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Governo brasileiro lança site oficial de verificação de fatos e desperta críticas de agências independentes

Um novo site lançado pelo governo federal brasileiro com o propósito oficial de combater a desinformação por meio de uma linguagem própria a iniciativas de checagem de fatos motivou críticas de profissionais e agências independentes de verificação, que veem uma apropriação indevida de seu formato — por princípio, isento e apartidário. 

Levado ao ar no dia 25 de março pela Secretaria de Comunicação (Secom) do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, o site Brasil Contra Fake tem, como outras publicações governamentais, um óbvio viés favorável às autoridades e políticas no poder. Segundo seu release de lançamento, no entanto, o seu objetivo é tornar “possível checar se um conteúdo recebido é fake news” — um vocabulário próprio aos verificadores de informação.

A mistura entre checagem de fatos e propaganda, somada à reprodução indevida de conteúdos, à não identificação de algumas fontes e à falta de critério do que publicar, indignou jornalistas que trabalham há muito tempo com checagem de fatos, que lançaram notas contra a iniciativa e se manifestaram em redes sociais. Em resposta, o governo promoveu pequenos ajustes no site, disse que as críticas são bem-vindas e que não pretende ser uma agência de checagem.

A controvérsia permite reflexões sobre as diferenças entre o jornalismo e a propaganda, e expõe os desafios do governo brasileiro para combater a desinformação, após sofrer uma tentativa de golpe de estado no dia 8 de janeiro orquestrada por pessoas radicalizadas a partir de distorções e mentiras online.  

Saraivada de desmentidos

A maioria do conteúdo do Brasil contra Fake, em sua primeira semana de vida, foi uma saraiva de desmentidos relacionados ao governo: “É falso que governo vai monitorar telefonemas, WhatsApp e redes sociais ‘a partir de amanhã’”; “É fake que Ministério da Fazenda tenha anunciado ‘bolsa travesti’ no valor de R$ 1,8 mil”; “É falso boato que projeto de lei proíbe cultos ao ar livre”; “É falso que vacinas contra Covid-19 causem mal súbito”; “Ministro da Justiça não se encontrou com traficantes no Complexo da Maré”, foram algumas das notas publicadas no portal, rebatendo notícias falsas que circulam em mídias sociais.

Segundo as informações das notas, alguns desses desmentidos foram apurados pelos próprios funcionários do governo, enquanto outros repetiram, sem autorização prévia, conteúdo produzido por veículos independentes de checagem. Esse foi o caso, por exemplo, de uma publicação refutando que a esposa de um dos mais poderosos traficantes brasileiros, Willians Camacho, o Marcola, assumiu um cargo no  Ministério da Segurança Pública, informação originalmente apurada pela Agência Lupa, um dos veículos pioneiros do fact checking brasileiro.

Algumas publicações do Brasil Contra Fake

Algumas publicações do Brasil Contra Fake (Imagem: Site Brasil Contra Fake/Secom)

Ao lado dessas publicações com refutações de falsidades, o site do governo inclui também informes sobre ações oficiais, e textos que rebatem opiniões — por natureza, subjetivas e impossíveis de desmentir.  

Entre essas publicações que não se enquadram na categoria ”verificação de fatos”, há um comunicado sobre a prorrogação pelo governo federal do prazo para o recadastramento de armas de fogo, um artigo sobre como mudanças na estrutura da Controladoria-Geral da União (CGU) interferem no combate à corrupção e uma nota defendendo a participação da primeira-dama em uma emissora de TV pública — neste último caso, assim como em outras notas, não há nenhuma fonte a substanciar a publicação, contrariando outro princípio básico da checagem. 

Sem transparência, sem isenção

Esta confusão entre relações públicas e verificação de informações, somada à apropriação de conteúdo e à falta de critér sobre o que publicar, contraria práticas consagradas por profissionais de fact checking. Segundo estes, a verificação precisa ser sempre independente e transparente quanto a seus critérios. Também é necessário explicitar quais fontes amparam suas informações. Ao camuflar uma iniciativa publicitária com a aparência de isenção jornalística, afirmam os jornalistas, o governo acaba por minar quem realmente é neutro, e contribui para a mesma desinformação que diz pretender combater. 

"Só existe fact checking se ele for transparente, independente e apartidário. É um tipo de ferramenta jornalística criada justamente para fazer frente ao que o site do governo está fazendo, que é propaganda”, afirmou à LatAm Journalism Review (LJR) Cristina Tardáguila, diretora de programas do International Center for Journalists (ICFJ), em Washington, e fundadora da Agência Lupa. “Quando o governo denomina uma página de propaganda como de checagem, ele envelopa a propaganda com contornos de verdade, e anula quem de fato verifica a sua propaganda". 

Para Tai Nalon, diretora-executiva da Aos Fatos, outra agência brasileira de checagem pioneira, a iniciativa tem boas intenções, mas foi mal planejada e pode gerar mais desinformação. 

“O grande problema foi que o governo misturou notas de esclarecimento, informações oficiais e checagem de fatos”, afirmou Nalon à LJR. “O governo obviamente deve prestar contas, mas ele é uma parte interessada, e as partes interessadas são fontes no jornalismo, não praticam o jornalismo em si. A checagem é uma técnica jornalística que tem uma metodologia que garante algum grau de isenção e neutralidade. Quando é usada pelo governo para fazer propaganda, no entanto, perde a confiabilidade”.

Segundo Natália Leal, atual CEO da Lupa, o site constitui uma “apropriação do discurso, que demonstra desconhecimento do que é checagem de fatos por parte da Secom e da Secretaria de Imprensa do governo. A checagem é feita sobre dois princípios, a transparência e o apartidarismo. Se tem um lado, e todo governo tem um lado, então não é checagem”.

Celeuma e passo atrás

No meio jornalístico, a repercussão da iniciativa foi muito negativa. A Lupa publicou um texto enumerando problemas da iniciativa do ponto de vista técnico. Nas redes sociais, professores de jornalismo, como Pedro Burgos, disseram que a iniciativa é “péssima”. Os três maiores jornais brasileiros, Folha de São Paulo, O Globo e Estado de São Paulo publicaram notícias e reportagens críticos à empreitada.

O governo reagiu à repercussão, e parou de usar o vocabulário específico de sites de verificação. Se, em sua descrição no lançamento, a página afirmava “estamos aqui para te ajudar a checar fatos em relação ao Governo Federal”, o site foi desde então atualizado e diz agora a versão um pouco mais neutra “estamos aqui para te ajudar e esclarecer sobre ações do Governo Federal”.

O próprio presidente Lula chegou a tuitar que tratava-se de “uma plataforma de checagem de informações e combate à desinformação", mas agora o site não afirma mais ter esse propósito.

Em resposta a perguntas da reportagem, a Secom afirmou que “o site Brasil Contra Fake não é uma agência de checagem. É um espaço de informações e esclarecimentos sobre desinformação referente às ações institucionais e políticas públicas do Governo Federal”.

O site, acrescentou a Secom,  busca desmentir “notícias falsas ou distorcidas relacionadas às políticas do Governo Federal e todos os temas correlatos”, e o trabalho é feito por seus próprios funcionários.

Além dos ajustes no discurso oficial, a equipe responsável pelo site também marcou uma reunião por videochamada com representantes de veículos de checagem de notícias na semana passada. 

Segundo duas pessoas presentes no encontro, que não quiseram se identificar, representantes da Secom pediram desculpas por terem replicado informações sem autorização prévia, e disseram que fizeram isso porque acharam que não haveria problemas. Também prometeram ajustar o discurso empregado para evitar atritos.

À LJR, a Secom disse que “o diálogo com as plataformas e com as entidades que debatem o problema da desinformação será constante e ampliado, especialmente pela gravidade do tema. Vamos sempre ouvir e processar todas as críticas construtivas sobre este tema ou qualquer outro que envolva a Secom”.

Disputas sobre a linguagem

O site Brasil Contra Fake integra uma campanha mais ampla, que inclui também a veiculação de peças publicitárias sobre a desinformação em canais de TVs abertos e fechados,em rádios no interior do país, em cinema, portais e sites e em redes sociais. Essa é a primeira fase da campanha, com previsão inicial de veiculação por três meses. 

O governo não respondeu à reportagem qual é o custo da iniciativa, mas, à Lupa, disse que “a campanha tem investimento de R$20 milhões em mídia”.

Além dos erros que já assumiu, o site desperta uma discussão sobre em que medida é prejudicial a confusão entre jornalismo e propaganda, e sobre quem tem o direito a usar cada linguagem.

Para Taís Seibt, professora de jornalismo da Unisinos, no Rio Grande do Sul, que fez sua tese de doutorado sobre checagem de fatos, uma verificação governamental pode ser bem-vinda, contanto seja baseada em fatos e deixe as suas fontes claras.

”O problema não é a iniciativa em si, mas como ela está sendo feita. Mas pode ser uma boa iniciativa, se apresentar métodos mais claros baseados em fatos e dados”, afirmou Seibt à LJR. “Precisamos de mais atores produzindo informações de qualidade, baseadas em fatos, e é possível usar esse formato do fact checking. Mas uma coisa básica é mostrar as fontes, e embasar as afirmações em evidências. Se isso não está sendo feito, torna-se mais um problema a ser combatido”.

Seibt observa que já houve várias outras iniciativas oficiais reivindicando para si o termo fact checking. Em 2018, durante o mandato de Michel Temer (MDB), o Ministério da Saúde lançou um site com a linguagem. No auge da pandemia de coronavírus, alguns governos estaduais do PT também empregaram a estratégia. Nas eleições do ano passado, vários candidatos tiveram sites do tipo, inclusive o próprio Lula — no caso, a página de verificação do atual presidente foi tirada do ar pela Justiça, por entender que se tratava de propaganda disfarçada.

Para Tardáguila, do ICJF, essa prática sempre foi errada, e “ganha outra escala” no momento em que passa a ser praticada diretamente pela Presidência da República. Ela afirma também que o esforço é provavelmente inútil. 

“Como repórter, e por toda a minha vida fui repórter, sempre que recebi uma posição oficial, tive certeza de que aquela posição era mentira. A sociedade tem a mesma posição em relação a desmentidos do governo”, afirmou. “É muito dinheiro e muito esforço centrados em uma ação cujo retorno com certeza será baixíssimo. A pessoa que acredita em absurdos não vai deixar de acreditar porque o governo desdisse”.

Além da polêmica sobre as diferenças entre jornalismo e propaganda, o caso revela também a dificuldade do governo brasileiro, que assumiu em janeiro, para combater a desinformação. Integrantes da Secom relatam haver uma busca urgente por medidas que deixem claro que o governo quer combater as chamadas notícias falsas e a desinformação. Essa pressa enfrenta um problema complexo, para o qual existem poucos precedentes.

“Se a gente soubesse como combater desinformação de maneira eficiente, não estaríamos enfrentando todos os problemas que atualmente enfrentamos”, afirmou Tai Nalon, da Aos Fatos. “Entendo que haja pressa em combater a desinformação, sobretudo aquela que vem junto com o extremismo e a paranoia. Mas com certeza o governo tem estratégias muito mais eficientes para fazer isso, justamente porque tem dados, dinheiro e influência. Ele é capaz de fazer campanhas mais estruturadas e planejadas. Me parece complicado usar uma roupagem jornalística para esclarecimentos oficiais”.

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