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Ditaduras na América do Sul: os desafios de informar sobre o passado recente nos dias de hoje

Aproximadamente entre as décadas de 1970 e 1980, os últimos regimes ditatoriais foram implantados com total repressão em Argentina, Chile, Uruguai, Bolívia, Brasil e Paraguai. Várias décadas nos separam desses eventos e, embora alguns países - como a Argentina - tenham dado passos firmes em direção à justiça, ainda há milhares de famílias que não sabem o paradeiro de seus desaparecidos e repressores que não foram condenados. Sobre o desafio de informar sobre o passado recente nos dias de hoje, a LatAm Journalism Review (LJR) conversou com membros do projeto plancondor.org, uma iniciativa que reúne e torna visível informações que estavam dispersas após anos de investigações; e com a jornalista argentina especializada em direitos humanos, Lucía Cholakian Herrera.

Na Argentina, o "Processo de Reorganização Nacional" foi o nome dado ao que de fato eram ditaduras civis-militares para reprimir e torturar "subversivos" ou inimigos dos regimes dos países do Cone Sul da América Latina, que trabalhavam em conjunto e de forma organizada. Sob o amparo da doutrina de Segurança Nacional, importada dos Estados Unidos, e o mandato das forças armadas latino-americanas para restaurar a "ordem interna", foi realizada a violação sistemática dos direitos humanos que ocorreu naquela época.

As ações dos grupos militares e paramilitares foram caracterizadas por detenções ilegais de civis, sequestros e desaparecimentos forçados, prisões ilegais em condições deploráveis, tortura física e psicológica, violência e exploração sexual, assassinatos e apropriação de bebês. Além disso, implementaram políticas repressivas e reformas econômicas conservadoras.

Depois que várias investigações e arquivos vieram à tona, passou-se a saber mais sobre a coordenação entre os repressores nos diferentes países. Um dos pontos altos foi a criação, em 1976, do centro clandestino de repressão "Automotores Orletti" em Buenos Aires, Argentina, onde refugiados que haviam fugido de regimes ditatoriais em países vizinhos eram presos e torturados. Voos clandestinos - popularmente conhecidos como "voos da morte" - também foram coordenados para descartar os corpos dos assassinados nas águas do Rio da Prata.

Essa campanha de repressão política e terrorismo de Estado no Cone Sul foi chamada de Plano Condor. Foi estabelecida em 1975, em Santiago do Chile, entre representantes dos regimes de Uruguai, Argentina, Chile, Bolívia e Paraguai, e contou com o apoio econômico, logístico e ideológico da Agência Central de Inteligência dos EUA, a CIA.

Drawing of Lady Justice holding a scale, sitting atop a book and people coming out of the book

O projeto plancondor.org é realizado por defensores dos direitos humanos e acadêmicos que lutam por memória, verdade, justiça e não repetição dos fatos ocorridos no passado recente no Cone Sul da América Latina. (Imagem: Sebastián Santana)

O projeto Plan Cóndor

A pesquisadora italiana Francesca Lessa, a partir de 2013, viveu em Buenos Aires e Montevidéu alguns anos para acompanhar de perto os julgamentos contra os principais repressores do Plano Condor. Ela é professora de Estudos Latino-Americanos e de Desenvolvimento na Universidade de Oxford, no Reino Unido, e uma das principais acadêmicas no estudo dos direitos humanos na América Latina. Após uma longa e exaustiva investigação, ela foi ameaçada de morte no Uruguai, juntamente com outras 12 pessoas ligadas ao sistema judiciário uruguaio e à defesa dos direitos humanos.

Como resultado dessa investigação, Lessa compilou um banco de dados de 805 vítimas do Plano Condor, no qual revela que quase 40% das vítimas eram militantes políticos e sociais, e apenas 36% eram guerrilheiros ou pertenciam a organizações armadas. Esse banco de dados está hospedado no site do projeto plancondor.org. Ele também comprova sequestros e transferências ilegais de pessoas e crianças entre países.

Em 2022, ela publicou o livro “Los juicios del Cóndor: La coordinación represiva y los crímenes de lesa humanidad en América del Sur” ("Os julgamentos do Condor: a coordenação repressiva e os crimes de lesa humanidade na América do Sul"). Ela também entrou em contato com pesquisadores e organizações sociais que lutam pela memória, verdade e justiça nos diferentes países, a fim de reunir o material que coletou em sua pesquisa em um site e torná-lo visível de forma educativa e informativa.

O projeto plancondor.org é uma iniciativa colaborativa entre a Universidade de Oxford e as organizações Sitios de Memoria Uruguay, Observatorio Luz Ibarburu, pozodeagua (ambas também do Uruguai) e Londres 38, do Chile. Além do banco de dados de vítimas, o site oferece um mapeamento da trajetória de algumas vítimas e locais importantes para a Condor, como prisões e centros de detenção e tortura; e uma lista de casos e sentenças judiciais em tribunais nacionais e internacionais com informações detalhadas. Também contém uma grande reserva de documentos da imprensa e de organizações sociais, arquivos estatais, livros, artigos, audiovisuais e infográficos.

"O que é original nesse projeto, diferentemente das pesquisas acadêmicas sobre o assunto, é que o site permite o acesso a todas essas informações a um público que não é necessariamente especialista", explicou à LJR Mariana Risso, coordenadora do Sitios de Memoria Uruguay e membro do plancondor.org. "Ao disponibilizar informações confiáveis e sérias, também facilita o trabalho de jornalistas e advogados defensores de direitos humanos.

No plancondor.org, eles estão muito conscientes do papel que o projeto desempenha na defesa dos direitos humanos e na luta por memória, verdade e justiça. Rodrigo Barbano, também membro do projeto, explica à LJR: "Recebemos centenas de contribuições de vítimas, operadores de justiça e jornalistas que estão buscando esta ou aquela sentença. Se esses projetos funcionam, têm um papel muito relevante em termos de informação e na disputa que ocorre nos territórios digitais".

Jornalismo de direitos humanos em Buenos Aires

"A Argentina, ao contrário de outros países da região, teve um processo muito importante de memória, verdade e justiça realizado pelo Estado nos últimos 20 anos. É algo que está muito presente para as pessoas que viveram a ditadura e para as gerações posteriores", explica Lucía Cholakian Herrera à LJR. Ela é uma jornalista especializada em direitos humanos que vive em Buenos Aires.

Do ponto de vista da cobertura jornalística, Cholakian explica: "Algo interessante é que a transmissão da memória e as histórias da ditadura são renovadas a cada geração. Nunca é redundante contar uma história novamente". Para ela, ao mudar a linguagem, as referências, a cidade e os locais onde os fatos ocorreram, tem-se novas perspectivas para contar as mesmas histórias.

Mas a jornalista enfatiza algo fundamental, que o que aconteceu ainda não foi resolvido. Na Argentina "ainda temos 30 mil desaparecidos, são pessoas com as quais não sabemos o que aconteceu. Seus filhos, e agora seus netos, ainda estão procurando por elas. Não é nada que tenha se estagnado no passado e que possa se esgotar", diz ele.

Atualmente, a cobertura da imprensa sobre o passado recente em seu país está "muito ancorada nas datas de aniversários importantes, como 24 de março [o dia do golpe de Estado em 1976, que se tornou o Dia Nacional da Memória por Verdade e Justiça] e no andamento dos julgamentos", explica Cholakian. Ela acrescenta que "os maiores jornais do país têm jornalistas designados para cobrir os julgamentos contra a humanidade, e isso é mantido".

À medida que os julgamentos avançam, Cholakian acredita que novos aspectos e novas abordagens estão surgindo. "Cada vez mais nos perguntamos: o que aconteceu com as pessoas transgênero durante a ditadura e com as mulheres em centros de detenção ilegais?", questiona ela. Nesse sentido, ela diz que, nos últimos anos, a voz das comunidades LGBTQ+ foi levantada para contar como viveram a ditadura, e elas começaram a identificar seus desaparecidos. "Eles começaram a falar do número 30.400, que soma os desaparecimentos da comunidade LGBTQ+", acrescenta a jornalista.

Para Cholakian, é muito importante continuar informando e produzindo material sobre as violações dos direitos humanos do passado recente. Portanto, diz ela, "não se trata apenas de manter viva a memória, mas de usar as lições aprendidas com essa terrível experiência para evitar a reprodução da violência no futuro". Ela alerta sobre o avanço da nova direita nos países da região, que tem "seu ramo negacionista e sua defesa do terrorismo de Estado".

Por fim, ela reflete: "Uma parte importante do nosso trabalho é continuar contando essas histórias, porque quando elas não são contadas e são esquecidas, há o risco de repetição. Temos que manter essa chama acesa o tempo todo."

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