O Dia do Jornalista é celebrado no Paraguai em 26 de abril em comemoração ao dia da fundação do primeiro jornal do país após sua independência, El Paraguayo Independiente, criado em 1845.
Na mesma data, mas em 1991, o jornalista Santiago Leguizamón foi assassinado pelo crime organizado na cidade fronteiriça de Pedro Juan Caballero, departamento de Amambay. O jornalista foi atacado após deixar a estação de rádio que dirigia, Mburucuyá 980 AM, a partir da qual denunciou injustiças e crimes que vinham sendo cometidos na cidade desde então.
Até hoje não se sabe se o crime contra Leguizamón ocorreu no Dia do Jornalista como uma coincidência ou como uma mensagem clara do crime organizado, que desde então continuou a reclamar a vida de vários jornalistas e manteve muitos outros sob ameaça. Desde a morte de Leguizamón, houve pelo menos 20 assassinatos de jornalistas no Paraguai, com impunidade quase total.
Entretanto, o Dia do Jornalista em 2023 marcará um marco importante: a apresentação no Congresso paraguaio de um projeto de lei sobre a segurança dos jornalistas, no qual as organizações de liberdade de expressão vêm trabalhando há meses, após várias tentativas fracassadas de criar uma legislação para proteger a profissão jornalística.
"O Paraguai segue sem contar com uma lei de proteção de jornalistas”, disse o jornalista Dante Leguizamón, secretário-executivo da Coordenadoria de Direitos Humanos do Paraguai (Codehupy, na sigla em espanhol) e filho do jornalista assassinado, à LatAm Journalism Review (LJR). "Um projeto foi construído com bastante consenso com a sociedade civil e com algumas instituições do Estado. [...] A idéia é apresentá-lo em 26 de abril, Dia do Jornalista no Paraguai e o aniversário do assassinato de Santiago Leguizamón".
A promoção deste projeto faz parte das medidas estabelecidas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) na sentença que emitiu em dezembro de 2022, na qual considerou o Estado paraguaio responsável pela violação dos direitos humanos no caso do assassinato de Leguizamón.
Para a Codehupy, a sentença representa uma decisão histórica que pode significar um importante passo em frente na luta para que as autoridades garantam proteção a jornalistas.
"Com relação à sentença, existem decisões-chave", disse Leguizamón. "Vemos que a sentença abre uma porta muito importante para a negociação e para exigir, sobretudo do Estado, medidas para a proteção de jornalistas e para a luta contra a impunidade nos casos de [violência contra] jornalistas".
A decisão da Corte IDH também estabelece que o Estado paraguaio deve adotar medidas para fortalecer o trabalho da Mesa para a Segurança de Jornalistas no Paraguai e com ela criar um fundo "para financiar programas destinados à prevenção, proteção e assistência a jornalistas vítimas de violência".
A Mesa para a Segurança de Jornalistas é um órgão formado por instituições estatais e organizações da sociedade civil, como a Codehupy, o Sindicato dos Jornalistas do Paraguai (SPP) e a Sociedade de Comunicadores do Paraguai, e foi criado em 2016, seguindo o chamado da UNESCO para adotar estratégias e políticas para enfrentar a violência contra jornalistas.
Embora sua criação tenha sido um importante passo adiante e tenha servido para proporcionar alguma proteção a jornalistas sob ameaça, a Mesa de Segurança funciona com deficiências e seu funcionamento depende da vontade das agências envolvidas.
"O funcionamento da Mesa de Segurança ainda é muito artesanal. Ela funciona com base na pressão que podemos gerar e na boa vontade das pessoas que estão lá. Não há legislação ou regulamentação que obrigue ao bom funcionamento deste espaço", disse Santiago Ortiz, Secretário-Geral Adjunto do SSP, à LJR.
A Mesa de Segurança recebe reclamações de ameaças ou ataques contra jornalistas de todo o país e coordena ações com autoridades como o Ministério do Interior ou a Polícia Nacional para tomar medidas de proteção, que, no entanto, não são necessariamente cumpridas na íntegra, disse Leguizamón. Além disso, não tem orçamento próprio que lhe permita implementar ações como a transferência de um jornalista em perigo ou a compra de equipamentos de proteção.
"Muitas vezes, o pedido [da Mesa às autoridades] é de proteção completa e a decisão é tomada para acompanhar aleatoriamente [o jornalista] ou verificar os perímetros [ao redor de sua residência]. E há um 'vai e vem' com a Polícia Nacional", disse Leguizamón. "É uma mesa que não tem um orçamento independente. Em outras palavras, ela depende da vontade e da ação das instituições".
Além de ordenar medidas para fortalecer a Mesa de Segurança e promover a aprovação da lei de proteção a jornalistas e defensores dos direitos humanos, a Corte IDH também ordenou a reparação dos danos à família Leguizamón, bem como a criação de um grupo de trabalho para determinar as circunstâncias do assassinato do jornalista.
"Assim como o assassinato de Santiago foi um momento muito difícil e teve um impacto muito significativo na liberdade de expressão, queremos que a sentença também tenha esse impacto na proteção dos jornalistas, na luta contra a impunidade", disse Leguizamón. "Uma sentença de um organismo internacional é basicamente uma ferramenta política para continuar contestando as políticas públicas na luta pelos direitos humanos e pela proteção, neste caso, deste grupo específico que são os jornalistas".
O projeto de lei que a Codehupy e outras organizações estão trabalhando em conjunto com a Comissão de Direitos Humanos do Senado paraguaio prevê, entre outras medidas, a instalação de um mecanismo para a proteção de jornalistas com a participação direta das agências de segurança do Estado, disse Leguizamón.
Este mecanismo teria três abordagens: proteção individual para jornalistas sob ameaça, proteção coletiva, incluindo a criação de uma rede de apoio e alarme para comunicadores, e proteção social e psicossocial para ajudar a mitigar o impacto das medidas de segurança na vida e no trabalho dos jornalistas sob o mecanismo.
"Isso também seria acompanhado de um orçamento, que teríamos que fazer com que seja um orçamento flexível e com dinheiro suficiente para implementar as medidas", disse o jornalista. "Uma instituição bem construída ou sólida é inútil quando não podemos implementar efetivamente as medidas de segurança".
Dos 21 assassinatos de jornalistas no Paraguai desde a queda da ditadura militar de Alfredo Stroessner, em 1989, oito ocorreram no departamento de Amambay, a maioria deles na cidade de Pedro Juan Caballero. O caso mais recente foi o de Alexander Álvarez, produtor de um noticiário matinal na estação de rádio local Rádio Urundey, que foi atacado a tiros no dia 14 de fevereiro deste ano quando estava sentado em seu carro esperando o semáforo abrir, de acordo com o Comitê para Proteção de Jornalistas (CPJ).
Os outros jornalistas que foram mortos em Amambay são Humberto Coronel, em 2022; Leo Vera, em 2020; Gerardo Servían, em 2015; Fausto Gabriel Alcaraz, em 2014; Carlos Manuel Artaza, em 2013; Samuel Román, em 2004; Marcelino Vázquez, em 2003; e o próprio Santiago Leguizamón, em 1991.
#ALERTA #PARAGUAY | El periodista, Alex Álvarez locutor de @r_urundey conducía su vehículo esta tarde en la ciudad de Pedro Juan Caballero, cuando fue acribillado por dos sujetos. Llegó sin signos vitales al hospital, pero murió en el quirófano. pic.twitter.com/RGmcc89T27
— Voces del Sur (@VDSorg) February 14, 2023
O departamento de Amambay está localizado no norte do Paraguai, na fronteira seca com o Brasil. Sua capital, Pedro Juan Caballero, faz fronteira com a cidade brasileira de Ponta Porã, no estado de Mato Grosso do Sul.
"É a área de maior influência do crime organizado e é a área onde os níveis de homicídios são mais altos no país. Entre [a capital paraguaia] Assunção e [o departamento adjacente] Central, para cada 100 mil habitantes, há seis homicídios. Em Amambay, esse número pode chegar a 60", disse Leguizamón. “Há evidências muito importantes de que se trata de uma área extremamente complexa, uma área que tem um nível muito alto de violência e assassinatos".
As autoridades locais e federais fizeram pouco nas últimas três décadas para proporcionar segurança para a população. Os casos de assassinatos de jornalistas em Amambay gozam de total impunidade, enquanto este e outros departamentos fronteiriços do Paraguai foram designados em 2017 como "zonas silenciadas" para a prática do jornalismo pela CIDH.
A situação em Amambay tem a ver com o avanço do crime organizado, que tem cooptado instituições estatais, incluindo a Polícia Nacional, o Ministério Público e até mesmo o Poder Executivo, explicou Leguizamón. O presidente Andrés Rodríguez, autor do golpe contra o regime de Stroessner, foi ligado a casos de tráfico de drogas e Horacio Carter, que governou o Paraguai de 2013 a 2018, foi indiciado em 2022 pelos Estados Unidos por corrupção e ligações com o crime internacional.
"Isto mostra a força do crime organizado em nosso país, o que torna o exercício da liberdade de expressão bastante condicionado por estes níveis de impunidade da violência e pela falta de proteção específica", disse Leguizamón.
Alguns dos assassinatos de jornalistas em Pedro Juan Caballero são até previsíveis, mas dado o poder do crime organizado na região, as medidas de proteção oferecidas pelas instituições não são suficientes.
"Eu poderia lhes dizer, com muito pesar, mas sem medo de estar errado, que nos próximos três anos provavelmente mais jornalistas serão mortos em Pedro Juan Caballero", disse Leguizamón. "O trabalho que Codehupy e o Sindicato dos Jornalistas têm feito na Mesa de Segurança nos diz que no momento há pelo menos dois jornalistas ameaçados de morte na área e para os quais existem algumas medidas de segurança, que claramente têm sido historicamente insuficientes".
Alguns jornalistas até optam por recusar a proteção por desconfiança em relação às autoridades. Foi o caso de Humberto Coronel, que havia denunciado ameaças de morte antes de seu assassinato. Coronel, que apresentava um programa de notícias na Rádio Amambay e investigava casos de corrupção e crime organizado, recusou a custódia policial a ele atribuída.
Para o Sindicato dos Jornalistas do Paraguai, a violência contra jornalistas na região tem a ver com o modelo econômico e político do país, que se caracteriza pela concentração da riqueza nas mãos de poucos.
"É um modelo muito excludente baseado na acumulação fraudulenta de riqueza", disse Ortiz. "Quando você denuncia isto ou denuncia os privilégios de certos setores, você acaba sendo ameaçado por estes setores, que são muito poderosos, principalmente o crime organizado. E em algumas áreas isto é mais evidente, como é o caso de Pedro Juan Caballero e Amambay".
No caso de Alexander Álvarez, a polícia disse que as evidências apontavam para o fato de que o ataque que tirou a vida do jornalista era dirigido a seu irmão, que supostamente estava envolvido em atos ilícitos, e descartou desde o início que o crime pudesse estar relacionado ao trabalho jornalístico.
"Este é o principal problema quando falamos de impunidade. O Estado não investiga e diz que os assassinatos têm a ver com outras coisas", disse Leguizamón. "Essa é sempre a 'resposta' que é usada para desacreditar, embora haja uma instrução da Procuradoria Geral do Estado que diz que a hipótese principal deve estar relacionada com o trabalho. A hipótese principal tem que ser essa, e isto [as investigações] não se traduz necessariamente nesse sentido".
Em muitos dos casos, além de negligência e possível cumplicidade, há uma falta de conhecimento por parte de juízes e promotores sobre crimes contra a liberdade de expressão, acrescentou Ortiz. Com relação ao assassinato de Coronel, a promotora responsável pelo caso culpou o próprio jornalista pelo crime por se recusar a receber a custódia policial. A promotora disse que Coronel deveria ter "sido mais cuidadoso" após receber ameaças e que "uma pessoa ameaçada deveria se resguardar", "tentar resolver as coisas" e não "se entregar de bandeja" ao crime.
"O Ministério Público tem uma instrução para seus funcionários sobre como agir quando há um crime contra um jornalista, que diz que entre as linhas de investigação, a que deveria ser esgotada em primeira instância é a que está ligada ao seu trabalho jornalístico", disse Ortiz. "A senhora [promotora no caso Coronel] não levou isso em conta e faz declarações infelizes e inapropriadas. Essa falta de capacidade também é um motivo real da impunidade".