O governo boliviano lançou “O Cartel da Mentira” (“El Cártel de la Mentira”), controverso documentário de 80 minutos que gerou profunda rejeição de associações de jornalistas, ativistas e da sociedade civil do país sul-americano. O documentário foi realizado por ordem do ministro da Presidência da Bolívia, Juan Ramón Quintana, e contém ataques contra a imprensa independente boliviana.
"O Cartel da Mentira" foi exibido de graça no dia 14 de dezembro em vários cinemas da capital da Bolívia e das prinicipais cidades do país. O filme também foi divulgado pelo canal do YouTube do Ministério da Presidência.
O editor-chefe da Agencia de Noticias Fides (ANF) Raúl Peñaranda, jornalista crítico ao presidente da Bolívia, Evo Morales, é identificado no documentário como um dos principais responsáveis pelo 'cartel de mentiras'.
Peñaranda contou ao Centro Knight para Jornalismo nas Américas que usar "verbas públcas para contratar a produção de um documentário e logo mobilizar funcionários do governo para tornar este documentário disponível pública e gratuitamente, nos cinemas de várias cidades do país, demonstra a visão autoritária do governo”.
O documentário tem foco no suposto papel da imprensa independente em desestabilizar o governo de Morales nos dias que antecederam o referendo de 21 de fevereiro de 2016, no qual o presidente perdeu no voto popular a chance de concorrer a um quarto mandato.
À época, a imprensa reportou que Morales teve um filho com sua ex-parceira Gabriela Zapata em 2007, denunciando um suposto caso de tráfico de influência.
O tema central do filme gira em torno do tratamento que a mídia crítica deu ao governo no caso do suposto filho de Morales.
O primeiro jornalista a tornar a história pública foi Carlos Valverde. No dia 3 de fevereiro, ele expôs o suposto tráfico de influência de Morales e informou que o presidente teria favorecido a sucursal boliviana da companhia chinesa CAMC Engineering Co. Ltd com contratos milionários enquanto Zapata era gerente comercial da empresa.
Valverde, atualmente refugiado na Argentina, afirmou que "não há mentira em nenhuma das alegações: há nove anos, Morales registrou oficialmente uma criança no Departamento Nacional de Registro Civil como seu filho. No dia 5 de fevereiro de 2016 ele disse que sim, ele era parceiro de Gabriela Zapata, e que eles tiveram um filho registrado mas que essa criança morreu”.
Para Valverde, isso levou o governo Morales a ensaiar a desculpa de que uma mentira (o menino) levou-os a perder o referendo. "Foi melhor do que reconhecer que os eleitores ficaram cansados da corrupção do governo, por isso usaram a acusação de 'O Cartel da Mentira', quando o evidente estava muito claro", disse.
Os jornais El Deber e Página Siete, juntamente com a ANF e os meios de comunicação da rede Erbol são os quatro veículos que são constantemente apontados no documentário como parte do "cartel da mentira" e acusados de conduzir uma campanha de desinformação contra o governo.
O jornalista Fernando del Rincón, da rede de notícias internacional CNN, também é mostrado no documentário como parte do “cartel de mentiras”, por ter entrevistado os parentes de Zapata e o suposto filho de Morales. No entanto, o jornalista mexicano nunca publicou a entrevista porque, segundo ele, não encontrou elementos suficientes para comprovar o que foi dito pela família de Zapata, ou provas físicas, como um teste de DNA, para confirmar a existência do suposto filho do presidente.
Depois do lançamento do documentário, a Associação Nacional dos Jornalistas da Bolívia (ANPB) e a Associação dos Jornalistas de La Paz (APLP) rejeitaram sua exibição em um comunicado de imprensa do dia 14 de dezembro.
"A divulgação maciça deste documentário, financiado pelo Ministério da Presidência, faz parte da estratégia do governo para intimidar e desacreditar o trabalho dos profissionais de imprensa (...) A exibição massiva em todo o país do documentário é um incitamento à violência, aos maus-tratos e ao desprestígio dos jornalistas mencionados no filme", declararam as associações no comunicado.
Os órgãos de imprensa também culparam o governo Morales por qualquer tipo de violência que afete a integridade física dos jornalistas e suas famílias que resultem da exposição do documentário.
O jornalista boliviano Mario Maldonado, redator-chefe e vice-diretor do jornal independente Presencia por 20 anos, disse que a situação é "inaceitável, que se contrate um jornalista para intimidar e assustar outros colegas, e que recursos públicos sejam usados para tentar reescrever a história".
"As pessoas não são estúpidas, as pessoas percebem, têm a capacidade de raciocinar", acrescentou Maldonado.
Do mesmo modo, por meio do seu Facebook, o Comitê para a Proteção dos Jornalistas (CPJ) exigiu que as autoridades bolivianas ponham "um fim à campanha de difamação contra a mídia crítica e os jornalistas, e que garantam que a imprensa boliviana possa reportar livremente tópicos de interesse público, sem temer interferência ou intimidação".
Nota do editor: Essa história foi publicada originalmente no blog de jornalismo nas Américas do Centro Knight, o predecessor do LatAm Journalism Review.