Frente à impunidade que prevalece em torno das denúncias de espionagem com uso do spyware Pegasus contra jornalistas e ativistas no México, organizações não governamentais pediram a intervenção de mecanismos internacionais para obrigar as autoridades militares e civis mexicanas a prestarem contas.
Representantes das ONGs Artigo 19, Rede em Defesa dos Direitos Digitais (R3D) e SocialTIC disseram que, quase seis anos após as primeiras denúncias de espionagem contra jornalistas e defensores de direitos humanos no México, as investigações judiciais abertas não identificaram os autores intelectuais ou investigaram a responsabilidade de funcionários públicos envolvidos com as práticas ilegais de vigilância.
Pelo contrário, as mencionadas autoridades civis e militares têm se empenhado em dar evasivas e negar a existência dos indícios reunidos pelas organizações e por meios de comunicação demonstrando a participação do Estado mexicano na espionagem por meio do Pegasus.
"Dado o esgotamento das próprias instituições do Estado que não estão agindo com a devida diligência, é razoável solicitar a intervenção de mecanismos internacionais de investigação", disse Leopoldo Maldonado, diretor para México e América Central da Artigo 19, em entrevista coletiva em Cidade do México no dia 7 de março. “Não estamos baseando nosso pedido sobre o nada, não se trata de um modismo. É algo que deriva da impunidade sistemática e sistêmica de que este país padece”.
As organizações não descartam levar os casos de espionagem de jornalistas e ativistas às autoridades dos Estados Unidos, como fizeram funcionários do meio digital salvadorenho El Faro, que entraram com uma ação em um tribunal dos Estados Unidos contra a fabricante do Pegasus, a empresa israelense NSO Group, após ser espionado com o spyware.
"Todas as vias internacionais estão abertas, desde órgãos de proteção internacional até essas ações civis nos Estados Unidos contra o NSO Group", disse Luis Fernando García, diretor da R3D. “Acho que está mais do que provado que o Estado mexicano não é capaz de investigar e punir essas condutas, como mostra o caso [da espionagem a jornalistas em] 2017: mais de seis anos [se passaram], e não há avanços significativos na investigação sobre a responsabilidade dos funcionários públicos”.
As organizações se reuniram para divulgar os avanços da "Exército Espião", uma investigação realizada pelas ONGs R3D, Artigo 19, SocialTIC e pelos meios jornalísticos Animal Político, Aristegui Noticias e Proceso, publicada em outubro de 2022, que mostra evidências de espionagem por parte do Exército do México com o Pegasus contra o jornalista Ricardo Raphael, contra um jornalista do Animal Político que permanece anônimo, e contra o defensor dos direitos humanos Raymundo Ramos.
Entre as novidades da investigação, descobriu-se que a espionagem dos jornalistas e do ativista foi realizada tendo como base uma suposta estrutura secreta do Exército mexicano: o Centro de Inteligência Militar (CMI). Também foi revelado que as atividades de vigilância ocorreram com o conhecimento e aval do secretário de Defesa do atual governo, Luis Crescencio Sandoval.
Isto foi descoberto graças a documentos oficiais que fazem parte do megavazamento do grupo hacker Guacamaya, divulgado em setembro de 2022, e a um trabalho de análise forense das organizações autoras da investigação "Exército Espião" em aliança com o Citizen Lab na Universidade de Toronto.
Nos últimos seis anos, pelo menos 16 casos de espionagem de jornalistas com uso do Pegasus foram documentados, além de pelo menos 11 casos de vigilância de defensores dos direitos humanos, disse García. Apenas uma pessoa foi processada pelos casos denunciados em 2017. Trata-se de um funcionário de baixo escalão de uma das empresas intermediárias ligadas ao Pegasus, que aguarda julgamento.
Apesar de as provas que mantêm a referida pessoa vinculada ao processo judicial mostrarem que ela participou de espionagem a pedido e em benefício de altos funcionários do governo do ex-presidente Enrique Peña Nieto, a Procuradoria não investigou ninguém do alto comando das agências envolvidas.
“O [atual] Procurador-Geral da República está com essa pasta aberta há mais tempo do que no último governo, sem ter obtido resultados”, disse García. “É por isso que, desde que apresentamos em outubro de 2022 a denúncia com os casos de Raymundo [Ramos], Ricardo Raphael e um jornalista do Animal Político, advertimos sobre nosso ceticismo de que a investigação avançasse. Infelizmente, mais de cinco meses após a denúncia, a história se repete. Não só a história da espionagem, mas a história da impunidade”.
O diretor da R3D disse que a Procuradoria-Geral da República solicitou informações à Secretaria de Defesa Nacional (Sedena) sobre os seus supostos contratos com a Comercializadora Antsua, empresa no México autorizada pelo NSO Group a vender o Pegasus. A agência militar respondeu com evasivas ou negou a existência desses contratos, apesar de documentos revelados na "Exército Espião" provarem a existência dos documentos.
Além de dificultar a investigação dos casos de espionagem, a Sedena também impediu o acesso à informação neste caso de interesse público sob a desculpa da segurança nacional.
Questionado sobre as conclusões da "Exército Espião" em outubro passado, o presidente Andrés Manuel López Obrador assegurou que seu governo não espiona jornalistas ou ativistas, e pediu ao Exército que torne transparente o uso que tem feito do programa Pegasus. A Sedena não só bloqueou vários pedidos de informação a este respeito por parte da equipe da investigação da “Exército Espião", como também negou a existência de documentos que a ligassem à empresa intermediária do NSO Group.
No entanto, a "Exército Espião" apurou que a Sedena informou ao Tribunal Superior de Auditoria da Federação — o órgão de supervisão do governo mexicano — que havia celebrado contratos com a Comercializadora Antsua em 2019, e que havia pago cerca de 140 milhões de pesos (cerca de R$ 39,5 milhões) para “licenças de serviço de monitoramento remoto”.
O Instituto Nacional de Transparência, Acesso à Informação e Proteção de Dados Pessoais do México (Inai) ordenou em 25 de janeiro deste ano que a Sedena busque informações sobre contratos com a Comercializadora Antsua. Dias depois, a unidade militar respondeu que essa informação estava classificada como sigilosa por cinco anos porque estavam relacionadas a questões de "segurança nacional".
“Esperamos que o Inai determine que esta classificação de sigilo é ilegal, pois se trata de informação sobre ações ilegais”, disse García. “Como você vai declarar sigilo sobre informações relacionadas aos seus próprios crimes? Como o interesse público de garantir sua impunidade vai ser superior ao interesse público de conhecer os atos ilícitos que o Exército está praticando?”
O Exército mexicano teve acesso a conversas privadas entre o defensor de direitos humanos Raymundo Ramos e pelo menos três jornalistas sobre supostas execuções extrajudiciais por parte do Exército ocorridas em 3 de julho de 2020.
Conforme se lê em documentos revelados pela "Exército Espião", militares detalham a uma autoridade superior as conversas que Ramos manteve com um jornalista do jornal El Universal, com outro da rede Televisa e com mais um do jornal El País entre julho e agosto daquele ano. O documento indica que Ramos havia compartilhado com jornalistas informações e material audiovisual sobre a atuação do Exército nas execuções.
Em entrevista ao The New York Times, Ramos disse que as comunicações interceptadas foram mensagens de texto e ligações em plataformas criptografadas como o Telegram. De acordo com a equipe do "Exército Espião", a única maneira de o Exército interceptar essas conversas é por meio de spyware como o Pegasus. Além disso, as conversas com os jornalistas ocorreram exatamente entre as datas em que a análise do Citizen Lab concluiu que o telefone de Ramos havia sido grampeado.
“Esta espionagem não tem limites. Esta espionagem tem recursos ilimitados para ser levada a cabo, e o mais grave disto é que não sabemos o que vão fazer com essa informação nem com quem vão partilhá-la”, disse Ramos na entrevista coletiva. "Lamento que qualquer jornalista ou parente de vítima se coloque em risco justamente por causa de um ato de espionagem."
De acordo com a lei mexicana, o Exército não tem autoridade para interceptar conversas privadas, indicou a investigação. Além disso, a Sedena está acostumada a não colaborar com as autoridades civis, sendo uma instituição autônoma que não presta contas, disse Maldonado. Por isso, os casos de espionagem de jornalistas, ativistas e opositores por parte do Exército não avançam na Justiça mexicana.
Em vista disso, a R3D, a Artigo 19 e a SocialTIC exigiram conjuntamente a cessação imediata da espionagem militar, assim como que o Congresso mexicano imponha a subordinação das autoridades militares perante as autoridades civis e a cessação da obstrução de investigações judiciais abertas sobre a espionagem, como a de Ramos, Raphael e do jornalista do Animal Político.
“O que temos certeza é que não são os únicos casos, que deve haver muitos mais casos, e por isso é de extrema importância que haja uma abertura dos arquivos da inteligência militar e civil, e não só deste governo, também de governos anteriores”, disse Garcia. "É necessário abrir esses arquivos e poder contar a verdade a todas as vítimas."
As organizações também exigiram das autoridades as garantias de justiça, verdade e reparação do ano às vítimas de espionagem, bem como a garantia de não repetição desses casos. Da mesma forma, exigiram a regulamentação da compra e venda de programas do tipo spyware.
“A espionagem no México não é uma anedota, não é algo normal e não é algo que possamos normalizar”, disse Maldonado. "Isso é grave porque, claro, implica uma violação do direito à privacidade, do direito à intimidade [...], mas também gera um efeito inibidor na liberdade de expressão."
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