publicação do Relatório da Comissão da Verdade e Reconciliação no Peru, sobre o conflito armado interno no país entre 1980 e 2000, a Convoca lançou um concurso de criação de videogames com a temática do relatório para estudantes universitários.
O objetivo, segundo Salazar, era fazer com que os jovens da geração atual lessem o documento e compartilhassem o que mais lhes chamou a atenção por meio do Games for News.
No concurso, intitulado "Verdades vs. Mentiras", participaram 20 equipes de quatro a cinco estudantes de comunicação ou jornalismo do Peru. Cinco dessas equipes chegaram à fase final, na qual receberam mentoria e treinamento da equipe da Convoca sobre o uso da plataforma. Os três primeiros lugares foram anunciados em outubro deste ano, com o jogo "En busca de la verdad" em primeiro.
"Foi uma experiência enriquecedora", disse Scarlett Cardoza, coordenadora de projetos na Convoca. "O Games for News, que oferecemos ao público em geral, é uma plataforma bastante intuitiva. É fácil de entender e a população em geral tem conseguido usá-la".
Cardoza acrescentou que o veículo está preparando um concurso semelhante, mas para estudantes do ensino médio e técnico, com o tema do bullying. Atualmente, eles estão analisando o setor de escolas no Peru e buscando parceiros para concretizar o projeto.
Enquanto isso, o Games for News está disponível para jornalistas de outros meios de comunicação e para o público em geral que deseja criar jogos interativos simples para contar suas histórias. A plataforma oferece quatro tipos de associação, incluindo uma gratuita, que também se tornaram uma fonte adicional de financiamento para a Convoca.
"Agora estamos recebendo orientação do ICFJ [International Center for Journalists], com o programa Elevate, para encontrar maneiras de monetizar o Games for News", disse Salazar. "Estamos experimentando. Ainda não podemos dizer que constitui uma fonte importante de receita, mas estamos plantando as sementes nesse caminho de diversificação".
Mas, para Salazar, além de oferecer maneiras atraentes de apresentar investigações, treinar jornalistas ou gerar receita, a gamificação também é uma maneira de impulsionar os objetivos do jornalismo da Convoca, que são fortalecer a vigilância do poder, combater a desinformação e promover mudanças na sociedade, disse a jornalista. E o fato de direcionar esses produtos gamificados para o público mais jovem contribui para sua alfabetização midiática e conscientização sobre questões de interesse público.
"Se 100 estudantes de jornalismo se envolvem na leitura do Relatório da Comissão da Verdade e consultam várias fontes, já não é apenas a pequena equipe da Convoca trabalhando em um objetivo, mas também aumenta a possibilidade de que o conteúdo seja disseminado e de que mais cidadãos conheçam o assunto", disse Salazar.