Os preocupantes números de violência contra a imprensa no México – apontado por várias organizações como um dos países mais perigosos para a prática do jornalismo – tornam-se ainda mais dramáticos quando se faz um paralelo com os números da impunidade. Segundo a organização Artigo 19 do México, a impunidade para crimes contra jornalistas no país permanece em 99,13%, ou seja, uma impunidade "quase absoluta".
"Em um contexto de violência irreprimível contra a imprensa, o sucesso da política de prevenção está no fato de enviar uma mensagem contundente a qualquer um que vitimar jornalistas: 'a impunidade não será tolerada'", diz o relatório do Protocolo da Impunidade em Crimes contra Jornalistas da Artigo 19, publicado em fevereiro.
Por meio de seis casos representativos de violência contra jornalistas no país, a organização analisa os diferentes problemas, obstáculos e deficiências na investigação desses crimes que acabam criando um "padrão de impunidade".
Uma situação de gravidade, se levarmos em conta que 123 jornalistas foram assassinados no México desde o ano 2000 até fevereiro de 2019 e 24 outros comunicadores estão desaparecidos desde 2003. A esses números são adicionados casos de agressão física, prisões arbitrárias, assédio, ameaças e processos judiciais que são alguns dos crimes mais comuns contra jornalistas – além de homicídio e desaparecimento forçado –, de acordo com a Artigo 19.
"No contexto atual de violência generalizada contra jornalistas no México, cuja expressão mais séria se materializa na realização de vários crimes contra suas vidas, liberdades pessoais e integridades pessoais, a impunidade prevalecente no Estado mexicano o torna responsável por violações dos direitos humanos devido à ausência de um recurso judicial efetivo que garanta a determinação da verdade, o acesso à justiça e a reparação integral e efetiva dos danos", declara o relatório.
Ainda que a organização reconheça como importante a construção de um Protocolo Homologado para a Investigação de Crimes cometidos contra a Liberdade de Expressão pela Procuradoria Especial para o Atendimento a Crimes de Liberdade de Expressão (Feadle, na sigla em espanhol) e pela Procuradoria Geral da República (PGR), considera que ainda há muito a ser feito.
De fato, de acordo com dados da Artigo 19, a Feadle iniciou 1.140 investigações entre 2010 e 2018, para diferentes crimes como homicídios, ameaças, abuso de autoridade e roubo, entre outros. Destes, apenas 186 chegaram a juízes penais, o que representa 16,3%. No entanto, desses casos, apenas 10 condenações foram obtidas, representando 0,87%.
Para os homicídios, a Feadle registrou 89 casos de jornalistas, ainda que para a procuradoria sejam 45 os casos ligados ao trabalho jornalístico. No entanto, só foram abertas 29 investigações, e apenas uma sentença condenatória foi alcançada, acrescentou a Artigo 19.
"A eficácia na punição com relação a este crime é de 2,2% em relação ao universo histórico de casos que a FEADLE considera relacionados ao exercício informativo da vítima; e de 1,12% em relação ao total de homicídios contra jornalistas", informou a organização.
Entre os casos analisados para este relatório estão dois assassinatos: o de Moisés Sánchez Cerezo e o de Rubén Espinosa, ambos do estado mais perigoso para o jornalismo no país: Veracruz.
O corpo de Sánchez Cerezo foi encontrado em 25 de janeiro de 2015, depois de vários dias desaparecido após homens armados o levarem de sua casa em 2 de janeiro. Embora atualmente um dos identificados como autor material do crime esteja na prisão e duas pessoas tenham sido reconhecidas como responsáveis por não evitar o que aconteceu com o jornalista, ainda há muito a ser feito, de acordo com a Artigo 19.
Assim, por exemplo, não foram identificados nem todos os autores materiais nem todos os intelectuais, apesar do fato de que, segundo a organização, existam denúncias sobre o suposto envolvimento do então prefeito de Medellín de Bravo, onde Sánchez dirigia um jornal. A organização também apontou várias deficiências no trabalho da Feadle, que desde o início se recusou a investigar o caso. Embora a procuradoria esteja com o caso agora, ela não tomou "medidas efetivas" para corroborar o que foi dito pela única testemunha do crime, de acordo com a Artigo 19.
A Artigo 19 também criticou o que chamou de "tribunal midiático" da Procuradoria Geral quando o corpo de Sánchez foi encontrado. Embora a organização considere que é vital para a opinião pública saber o que acontece em casos relevantes, ela assegurou que essas declarações podem ter uma motivação diferente da de oferecer informações.
"No México, as acusações públicas tornaram-se uma das formas mais eficazes de reduzir o impacto político gerado pelo assassinato de um jornalista, especialmente quando esses atos podem ter como autores ou participantes agentes estatais", disse a Artigo 19.
O segundo assassinado destacado, o do fotojornalista Rubén Espinosa, marcou o país. Espinosa chegou à Cidade do México vindo de Veracruz porque temia por sua vida. No entanto, a violência chegou ali em 31 de julho de 2015, depois que pelo menos cinco pessoas entraram em um apartamento onde ele estava com quatro mulheres. Todos foram torturados e depois baleados na cabeça, de acordo com a Artigo 19.
Neste caso, assim como no de Sánchez e de outros jornalistas, as vítimas caem na estigmatização e criminalização, ou na deslegitimação do trabalho jornalístico como motivação dos crimes, segundo o relatório.
Para este crime múltiplo, as autoridades começaram a popularizar uma teoria que foi mantida até hoje e que "garantiu a impunidade", de acordo com a Artigo 19. Esta hipótese envolve roubo, serviço sexual e tráfico de drogas.
Até agora, há três pessoas acusadas do crime, mas apenas uma sentença. A Artigo 19 recomendou que, para acabar com a impunidade neste caso, é necessário, entre outras medidas, mudar toda a equipe que conduz a investigação e envolver "pessoas verdadeiramente treinadas em violência de gênero e violência contra defensores de direitos humanos e jornalistas, nos âmbitos do ministério, da perícia e da polícia".
O relatório também incluiu o caso de Pedro Canché, jornalista que foi "preso arbitrariamente" por nove meses no estado de Quintana Roo em 2014 acusado de sabotagem, "apenas por cobrir um protesto social", disse a Artigo 19.
Os outros casos foram os de Alejandra Rodríguez, vítima de agressões físicas e sexuais e detida arbitrariamente na Cidade do México em 2013; de Aldo Sotelo, vítima de agressões físicas pela polícia da capital em 2013, de quem havia documentado "atos arbitrários e ilegais"; e do portal Sinembargo.mx, que foi atacado e retirado do ar em 2014 e cujos colaboradores foram vítimas de ameaças, intimidações e campanhas de difamação.
O relatório culmina com uma série de recomendações para a Feadle, a comissão de segurança nacional, além de promotorias locais, comissões de direitos humanos, poderes executivos locais e federais, poderes judiciais locais e federais, secretarias locais de segurança e, por fim, meios de comunicação e jornalistas.
A impunidade no México tem sido um problema já apontado por organizações como o Comitê para a Proteção dos Jornalistas (CPJ). O CPJ realiza anualmente o Índice Global de Impunidade, no qual analisa e classifica os países onde os assassinos de jornalistas são livres. O México aparece há 11 anos neste índice e no mais recente (2018) ficou em sétimo lugar entre 14 países. Foi a pior colocação no continente americano, seguida pela Colômbia e pelo Brasil.
A proteção de jornalistas no México também tem sido tema de preocupação para algumas organizações. No dia 4 de março, deputados e membros de organizações civis anunciaram o reinício de mesas de trabalho em que se discutem mecanismos de proteção para estes profissionais que sejam incluídos em uma proposta de lei, informou El Diario. As mesas vão acontecer em março e abril, acrescentou o site.
O Centro Knight tentou entrar em contato com representantes da PGR e da Feadle, mas não obteve resposta até a publicação desta notícia.
Veja o relatório completo da Artigo 19 aqui.