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Em meio a censura e repressão, veículos na Venezuela fazem aliança de fact-checking para eleições legislativas controversas no país

Em um ambiente hostil para a imprensa, com detenções arbitrárias, censura e repressão governamental, organizações de fact-checking na Venezuela decidiram se unir em um esforço colaborativo para verificar dados e combater a desinformação diante das eleições para o Legislativo, marcadas para 6 de dezembro.

A aliança, chamada Venezuela Verifica, reúne fact-checkers de sete organizações, sob a coordenação do Instituto Prensa y Sociedad de Venezuela (IPYS Venezuela). A iniciativa, anunciada em uma série de eventos online na última semana de outubro, é inspirada em projetos similares que ocorreram na Colômbia, Argentina, Brasil e México.

Participam da aliança os seguintes meios: Cocuyo Chequea (Efectococuyo.com), ObserVe (Ininco-Universidad Central de Venezuela), CotejoInfo y Observatorio de Fake News (Medianálisis.org), Cazadores de Fake News, EsPaja (Transparencia Venezuela) y Chequéalo (ElDiario.com). Também apoiam a iniciativa o Observatorio Global de Comunicación y Democracia, Probox e EsTendenciaVzla.

Venezuela Verifica

Meios de comunicação que fazem parte da aliança Venezuela Verifica

Em um primeiro momento, o grupo vai divulgar as verificações nos sites e redes sociais das organizações integrantes, mas há planos de criar um portal próprio da aliança, que sirva de repositório de todo o conteúdo produzido. Também nesta primeira etapa, o objetivo é ampliar a audiência das checagens, que vão ser feitas individualmente pelas organizações.

Eugenio Martínez, coordenador do Cocuyo Chequea, a unidade de fact-checking do veículo venezuelano Efecto Cocuyo, diz que a união dos meios é fundamental para combater a desinformação. Segundo ele, as informações falsas atingem um público maior, de forma mais rápida e impactante do que as checagens, porque reforçam as crenças anteriores das pessoas. "A desinformação é sexy e a verificação é antipática", resumiu Martínez, em entrevista à LatAm Journalism Review (LJR).

Nesse contexto, aumentar a audiência das checagens é crucial. "Não é igual que uma matéria saia em um site e que saia em dez ao mesmo tempo", explica. "Em um país onde os recursos econômicos e a mão de obra são limitados, não é a mesma coisa que todos os projetos separadamente tentem verificar um mesmo problema e que simplesmente um dos parceiros verifique um problema, e todos os demais chequem os outros. Esta colaboração é [...] ideal para maximizar esforços e a utilização de recursos financeiros e tecnológicos", disse.

Se nesta primeira etapa o foco é ampliar a disseminação do conteúdo, em um segundo momento, os meios pretendem trabalhar em verificações conjuntas, afirma a jornalista Marianela Palacios Ramsbott, de IPYS Venezuela, coordenadora e cofundadora da aliança.

Antes de passar para a segunda parte, o grupo precisa resolver um desafio inicial, que é uniformizar os parâmetros de checagem. Assim, a aliança tem que ajustar e adaptar as diferentes metodologias de fact-checking, bem como as etiquetas que cada organização usa para classificar o conteúdo como verdadeiro, falso etc.

"Por enquanto, cada um vai manter sua forma de fazer as coisas. Também está contemplada a possibilidade de, posteriormente, realizarmos verificações conjuntas, principalmente quando for preciso maior profundidade e abrangência nacional. Como temos representantes em vários estados do país, essa amplitude de representatividade em território nacional é um dos pontos fortes do trabalho em parceria", disse Palacios à LJR.

Marianela Palacios

A jornalista Marianela Palacios. Foto: Arquivo pessoal

A iniciativa vai começar a publicar as primeiras matérias em novembro, mas o objetivo é que possa continuar em 2021. "Estamos vendo como podemos caminhar juntos, de forma que esse primeiro evento sirva como um aquecimento, como um balão de ensaio, do que podemos fazer em outros cenários que vão se apresentar", disse à LJR Víctor Amaya, diretor da organização venezuelana de fact-checking EsPaja.com e cofundador da aliança Venezuela Verifica.

Amaya explica que a escolha de lançar a cooperação com foco no período eleitoral, que pode parecer óbvia em outros países, não é tão simples na Venezuela atual. "Podemos qualificar como eleições ou não, porque essa é uma das grandes discussões políticas na Venezuela, quem reconhece e quem não reconhece esta eleição. Mas, independentemente disso, há uma campanha eleitoral que vai levar a esse evento. E nós vamos estar de olho nisso", afirma ele.

Martínez, de Cocuyo Chequea, ressalta que essa eleição será "muito particular", porque, entre outros motivos, a oposição se recusou a participar, argumentando que o processo será fraudado para beneficiar o Partido Socialista, que governa o país. Além disso, a União Europeia havia pedido que o pleito fosse adiado, como condição para enviar uma missão de acompanhamento da votação, mas o pedido foi negado pelo governo de Nicolás Maduro.

"O processo de 6 de dezembro na Venezuela é muito particular, [...] rejeitado por boa parte da comunidade internacional ocidental, pelas principais democracias da região e da Europa", afirmou Martínez. Outra questão atípica do pleito é que a oposição convocou uma consulta popular entre 5 e 12 de dezembro, para que os cidadãos possam dizer se concordam ou não com as eleições parlamentares. E a aliança pretende manter o esforço de verificação durante essa consulta.

"O projeto não é voltado apenas para as eleições parlamentares do dia 6 de dezembro, na verdade ele tem que ir muito além, porque são dois eventos que praticamente competem entre si, por assim dizer, e pouca informação está sendo oferecida sobre como eles estão sendo organizados, o que acaba, infelizmente, deixando os cidadãos confusos", disse Martínez.

Nesse cenário, o tipo de verificação feita pelas organizações de fact-checking também vai ser diferente das checagens em uma eleição comum, explica Martínez. Ao invés de desmentir boatos sobre os métodos de votação, por exemplo, ele acredita que o foco dos checadores vai ser a participação popular na eleição. Ou seja, o esforço de colaboração vai servir menos para orientar eleitores sobre como votar e sobre os candidatos, como poderia ocorrer em pleitos em outros países, e mais para esclarecer as consequências das eleições para o país, afirma Martínez.

Há ainda outro componente que torna esse esforço de colaboração diferente: a dificuldade de acessar informações públicas na Venezuela. Segundo Palacios, o governo não divulga, por exemplo, dados macroeconômicos básicos com regularidade. Falta transparência e uma cultura de prestação de contas por parte das autoridades.

"Realmente a limitação dos dados públicos aqui na Venezuela é uma das piores da América Latina. Em um país com tão pouca informação pública oficial disponível, com sites completamente desativados, sem ter informação estatística primária, que em qualquer outro país do mundo é normal, [...] isso complica muito o trabalho de fact-checking. Mas ainda assim muitos jornalistas, ótimos jornalistas, estão fazendo seu trabalho", disse ela.

Para Martinez, a falta de informações confiáveis faz com que cada organização de fact-checking, antes de começar as suas verificações, tenha que desenvolver a sua própria base de dados, com uma metodologia própria para acompanhar temas como a hiperinflação, por exemplo. "Temos alguns requisitos iniciais que provavelmente outros projetos em outras partes do mundo não têm", afirma ele.

Já Amaya destaca outros desafios que surgem com a falta de dados públicos. Um deles é que é muito raro ter documentos ou links que possam ser inseridos e usados nas matérias – algo extremamente importante para muitas metodologias de fact-checking, que buscam publicar todas as informações utilizadas na verificação, para que o leitor possa, ele mesmo, refazer e conferir a checagem.

"Muitas vezes os dados oficiais que se obtêm são simplesmente uma declaração, não um relatório oficial que pode ser verificado, lido na íntegra ou baixado. Muitas vezes os fatores de verificação acabam sendo as próprias declarações de pessoas do governo que acabam se contradizendo, e até de uma mesma pessoa [que se contradiz], isso também acontece", diz Amaya.

A ausência de dados públicos também obriga os checadores a buscarem fontes alternativas, principalmente organismos internacionais, como agências da ONU ou a OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo). De acordo com Amaya, essas organizações recebem informações do governo venezuelano que não são divulgadas dentro do país, mas que servem para as checagens.

Outra dificuldade, segundo o jornalista, é conseguir que as fontes mantenham as suas declarações "on the record", porque o medo de aparecer em uma matéria é muito grande. E isso, para organizações de fact-checking, é fundamental, porque muitas têm como regra não trabalhar com anonimato e o off. "Mesmo que tenhamos a informação, precisamos que todo mundo esteja identificado [na matéria], e às vezes isso é um fator que complica o encerramento de um trabalho", conta Amaya.

Com todas essas barreiras para acessar informação, o trabalho da aliança se torna ainda mais importante, afirma Amaya. Ele ressalta que, no país, o ecossistema de meios de comunicação foi afetado, e a liberdade de imprensa se deteriorou, com o fechamento de 65 jornais impressos nos últimos anos.

O jornalista Victor Amaya, da Venezuela

O jornalista Victor Amaya. Foto: Fabiola Ferrero

"Há estados da Venezuela em que não existe imprensa escrita. Desapareceram os programas de opinião, de entrevistas e os noticiários, tanto na rádio quanto na televisão, exceto nos espaços que são basicamente filiados ao sistema público de mídia e, portanto, controlados pelo poder com a narrativa oficial. Ou seja, meios de comunicação que estão sujeitos às políticas de propaganda oficialista, onde também detectamos muita ação de desinformação vinda do poder central", explica Amaya.

Ele destaca que a extinção de muitos jornais tradicionais na Venezuela veio acompanhada do surgimento de novos meios digitais, mas que é difícil, para esses veículos online, conseguir chegar até a audiência. "Temos uma das velocidades de Internet mais baixas do continente. Além disso, perdemos muita capacidade de conexão. Nos últimos anos, perdemos até sete milhões de linhas de celular, que existiam na Venezuela em comparação a uma década atrás. Então, manter as pessoas informadas é todo um desafio, não é tão fácil como pode ser em outro local: 'bom, vou à imprensa e leio'. O que acontece se você não encontra nenhum tipo de imprensa para ler?", questiona.

Nesse ecossistema de mídia cada vez mais restrito a meios alinhados ao governo e dentro de uma sociedade polarizada, as organizações de fact-checking ajudam a "tirar os cidadãos de uma bolha", afirma Martínez. Para ele, muitas pessoas se informam pelas redes sociais no país, o que é perigoso, porque elas recebem apenas uma visão limitada da realidade. "A Venezuela infelizmente já não tem mais meios de comunicação que gerem uma opinião pública, tem apenas setores que se retroalimentam por meio das redes sociais".

Tudo isso torna o país um campo fértil para a disseminação de notícias falsas, principalmente no período eleitoral, afirma Palacios. "Basicamente o objetivo dos desinformadores, principalmente quando têm um poder que tende ao totalitarismo e ao controle quase hegemônico da mídia, é desativar politicamente o adversário. E por isso é tão importante que alianças, como a Venezuela Verifica, entrem no jogo para contrabalançar, de alguma forma, esse mar de falsidades que circula diariamente".

Palacios acrescenta que o projeto está buscando financiamento para 2021 e que organizações interessadas em se juntar ou em apoiar a aliança podem entrar em contato pelo email venezuelaverifica@gmail.com.

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