A América Latina é uma região complexa onde ocorrem fenômenos sociais que merecem atenção internacional, como o fortalecimento do autoritarismo, as violações dos direitos humanos e o crescimento da violência.
Mas se a mídia internacional pretende cobrir esta região, deve abordá-la consciente de que é uma área diversa, e então buscar identificar padrões comuns entre diferentes países, encontrar pontos de conexão com as realidades de outras regiões, estabelecer contato com jornalistas locais e colaborar com eles.
Estas foram algumas das recomendações dadas a jornalistas internacionais por María Teresa Ronderos, diretora do Centro Latino-Americano de Investigações Jornalísticas (Clip) na Colômbia; por Silvia Viñas, apresentadora e produtora executiva do podcast "El Hilo", da Radio Ambulante; e Alejandra Sánchez Inzunza, cofundadora e diretora da Dromómanos, no México, durante o painel “América Latina: Como cobrir uma região que está sempre em crise”, realizado como parte do Festival Internacional de Jornalismo 2023, em Perúgia, na Itália.
O painel, que aconteceu no sábado, 22 de abril de 2023 e foi promovido pela Radio Ambulante, foi moderado por Eduardo Suárez, diretor editorial do Instituto Reuters para o Estudo do Jornalismo.
“A América Latina é uma região muito importante em termos de jornalismo e de como o jornalismo é consumido. É muito especial no sentido de que é um continente muito jovem, e portanto há grandes audiências jovens, e também as notícias são consumidas através de celulares e redes sociais. E isso apresenta alguns desafios para nós como jornalistas", disse Suárez no início do painel.
Embora a América Latina seja uma região diversa com grandes diferenças entre os países, também existem padrões e problemas estruturais que afetam toda a região. Há também atores internacionais que têm impacto na realidade latino-americana. Para cobrir melhor a região do exterior, é importante que os jornalistas identifiquem esses padrões e fatores, recomendou Ronderos.
“Acho que temos que identificar esses atores, identificar esses problemas estruturais e ver o que há de comum em toda essa região, porque só assim podemos começar a lidar com isso”, afirmou. “Às vezes os problemas não podem ser resolvidos dentro do país, justamente porque há tantas influências internacionais. Mas se você os vê e os torna visíveis, fica mais fácil entender os problemas”.
Uma maneira eficaz de identificar problemas regionais é ouvir os próprios jornalistas latino-americanos e abordar as organizações que fazem jornalismo internacional na região com um ponto de vista latino-americano. Embora os jornalistas internacionais às vezes possam ver coisas que são difíceis de ver por dentro, um equilíbrio entre os dois pontos de vista pode ajudar a melhorar a cobertura, disse Ronderos.
“Às vezes é difícil para a mídia internacional cobrir a América Latina, porque todos nós temos uma visão das coisas de fora”, disse ele. “É muito interessante, por exemplo, ler o El País América, porque é uma mistura entre ver a América Latina de fora e, ao mesmo tempo, com cobertura feita por latino-americanos. Então é como ter o melhor dos dois mundos".
Sánchez Inzunza concordou que chegar aos jornalistas locais é uma forma eficaz de cobrir a América Latina. A jornalista recomendou que seus colegas de outros continentes colaborem com os jornalistas independentes latino-americanos, mas não apenas utilizando seus serviços como fixers, e sim para aprender profissionalmente com eles e ajudá-los a publicar seus trabalhos na mídia internacional.
A jornalista contou que a Dromómanos, produtora de projetos jornalísticos especializada em trabalhos regionais e reportagens de longa duração, atualmente trabalha em parceria com a mídia independente e jornalistas locais de vários países da América Latina na cobertura de temas que, na opinião da organização, afetam seriamente a região, como autoritarismo, mudanças climáticas, violência e política sobre drogas. O objetivo, disse, é dar um olhar regional e internacional a essas coberturas.
"Os jornalistas freelancers nos ajudaram muito a entender melhor os problemas, não apenas para repetir o que está acontecendo, mas também para aprender muito com nossos colegas, com jornalistas locais que estão em risco, porque a América Latina é uma das regiões mais perigosas do mundo para ser jornalista”, disse Sánchez Inzunza. “Aprendi coisas sobre El Salvador com [o diretor do El Faro] Carlos Dada, aprendi coisas sobre a Colômbia com María Teresa [Ronderos]. E isso é super importante."
Viñas também se referiu ao risco enfrentado pelos jornalistas locais. A jornalista disse que os repórteres internacionais devem ter cuidado para não colocar em maior risco seus colegas latino-americanos ao colaborar com eles em coberturas que tenham a ver com violência ou narcotráfico.
Ela disse que é preciso estar ciente de que, ao revelar casos sobre essas questões, os jornalistas locais podem ser expostos e correr o risco de represálias quando a cobertura for publicada.
“Precisamos ter muito cuidado com o que pedimos aos jornalistas locais, porque vamos embora, enquanto eles nos deram suas fontes, eles nos levaram a lugares, e são seus próprios vizinhos que estamos expondo, como traficantes de drogas.” disse Viñas. “Temos que ter cuidado e não tentar ir para a América Latina, nos ver como heróis por cobrir essas questões e depois voltar para nossas casas confortáveis na Europa, enquanto o jornalista local fica com os perigos”.
Ronderos mencionou alguns dos projetos do Clip nos quais foram explorados fenômenos que atravessam vários países da América Latina. Um deles é a investigação "Uma guerra viciante", que o Clip produziu em parceria com a Dromómanos e mais nove veículos. Nesta reportagem transfronteiriça, jornalistas de seis países latino-americanos investigaram a pegada que a luta contra as drogas deixou na região nos últimos 50 anos.
Outro exemplo é "O negócio da repressão" uma investigação que abordou histórias de vítimas de armas não letais utilizadas em atos de repressão aos protestos recentes na América Latina.
Ronderos também mencionou a reportagem "O Projeto Rafael", na qual uma aliança internacional de 30 meios de comunicação, liderada pela organização Forbidden Stories, da França, assumiu a tarefa de dar continuidade ao trabalho do jornalista colombiano Rafael Moreno, assassinado em outubro de 2022, em uma investigação sobre desvio de recursos públicos e abusos na cidade de Córdoba, na Colômbia.
“Acho que quando você está cobrindo uma região e fazendo jornalismo transnacional, você tem que trabalhar com outras pessoas que estão fazendo a mesma coisa, então você não está mais competindo com elas. Agora é algo colaborativo, e essa é a única maneira de fazer esse tipo de jornalismo, e isso é lindo", disse Sánchez.
Suárez disse que a cobertura da pandemia tem sido como a mãe de todas as coberturas transnacionais, pela forma como a mídia latino-americana a abordou desde diferentes frentes. O moderador citou o caso do episódio do podcast El Hilo publicado no início da emergência sanitária, em 2020, sobre a devastação deixada pela Covid-19 em Guayaquil, Equador.
Viñas acrescentou que, com este episódio, a equipe da Radio Ambulante ficou mais consciente de como os países da região compartilham problemas semelhantes e como a cobertura de uma tragédia em um país pode antecipar como cobrir situações semelhantes em outros países.
O referido episódio, um dos primeiros após o lançamento de "El Hilo", foi produzido quase no último minuto devido ao imprevisto da emergência e testou a eficiência da rede de correspondentes da Radio Ambulante na América Latina, disse a produtora.
“Tínhamos visto naquela semana que havia muitas notícias sobre Guayaquil, no Equador, e como a cidade estava desabando. Não havia espaço nos hospitais, não havia espaço nos necrotérios e era terrível. Foi realmente a primeira cidade da América Latina a ver e viver isso”, disse. "Foi como um alerta de 'isso é o que pode vir para o resto da região’, porque compartilhamos os mesmos problemas em nossos países"
Pouco se fala sobre a América Latina na mídia mundial de outros idiomas além do espanhol e isso tem a ver com razões históricas, segundo os palestrantes. Particularmente na Europa, disse Ronderos, os países estão interessados em nações de outras regiões com as quais têm algum vínculo histórico. No caso da América Latina, os únicos países europeus com os quais a região compartilha esse vínculo são Espanha e Portugal.
Na opinião do jornalista colombiano, para que a mídia internacional tenha interesse em cobrir a América Latina, ela deve encontrar um vínculo com a realidade de seus próprios países.
“Você teria que encontrar o que poderia interessar àquele país [europeu] para poder fazer essa conexão, porque, via de regra, acho que existem comunidades de interesses e é difícil reverter isso”, disse Ronderos , quando perguntado por um pessoa da Bélgica sobre por que é difícil para a mídia europeia se interessar por questões latino-americanas.
No entanto, a relação da América Latina com outras regiões poderia ser mais produtiva. Sánchez Inzunza disse que é possível para os jornalistas latino-americanos estabelecer alianças de colaboração com colegas do continente africano, onde estão ocorrendo fenômenos semelhantes.
“Estamos enfrentando os mesmos problemas, estamos enfrentando o colonialismo, o racismo. Temos as mesmas coisas, estamos enfrentando o narcotráfico. As raízes são semelhantes entre o que está acontecendo no Brasil e o que está acontecendo na Guiné Equatorial”, disse a jornalista. “Acho que temos que ter esse tipo de projeto. Esses lugares são bons para conhecer pessoas, para começar a trabalhar com esse tipo de colaboração”.
A liderança autoritária na América Latina é um dos poucos temas que atrai a atenção dos jornalistas internacionais. Ronderos citou algumas recomendações que, em sua opinião, os colegas de outros continentes devem levar em conta ao cobrir esses governos. A segurança, disse ela, deve ser uma questão prioritária, desde a segurança cibernética até a integridade física.
Da mesma forma, Ronderos pediu aos jornalistas internacionais que ajudem os colegas latino-americanos que correm risco a publicarem as suas matérias anonimamente com o apoio de grandes meios de comunicação.
“Há pessoas que não poderiam publicar em seu próprio nome, em seu próprio país, porque isso poderia levá-los à prisão, ou perseguidos, ou forçados ao exílio”, disse Ronderos. “Fiz isso na Colômbia, onde tivemos uma época terrível em que jornalistas foram mortos. Trabalhamos em conjunto com muitos dos nossos colegas dessas regiões e juntos fizemos as matérias. [...] Isso os protege e eles podem publicar suas matérias”.
Ronderos disse que a melhor estratégia para cobrir o autoritarismo é tentar encontrar suas origens e denunciá-las por meio do jornalismo. Uma forma de fazer isso, disse, é investigar quem produz e dissemina narrativas de desinformação que confundem a população e dão força aos regimes autoritários. Isso inclui investigar que maquinário é usado para criar essas narrativas, como são produzidas e quem está ganhando dinheiro com elas.
“Acredito firmemente que esse autoritarismo vem de narrativas que estão sendo falsamente e de forma massiva produzidas na América Latina. [Esses regimes] se tornaram muito fortes na América Latina, alguns vêm da esquerda, outros vêm da direita, se existe uma direita e uma esquerda, não sei mais, mas estão todos criando confusão”, disse.
Muitas das narrativas que promovem a desinformação em regimes autoritários são disseminadas pela internet. Sánchez Inzunza destacou que a Dromómanos está trabalhando com jornalistas de dados e especialistas em tecnologia para tentar entender a violência digital e desenvolver ferramentas para combater esse tipo de violência e o maquinário que a produz.
“A violência digital causa exílios e causa mortes. E se [o presidente de El Salvador, Nayib] Bukele disser que Juan Martínez [D'Aubuisson], um jornalista extraordinário, é membro de uma gangue, este pode ser assassinado”, disse ele. “É incrível a quantidade de dinheiro e pessoas trabalhando para gerar desinformação e informações falsas para dividir e polarizar a região. Talvez não tenhamos a solução, mas temos que buscar ideias e tentar”.