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Em meio a ameaças à imprensa, Brasil prepara lançamento de rede de proteção a comunicadores

Um encontro realizado em São Paulo no começo de dezembro reuniu comunicadores, organizações pela liberdade de imprensa e representantes do Estado para debater as ameaças enfrentadas pela imprensa, as medidas que o Estado vem tomando para combater a impunidade nos casos de violência contra trabalhadores da categoria e os próximos passos para o lançamento de uma rede de proteção a comunicadores no Brasil.

O Encontro Nacional de Proteção a Comunicadores aconteceu na capital paulista nos dias 4 e 5 de dezembro e foi organizado pelo Instituto Vladimir Herzog, pela Artigo 19, Repórteres Sem Fronteiras (RSF), Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e pelo coletivo Intervozes.

O evento reuniu cerca de 50 pessoas de 11 Estados brasileiros para aprofundar o debate sobre a violência contra comunicadores e articular uma rede de proteção a estes profissionais que cubra os diversos contextos comunicacionais do país, disse Artur Romeu, da RSF, ao Centro Knight.

Valério Luiz Filho (Instituto Valério Luiz), Emmanuel Pellegrini (MPF), Raiana Falcão (MDH) e Andrew Downie (CPJ) durante ncontro em São Paulo. (Foto: Marina Atoji / Abraji)
 

No primeiro dia do encontro, comunicadores de várias regiões do países participaram de mesas temáticas com membros das organizações e com representantes do Estado. Buba Aguiar e Gizele Martins, do Rio de Janeiro, Cláudio André, de Pernambuco, Cristian Góes, de Sergipe, e Valério Luiz, de Goiás, contaram casos vividos por eles de censura, criminalização, violência e impunidade em crimes que tiveram comunicadores como alvo.

“Trouxemos as principais violações que observamos com relatos em primeira pessoa de casos emblemáticos, para personalizar e gerar essa identificação, que funcionou bastante junto aos participantes”, contou Marina Atoji, gerente executiva da Abraji, ao Centro Knight. “Quando falamos em censura ou criminalização, parece uma coisa muito etérea. Mas quando contamos uma história e colocamos isso na figura de alguém, isso tem uma força maior.”

Os representantes do Estado, disse Atoji, trouxeram “a visão do Estado enquanto criador e executor de política pública”. Participaram Carlos Weis, da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, Emmanuel Pellegrini, do Ministério Público Federal (MPF), e Raiana Falcão, do Ministério dos Direitos Humanos (MDH) e coordenadora-geral do Programa de Proteção a Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores Sociais e Ambientalistas.

Falcão apresentou aos presentes como funciona o programa do MDH, que em setembro passou a incluir comunicadores ameaçados como meritórios de proteção pelo mecanismo.

“A maioria dos participantes [do evento] era comunicador popular. Eles simplesmente desconheciam a existência do programa de proteção e que eles poderiam se beneficiar disso”, contou Atoji. “Vários se informaram como funcionava no Estado deles, a que órgãos recorrer, o que foi uma contribuição bastante importante.”

Pellegrini, membro da Estratégia Nacional de Segurança Pública (Enasp) do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), levou informações sobre um levantamento que está sendo realizado pelo órgão sobre os caminhos no Judiciário de casos de homicídios de jornalistas. Este mapeamento está analisando assassinatos de comunicadores ocorridos no Brasil nos últimos 20 anos - prazo máximo de prescrição do crime, explicou Pellegrini ao Centro Knight. Ele estima que tenham ocorrido de 35 a 40 casos no país neste período.

“Estamos fazendo um mapeamento bastante analítico, com data do crime, se há investigação, em que pé está a investigação, se os responsáveis já foram processados criminalmente, quem são eles, se houve desmembramento dos casos, se já houve condenação, se eles foram absolvidos”, enumerou o promotor.

O objetivo deste levantamento é identificar as causas de impunidade e dar elementos para que o Ministério Público possa agir para solucionar os problemas identificados nestes casos.

“Não adianta falar de impunidade sem verificar onde se encontram as causas dela: estão na investigação? Na tramitação do processo criminal? Existe pressão sobre juristas ou sobre um tribunal específico? Precisamos verificar onde está o problema, do contrário não vamos conseguir solucionar o fato de alguns casos ficarem impunes.”

Segundo Pellegrini, o Ministério Público está em um “lugar privilegiado” para tratar deste tema, pois “só o promotor tem acesso tanto à fase de investigação, pois compete a ele fazer o controle externo da atividade policial e exigir que a autoridade policial de fato investigue aquele crime, e ele tem acesso ao aparelho judicial e pode cobrar do juiz que julga aquele caso”.

O levantamento foi iniciado no primeiro semestre deste ano e deve ser finalizado até o início de março de 2019. Ao ser concluído, será publicado em um relatório e disponibilizado como um banco de dados público, configurando uma estatística oficial sobre impunidade em homicídios de comunicadores no Brasil.

Pellegrini também falou sobre a proposta de recomendação ao CNMP para que seja priorizada a persecução penal no caso de crimes contra a vida e a integridade física e crimes de ameaça contra jornalistas, profissionais de imprensa e comunicadores no Brasil, que se deem no exercício da profissão ou em razão dela, apresentada em maio durante reunião do CNMP. A proposta, endossada pela presidente do CNMP e procuradora-geral da República, Raquel Dodge, ainda não foi votada pelo órgão.

“É uma proposta que eu creio que será aprovada, pois a maioria dos conselheiros é bastante sensível ao tema. Se aprovada, tenho certeza de que essa questão [da impunidade] tem tudo para ser substancialmente resolvida, pois seria um passo bastante grande à frente”, avaliou Pellegrini.

Este trabalho vem sendo realizado em uma parceria do CNMP, por meio da Enasp, com o escritório da Unesco no Brasil, conforme informou a Abraji, e também tem o objetivo de sensibilizar membros do MP para a importância de priorizar a persecução penal de crimes contra comunicadores.

“Esses casos não são ‘apenas um homicídio’, eles são uma afronta direta à liberdade de expressão. É um ‘cala-boca’ ao comunicador, uma tentativa de calar aquela voz”, disse o promotor.

Artur Romeu (RSF), Buba Aguiar (Fala Akari), Cláudio André (blogueiro e radialista de Bom Conselho, PE). (Foto: Marina Atoji / Abraji)
 

Lançando uma rede de proteção

O objetivo principal do encontro foi “impulsionar a criação de uma rede de comunicadores em torno dessa agenda de violência contra jornalistas no país”, disse o representante da RSF. Meta alcançada: no segundo dia do evento, foram formados grupos de trabalho entre os comunicadores presentes, que vão trabalhar em conjunto para estabelecer a organização da rede e seu funcionamento.

O propósito da iniciativa é estruturar “uma rede de visibilidade, solidariedade e resposta a casos de violência e violação à liberdade de expressão no país que seja mais reativa, mais forte, mais organizada, para poder ter uma força de pressão mais estruturada e coordenada”, explicou Romeu.

Segundo ele, o encontro reuniu experiências muito diversas de profissionais que se dedicam à comunicação e ao jornalismo em diferentes contextos e de maneiras distintas: “jornalistas profissionais que atuam em grandes redações; pessoas que têm uma página no Facebook hiperlocal, que atuam com ferramentas do jornalismo e que se dedicam a denúncias de violações de direitos humanos e de abusos do Estado; blogueiros de Pernambuco; radialistas do interior do Nordeste”, enumerou.

Essa diversidade mostrou que os tipos de violência que afetam um comunicador em uma favela do Rio de Janeiro, um radialista do interior de Pernambuco e um jornalista de uma grande redação de São Paulo são diferentes, também variadas a depender de marcadores identitários do comunicador: seu gênero, sua raça, sua origem, comentou Romeu.

“O fato é que quem trabalha sobre temas sensíveis, principalmente a nível local, que envolvem pisar nos calos de diferentes estruturas de poder, sejam elas políticas ou econômicas, se vê com muita frequência diante de potenciais represálias.” E essa constatação também ajudou a construir entre as pessoas que participaram do encontro um senso de que elas não estão sozinhas.

“Elas não estão enfrentando um problema que é com elas a nível individual; estamos falando de algo estrutural, sistêmico no Brasil”, observou o representante da RSF. “Levantar estas questões também ajuda a sentir a necessidade de uma resposta que seja coletiva. Não é cada um tentando encontrar uma solução no seu campo, mas sim tentar encontrar soluções através de incidência política, visibilização, pressão nas autoridades públicas, junto ao Estado, pensar estratégias de combate à impunidade; fazer uma frente e conseguir uma resposta coletiva a esse problema que é sistêmico.”

A ideia é que essa frente, organizada na rede de proteção, reúna comunicadores de todo o país, inclusive aqueles que não estão especialmente dedicados ao combate à violência contra jornalistas.

Ao longo do próximo trimestre, os grupos de trabalho estabelecidos no encontro vão construir uma carta de princípios que vai nortear a atuação da rede, explicou Atoji. Também serão pensadas que “ferramentas a rede vai disponibilizar para os comunicadores e para si própria; se vamos ter um site para receber denúncias e disponibilizar os dados que vamos levantar”, afirmou.

Também será decidido que recursos disponibilizar para comunicadores ameaçados. “Pensamos desde estabelecer pontos em que os comunicadores possam se refugiar quando forem ameaçados, alternativas de deslocamento, de remoção da pessoa do local mesmo”, disse a gerente-executiva da Abraji. “Também pensamos em treinamento de segurança para comunicadores populares, especialmente, desde segurança digital a segurança física.”

A rede também deve estruturar formas de agir no âmbito jurídico, como suporte a comunicadores acionados na Justiça ou um fundo para ajudar a cobrir os custos com processos ou indenizações, condenações recorrentes para comunicadores processados por difamação.

Os grupos devem se reunir novamente em março de 2019 para debater os pontos trabalhados e lançar a iniciativa oficialmente. A rede está aberta a todos os comunicadores interessados, não apenas a quem participou do encontro em São Paulo. Para saber mais informações e aderir, basta entrar em contato com uma das organizações: Abraji, Artigo 19, Instituto Vladimir Herzog, Intervozes, Repórteres Sem Fronteiras.

Mas essa rede não pertence a essas entidades, explicou Romeu. “É realmente uma tentativa de aproximar outras organizações, coletivos e comunicadores para que se envolvam com esse debate e se apropriem dessa iniciativa. Porque se não tiver essa apropriação, [a rede] morre na praia” afirmou.

“As pessoas têm que se envolver com o tema. O que sentimos é que há muita demanda, se reconheceu o quão importante era fazer esse debate nesse momento, como é necessário um nível de solidariedade, entender as especificidades de atuação de cada organização e cada território diferente, com suas características. Existe uma demanda clara e interesse desse grupo de estar mais articulado, mais próximo, de pensar ações conjuntas. Como isso vai acontecer concretamente é algo que vai ser desenhado ainda.”

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