A cada nova eleição, uma reportagem é obrigatória nas redações brasileiras: quão rico os candidatos declaram ser. Isso porque todos eles precisam declarar o seu patrimônio à Justiça Eleitoral e esses dados são de acesso público na internet.
Isso só é possível porque a Justiça Eleitoral brasileira disponibiliza esse e outros dados sobre todos os políticos que se candidatam a algum cargo público no Brasil, do presidente da República a vereador. Dessa forma, o eleitor pode saber mais sobre os candidatos, incluindo informações sobre doações eleitorais e gastos de campanha
O sistema é tão simples que em apenas dois minutos, por exemplo, é possível descobrir que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva declarou bens totais no valor de BRL 7.423.725,78 quando se candidatou em 2022. Em 2006, quando se candidatara à reeleição, seu patrimônio totalizava BRL 839.033,52. Lula ficou, portanto, oito vezes mais rico em 16 anos.
Mas nem sempre foi assim. Até 2004, o sistema da Justiça Eleitoral não estava na internet, o que praticamente inviabilizava esse tipo consulta. Além disso, na ausência de um protocolo, que só seria estabelecido anos depois com a Lei de Acesso à Informação, obter dados públicos era quase impossível pois dependia da boa vontade do servidor público de plantão.
Há 20 anos, em 20 de junho de 2004, uma série de reportagens publicadas pelo jornal O Globo, do Rio de Janeiro, começou a mudar essa história. Um grupo de sete jornalistas teve acesso à declaração de bens que os deputados eleitos para a Assembleia Legislativa do estado (Alerj) informaram ao Tribunal Regional Eleitoral (TRE-RJ). Assim, eles puderam verificar a evolução patrimonial de cada deputado estadual, algo inédito até então no jornalismo do país.
A série de reportagens “Os Homens de Bens da Alerj” revelou o incrível enriquecimento de 113 deputados a partir do exercício dos mandatos. Vinte e sete deles aumentaram os seus patrimônio em mais de 100% entre 1996 e 2001. Houve casos de crescimento de mais de 1.500%. O trabalho inovador rendeu aos autores o Prêmio Esso de Jornalismo e o Prêmio Internacional de Jornalismo Rey de España, entre outros.
Na época, os dados referentes ao patrimônio dos políticos eram guardados em papel num arquivo físico na sede do Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro. O presidente do órgão concedeu o acesso dos repórteres ao local. Nas eleições seguintes, os dados passaram a ser publicados na internet e a forma de cruzamento dos dados inaugurada pela equipe do Globo se tornou rotina em outras redações do país.
E por que ninguém fez isso antes? Embora os dados fossem públicos, a ausência de uma legislação que regulamentasse o acesso à informação representava um obstáculo significativo. O processo burocrático e incerto para obter autorização da autoridade competente desencorajava os jornalistas de buscar essas informações. Além disso, mesmo após obter a autorização, não havia garantia de que os dados resultariam em uma matéria jornalística. O trabalho do Globo mostrou que valia sim a pena investir tempo e recursos nesse estilo de apuração.
“Não tínhamos a real dimensão do que estávamos fazendo. Foram oito meses de investigação. No final, foi um legado para o jornalismo e um exemplo de transparência que gerou uma transformação para fora da redação,” disse à LatAm Journalism Review (LJR) a jornalista Angelina Nunes, que liderava a equipe de repórteres na época e atualmente está à frente do Programa Tim Lopes da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji).
Parece incrível, mas em 2004 o jornalismo de dados ainda não contava com as ferramentas avançadas e automáticas que temos hoje. Coube ao então repórter Dimmi Amora, hoje diretor e fundador da Agência Infra, a hercúlea missão de tabular os dados obtidos, transformando uma pilha de papéis desorganizados numa planilha de Excel com milhares de linhas. Um trabalho que exigiu muita paciência e atenção aos detalhes porque toda a entrada de dados era feita manualmente. O esforço, no entanto, superou todas as expectativas. Com os dados organizados, os jornalistas puderam identificar padrões e tendências que antes eram invisíveis.
"Uma das coisas que fizemos foi comparar alguns índices econômicos na época. Analisamos valores do período, inflação, rendimento do título do tesouro, entre outros, para termos um parâmetro e dizer que um grupo específico de deputados teve um crescimento patrimonial muito além do que seria normal para uma pessoa comum," disse Amora à LJR.
A repórter Maiá Menezes, que hoje é editora adjunta de Política no Estadão, ficou responsável por confrontar os dados brutos com a vida real dos deputados que mais haviam enriquecido no exercício do mandato, percorrendo os seus redutos eleitorais. Descobriu que um dos deputados mais proeminentes na época havia construído uma mansão num terreno declarado por uma fração do valor real. A situação sugeria que o deputado poderia ter subestimado o valor do terreno na declaração pública, possivelmente para pagar menos impostos ou para ocultar parte de seu patrimônio real.
“Era uma selva (de dados) e nós éramos os desbravadores, capinando informação. A apuração tradicional continua sendo essencial, ou seja, ir para rua sem depender apenas das versões oficiais. Vejo o jornalismo de dados com respeito imenso, tanto o que se pratica dentro das redações e como o desenvolvido nas novas iniciativas e coletivos jornalísticos. Mas o que me coube naquele momento, para mim continua sendo, o diamante da produção para quem é repórter que é ir além dos números, investigar, conversar com pessoas, verificar os endereços mencionados nos documentos e buscar informações diretamente,” disse Menezes à LJR.
Nunes lembra que a equipe trabalhou quatro meses levantando os dados e documentos antes de efetivamente vender a pauta no jornal. Esse trabalho ocorria nas poucas horas vagas entre uma apuração e outra do dia a dia. Só quando as planilhas mostraram o inequívoco potencial jornalístico dos dados que os repórteres puderam se dedicar oficialmente à investigação.
“A gente não conseguiria emplacar uma ideia de pauta sem ter pelo menos um indício muito forte. A partir do momento que Dimmi coloca tudo na tabela, aí saltam as histórias, e a gente vendeu para os editores. É nesse momento que passamos a fazer um rodízio entre nós, para dar conta da investigação e da cobertura do dia a dia,” lembra Nunes.
Legado duradouro
Um dos desafios da série de reportagens Os Homens de Bens da Alerj foi não se deixar levar pela empolgação inicial com as primeiras descobertas e manter a calma para checar os dados e avaliar cada caso cuidadosamente. Apesar de muitos casos parecerem estranhos e levantarem suspeitas de enriquecimento ilícito, os repórteres descobriram que alguns eram de fato compatíveis com o patrimônio dos políticos.
“Eles tiveram um cuidado extremo de não acusar ninguém. Em nenhum momento, o leitor encontra a palavra enriquecimento ilícito, eles falam em evolução patrimonial. E obtiveram resposta de todos os citados, o que é bastante raro num caso como este,” disse à LJR o jornalista Marcelo Soares, um dos pioneiros do jornalismo de dados no Brasil que atuou como consultor informal da equipe.
“Estabelecemos que, como o tema era muito sensível, qualquer informação precisava ser cruzada com três fontes para evitar erros, como homônimos, por exemplo, e outros. No final, publicamos 70% do total de informações que obtivemos por zelo e cuidado,” disse Nunes.
A reportagem desencadeou um movimento para a abertura de informações em vários níveis. A Abraji iniciou uma campanha pela criação de uma lei que assegurasse a transparência de documentos públicos. Isso foi fundamental para a concepção da Lei de Acesso à Informação (LAI), que foi promulgada em 2011 e garante a todos os cidadãos o direito de solicitar e obter informações de órgãos e entidades públicas.
“Foi uma reportagem inovadora e continua sendo até hoje. O time conseguiu mostrar para que servem os dados e aplicá-los na vida prática. Eles combinaram os melhores métodos de apuração. Construíram uma base de dados completa e que não existia, e checaram todas as informações com rigor,” disse Soares.
“O que fizemos há 20 anos fez parte da evolução da democracia mesmo. Dados considerados absolutamente públicos e essenciais estavam fechados e nós conseguimos fazer um esforço para que todos tivessem acesso,” disse Menezes.
Além de Nunes, Amora e Menezes, também participaram da investigação os repórteres Alan Gripp, Carla Rocha, Flávio Pessoa e Luiz Ernesto Magalhães.