O México é um dos países mais letais para exercer o jornalismo. Esse fato foi repetido nos últimos anos por diferentes organizações defensoras da liberdade de imprensa tanto do país como do exterior.
No entanto, o “ciclo letal de violência e impunidade” que vive a imprensa mexicana chegou a níveis tão altos que, para o Comitê para a Proteção dos Jornalistas (CPJ), esse assunto deve se tornar uma prioridade para o Governo mexicano.
Essa foi a razão para a publicação do informe especial “Sem Desculpas: México deve quebrar o ciclo de impunidade em assassinatos de jornalistas”, o qual será apresentado oficialmente no estado mexicano de Veracruz neste 3 de maio, no marco do Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, proclamado assim pela Assembleia Geral da ONU de 1993.
“Em 45 dias deste ano, quatro jornalistas foram assassinados e outro jornalista foi salvo por um milagre depois de ser baleado. O México tem um dos mais altos números de assassinatos e desaparecimentos. Entre jornalistas mortos e desaparecidos são 103, e mais quatros trabalhadores da mídia. Isso contando confirmados e não confirmados”, disse Carlos Lauría, coordenador sênior do programa do CPJ para as Américas, ao Centro Knight. “O fato de os casos não serem resolvidos, e perpetuarem o clima de impunidade que deixa jornalistas vulneráveis, nos fez pensar há algum tempo que tínhamos que fazer um relatório”.
Segundo números da organização, desde 1992, o ano em que começaram a manter registros, 40 jornalistas foram mortos no México por razões com relação ao exercício da profissão confirmada. No entanto, na introdução do relatório, Lauría assinala que o CPJ já registrou 50 homicídios de jornalistas no país desde 2010, entre confirmados e sem confirmação.
“Em praticamente todos os casos de jornalistas assassinados em represália direta por seu trabalho informativo, a justiça segue ausente e a impunidade continua sendo a norma”, disse Lauría na introdução.
Sobre a falta de justiça destes casos, Lauría ressalta como a pontuação de impunidade do país “aumentou mais que o dobro desde 2008”, ano em que a organização divulgou pela primeira vez o Índice Global de Impunidade. Neste índice, que lista os países nos quais os assassinos de jornalistas estão livres, o México ocupou o sexto lugar em 2016.
O relatório continua assinalando que, nos poucos casos em que houve capturas e condenações, estas se “limitam” aos autores materiais, deixando os autores intelectuais impunes.
“Ao não determinar um vínculo claro com a atividade jornalística nem prover nenhuma motivação para os assassinatos, a maioria das investigações continua rodeada de opacidade.
Para refletir esta situação, o informe detalha os assassinatos de José Moisés Sánchez Cerezo, Marcos Hernández Bautista e Gregorio Jiménez de la Cruz. “Os três produziram avanços importantes, mas os casos não foram totalmente resolvidos. Isso marca a disfunção do sistema de justiça criminal, o que obviamente deixa os jornalistas em um estado muito vulnerável”, disse Lauría ao Centro Knight.
No caso de Sánchez Cerezo, um relatório da Comissão Estatal para a Atenção e a Proteção dos Jornalistas (CEAPP) assinala que “várias linhas de investigação foram insuficientemente examinadas”, segundo o CPJ. Uma destas linhas apontaria para um suposto envolvimento do então governador de Veracruz, Javier Duarte de Ochoa. O relatório da CEAPP também detalha como as autoridades “medidas que poderiam ter assegurado a prisão de suspeitos foram adiadas ou não foram tomadas”, adicionou o CPJ.
Sánchez Cerezo foi retirado à força de sua casa em Medellín de Bravo no dia 2 de janeiro de 2015. Seu corpo foi encontrado decapitado e mutilado três semanas depois, em uma via a 25 quilômetros do município onde vivia.
Neste homicídio e “em um acontecimento pouco usual”, segundo o CPJ, as autoridades prenderam os supostos autores materiais e identificaram o suposto autor intelectual - o então prefeito de Medellín de Bravo, Omar Cruz Reyes. No entanto, atualmente só há um preso, que confessou ter participado do sequestro de Sánchez Cerezo.
O ex-prefeito Cruz está foragido, enquanto que outra pessoa envolvida foi deixada em liberdade em novembro de 2015, por falta de provas suficientes, e fugiu meses depois.
Ainda que o assassinado de Hernández Bautista, janeiro de 2016, tenha resultado em uma sentença de 30 anos de prisão contra um ex-comandante de polícia acusado como autor material, não foi possível identificar os autores intelectuais.
O homicídio do jornalista, no entanto, teve um impacto em Santiago Jamiltepec, Oaxaca, onde ocorreu. Os jornalistas locais não quiseram cobrir a morte e a editora do jornal para o qual Hernández trabalhava disse ao CPJ que muitos dos repórteres se negam a cobrir temas relacionados com o crime.
Gregorio Jiménez sem dúvida marcou a comunidade jornalística. Após seu cruel assassinato, em fevereiro de 2014, sua família continua a ter proteção policial, e ainda que os acusados de cometer o crime continuem presos, a família do jornalista insiste que tem medo.
O caso dele e as falhas na investigação levaram um grupo de 16 jornalistas a viajarem para Coatzacoalcos, Veracruz, para entender o que aconteceu. As descobertas do grupo foram apresentadas em um relatório que chegou até a Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
O relatório do CPJ ressaltou que dois dos três casos ocorreram no estado de Veracruz,”uma das regiões mais mortais do mundo para o exercício do jornalismo”. Segundo o CPJ, entre 2010 e 2016, pelo menos seis jornalistas foram mortos “em represália direta a seu trabalho informativo”. Estes anos foram os do mandato do ex-governador Javier Duarte de Ochoa, que renunciou ao cargo em outubro de 2016, após denúncias de maquiagem de fundos e supostos vínculos com o narcotráfico.
Duarte também foi acusado de permitir um clima de impunidade na violência contra jornalistas, segundo o CPJ. O ex-governador foi capturado na Guatemala no dia 15 de abril, mas ainda não foi extraditado para o México.
O CPJ também apresenta no relatório algumas tentativas do Governo mexicano para reverter a situação, como a implementação da Procuradoria Especial para Crimes contra a Liberdade de Expressão (Feadle), as reformas constitucionais que dão mais autonomia ao órgão e o Mecanismo de Proteção para Pessoas Defensoras de Direitos Humanos e Jornalistas.
No entanto, o relatório aponta as críticas que essas tentativas receberam ao longo de seus anos de funcionamento. Por meio de entrevistas com jornalistas, a maioria dos quais preferiu o anonimato, o relatório dá conta dos problemas que eles enfrentam ao querer usar o Mecanismo de Proteção, ou os problemas da Feadle ao pegar e investigar crimes contra a imprensa.
Segundo informou o CPJ, entre o dia 29 de fevereiro de 2016 e 31 de janeiro de 2017, a Feadle abriu 123 expedientes, 10 dos quais correspondem a homícidios. “No entanto, desde sua fundação, a Feadle apenas obteve três condenações.”
O Mecanismo, por sua vez, em janeiro de 2017 concedeu alguma forma de proteção a 499 pessoas, das quais 174 eram jornalistas. Desde 2012, foram admitidos 220 casos relacionados com jornalistas.
No entanto, segundo informação dada ao CPJ pela titular do mecanismo, ele só recebeu orçamento até setembro deste ano.
“Todos [estes avanços] ocorreram, mas a impunidade segue vigente. Essa é basicamente a razão pela qual o relatório tem esse título: ‘sem desculpas’. Foram criados mecanismos, organismos de investigação, a Constituição foi reformada e, no entanto, a impunidade segue vigente. Sem desculpas, o México deve quebrar o ciclo de impunidade que rodeia os assassinatos de jornalistas”, disse Lauría ao Centro Knight.
Nota do editor: Essa história foi publicada originalmente no blog de jornalismo nas Américas do Centro Knight, o predecessor do LatAm Journalism Review.