Por Zamir Fajardo* e Silvia Higuera
Com a participação de pelo menos 300 pessoas, foi realizado o webinar “Desafios legais para a proteção da liberdade de expressão em tempos de COVID-19”, organizado pelo Centro Knight, Unesco e a Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Essas entidades organizam o curso online Marco Jurídico Internacional da liberdade de expressão, acesso à informação pública e proteção de jornalistas, que este ano está em sua sexta edição na América Latina. Até agora, quase 2.400 operadores de Justiça na região foram capacitados com esta iniciativa.
Participaram do webinar Edison Lanza, Relator Especial para a liberdade de expressão da CIDH; Ricardo Pérez Manrique, juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos; Joan Barata, especialista espanhol do Center for Internet and Society e Ciber Policy Center da Universidade de Stanford; e Guilherme Canela, chefe da seção de Liberdade de Expressão e Segurança de Jornalistas da Unesco. A moderação ficou a cargo de Yuria Saavedra, advogada mexicana especializada em Direitos Humanos, Direito Humanitário e Direito Penal Internacional. Ela faz parte da equipe de monitores do curso online mencionado acima.
Por duas horas, em 22 de maio, especialistas abordaram tópicos que vão desde o perigo representado por informações falsas na pandemia, a relevância do jornalismo nesta cobertura, a privacidade de dados e a garantia de acesso à Internet.
Na apresentação inicial, Canela alertou para a existência do que chamou de "uma tempestade perfeita" pela liberdade de expressão devido ao impacto da COVID-19. Em oito pontos, o especialista da Unesco explicou essa tempestade perfeita que inclui, entre outros elementos, o aumento de informações falsas –que ele chama de desinfodemia– que só pode ser enfrentada por "uma imprensa livre, independente e plural".
Ele também mencionou o aumento da violência contra jornalistas, a demissão e o impacto na saúde mental dos repórteres. Canela destacou o fechamento de meios de comunicação e o impacto econômico nos veículos, o que facilita a captura desses meios por outros poderes, incluindo o próprio Estado.
O acesso à informação pública também foi afetado por diferentes decretos de emergência aprovados na região. "Temos restrições ao acesso à informação pública e nada disso se justifica, pelo contrário, isso é ruim para a pandemia", disse o especialista.
Nesse sentido, ele destacou o papel dos operadores de Justiça. “O que estamos passando com a COVID-19 é algo novo no sentido das dimensões da pandemia, mas os elementos são elementos fundamentais da discussão clássica dos riscos que temos para a proteção e promoção da liberdade de expressão e do acesso a informações públicas e a segurança dos jornalistas", garantiu.
Durante sua apresentação, além de falar sobre os obstáculos à liberdade de expressão, Lanza destacou o trabalho de organizações internacionais que vêm lembrando aos Estados o dever de garantir os direitos humanos.
Segundo o relator, essas entidades emitiram "algumas normas de soft law para dar uma primeira resposta legal a essa situação". Ele também disse que monitoram diariamente o que acontece para tentar dar respostas concretas "sobre a violação desses direitos no contexto da pandemia, porque obviamente a região não é uniforme e existem diferentes gradações de problemas".
Lanza destacou o papel da imprensa que tem sido "ainda mais importante do que o tradicionalmente desempenhado em uma democracia em uma situação normal". Segundo ele, os direitos relacionados ao sistema de informação não devem ser objeto de suspensão em geral, e "qualquer restrição feita deve ser posterior, não uma restrição de censura prévia, e deve ser necessária e proporcional". Esse último é uma menção aos decretos que foram emitidos na região onde as informações da COVID-19 são criminalizadas com o suposto objetivo de atacar as informações falsas e a desinformação.
Outros temas que o Relator Especial reconheceu como relevantes são o papel fundamental do acesso universal à Internet, o direito de acesso à informação pública e a necessidade de preservar a privacidade e a proteção de dados na gestão de pandemia.
Lanza concluiu oferecendo recomendações aos Estados para não restringir o trabalho da imprensa, não bloquear a mídia, mas principalmente tomar cuidado com suas declarações.
"Observamos uma tendência muito preocupante por parte de algumas autoridades públicas, incluindo presidentes, de pronunciamentos estigmatizantes, que pedem descrença na imprensa e até nos pronunciamentos científicos", disse Lanza. "Também fazemos uma recomendação aos Estados e funcionários públicos para que observem um dever especial de cuidado em pronunciamentos e declarações sobre a evolução da pandemia e sobre o papel desempenhado pela imprensa, jornalistas e especialistas que estão trabalhando nessas questões."
Para o juiz Pérez Manrique, a liberdade de expressão não deve estar sujeita a limitações, especialmente em casos como uma pandemia. Para o juiz, quanto mais informações a população tiver, mais possibilidades de solução vão aparecer, e é por isso que ele pediu "manter a comunicação aberta".
Ele lembrou que, em abril passado, a Corte Interamericana emitiu uma declaração sobre a relação entre COVID e direitos humanos, na qual estabelece que o novo cenário apresentado em face de uma pandemia deve ser enfrentado no âmbito do Estado de Direito e do respeito pelos direitos humanos.
"A questão do coronavírus é essencialmente uma questão de direitos humanos e que o Estado de Direito e os direitos humanos são fundamentais", disse o juiz, que aproveitou a oportunidade para recordar o papel essencial que os juízes desempenham nessas circunstâncias, ressaltando que não é por acaso que, em muitos países, o estado de emergência tenta restringir as atividades do judiciário.
O juiz enfatizou a tarefa dos juízes de garantir que não seja admissível "nenhuma restrição à liberdade de expressão" se não passar no teste triplo de legalidade, que deve ser aplicado por todos os juízes quando os Estados pretenderem aplicar limitações à liberdade de expressão.
“A mensagem que quero transmitir é que nem o Estado de Direito nem os direitos humanos são suspensos ou entram em um estado de latência. Direitos humanos, garantias e Estado de Direito são essenciais para a vida das pessoas ”, afirmou o juiz Pérez Manrique. “Portanto, a gestão do Estado de Direito é aquele âmbito no qual estamos ouvindo hoje –como restrições injustificadas ao acesso a informações públicas e informações que são cortadas de alguma forma, dificuldade de acesso para saber algo elementar que é o fundamento das decisões que são tomadas – são restrições de direitos e precisam estar adequadamente fundamentadas para serem contestadas”.
Barata apontou como os estados de exceção são permitidos pelos tratados internacionais e constitucionais nacionais, mas que, em qualquer caso, estes devem ser declarados pelos Estados usando as regulamentações existentes e não por meios de facto. Isso inclui, por exemplo, algumas restrições à liberdade de expressão - como limitar as multidões - desde que sejam para preservar a saúde pública. Nesse sentido, ele destacou o papel dos juízes na revisão dessas restrições.
Ele destacou alguns dos desafios mais importantes no enfrentamento da pandemia, como o acesso a informações públicas que não acaba com o direito dos cidadãos de perguntarem. Para Barata, é particularmente importante que os Estados tenham políticas ativas de transparência acessíveis aos cidadãos, que expliquem de forma concreta as medidas adotadas e qual é a situação, quais são os riscos e qual é o estado do sistema de saúde, quais medidas podem ser tomadas ou não, entre outras.
Outros tópicos abordados por Barata foram o acesso à Internet, que não deve ser restringido com o argumento de evitar o pânico; a intimidação de jornalistas e ataques por parte dos políticos; proteção das condições de trabalho dos jornalistas que estão na linha de frente; e informações falsas.
Ele também considerou que a pandemia está evidenciando os problemas que já existiam no sistema e no sistema de proteção das liberdades, como a falta de diversidade de meios de comunicação, excesso de concentração e falta de independência dos veículos. "Esses vícios que já existiam até o momento se tornam especialmente problemáticos no contexto da crise, sem entrar no tema do papel da mídia de serviço público. Obviamente, se eles estiverem em uma situação de crise ou não puderem prestar o serviço corretamente fora dessa crise, esse problema ficará mais evidente agora”, afirmou o especialista.
Após as apresentações individuais, houve espaço para discussão em grupo com base nas perguntas dos participantes, reunidas por uma equipe de especialistas.
Também foi discutido o papel do jornalismo na sociedade em meio a tantas informações falsas, o papel do jornalismo científico, o que fazer quando os Estados ocultam informações, até que ponto se deve informar sobre a pandemia sem chegar a gerar pânico, bem como o tratamento de dados pessoais, por exemplo, de indivíduos com COVID-19.
Canela encerrou o evento destacando o papel dos operadores da justiça neste momento de "incerteza".
"Nestes processos de enorme incerteza é quando precisamos ainda mais que os direitos sejam protegidos, é quando precisamos de mais transparência, mais prestação de contas. E por tudo isso, os tópicos que discutimos aqui hoje –imprensa livre e plural, privacidade, acesso à informação pública, funcionamento adequado da Internet - são questões fundamentais nas quais vocês, operadores judiciais (… ), têm um papel fundamental em seus países no contexto interamericano", afirmou Canela. "Nós, todas as organizações que organizamos este e outros eventos (...) é essencial estar aqui e apoiá-lo em seu trabalho, porque no final das contas são vocês que fazem, em cada um dos seus países, a proteção de direitos de todos”.
Além das entidades organizadoras, o webinar contou com o apoio da Corte Interamericana de Direitos Humanos, da Corte Africana de Direitos Humanos e dos Povos, da Corte de Justiça da Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental e da Open Society Foundation.
O evento foi realizado como parte do curso Marco Jurídico Internacional da liberdade de expressão, acesso à informação pública e proteção de jornalistas, que este ano está em sua sexta edição na América Latina. Atualmente, quase 2.400 agentes da justiça na região já foram capacitados por meio dessa iniciativa da Unesco e da Relatoria Especial da CIDH, que conta com o apoio do Centro Knight.
Veja o evento aqui.
*Zamir Andrés Fajardo é um advogado mexicano de origem colombiana, com mestrado em Direito Processual Constitucional e Direitos Humanos. Atualmente é o Terceiro Visitante Geral na Comissão de Direitos Humanos da Cidade do México. Também faz parte da equipe de monitores no curso “Marco Jurídico Internacional da liberdade de expressão, acesso à informação pública e proteção de jornalistas”.