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Iniciativas de jornalismo com arquivos desclassificados na Argentina e no México contribuem para a memória, a justiça e o acesso à informação

A primeira vez que a seleção argentina de futebol ganhou uma Copa do Mundo foi em 25 de junho de 1978, na única Copa do Mundo realizada em solo argentino. Isso aconteceu durante a última ditadura militar no país, também conhecida como Processo de Reorganização Nacional, durante a qual a Argentina foi governada por uma Junta Militar.

Desde então, entre os argentinos generalizou-se a opinião de que a ditadura usou a Copa do Mundo de 1978 na Argentina para se legitimar no poder e ficar bem aos olhos do mundo, enquanto nos bastidores era executado um plano sistemático de terrorismo de Estado, com desaparecimentos forçados, prisões arbitrárias e tortura. Muitos desses casos ocorriam na então Escola de Mecânica da Armada (ESMA), um dos maiores centros clandestinos de detenção, tortura e extermínio da época, situada a poucos metros do Estádio Monumental, onde a seleção alviceleste levantou a taça.

Pouco de tudo isso podia ser comprovado de forma factual e documental. Mas em 2019, os Estados Unidos entregaram à Argentina mais de 40 mil documentos relativos ao terrorismo de Estado no país sul-americano, de 16 agências de inteligência, que haviam sido desclassificados. Surgiram então documentos para provar muito do que apenas se supunha.

Em agosto de 2019, após a entrega da última parte dos arquivos, foi criado o Projeto Desclassificados, cujo objetivo é traduzir, extrair dados, organizar e sistematizar 4.903 desses documentos e construir uma base de dados de acesso público. Essa é uma iniciativa interdisciplinar da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires (UBA) em parceria com as organizações de direitos humanos Avós da Praça de MaioMemória Aberta e o Centro de Estudos Legais e Sociais (CELS).

Cover of Proyecto Desclasificados journalism project website

Projeto Desclassificados é uma iniciativa interdisciplinar da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires em aliança com organizações de direitos humanos. (Foto: Captura de tela de desclasificados.org.ar)

Quando esses documentos foram disponibilizados nas páginas oficiais do Governo da Argentina, uma equipe de voluntários graduados em Ciências da Comunicação, Tradução e Serviço Social na UBA assumiu a tarefa de criar a base de dados indexada que permite o acesso aos arquivos de forma rápida e eficiente.

“A ideia do Desclassificados é que, por um lado, [a base de dados] seja pública e acessível a todas as pessoas sem nenhuma barreira. E por outro lado, que o conteúdo seja fácil de consultar e acessar. Que não seja um PDF pendurado ali ou em uma caixa”, disse Naiara Mancini, uma das jornalistas que participou da criação do banco de dados e que realizou várias reportagens sobre esses documentos, à LatAm Journalism Review (LJR). “Tinha que ser de um jeito que quem quisesse consultar, pudesse consultar, e que fosse acessível e fácil de achar. Que a pessoa não precisasse preencher um formulário para poder fazer a consulta.”

Os documentos foram organizados em três coleções, já publicadas: uma com arquivos referentes à Guerra das Malvinas, outra sobre o Massacre de Trelew e outra sobre a Copa do Mundo de 1978. Esta última foi publicada em dezembro de 2022, pouco antes da vitória da seleção argentina na Copa do Mundo do Qatar.

As três coleções estão disponíveis para consulta no site do Projeto Desclassificados. Os usuários podem pesquisar facilmente, filtrando os resultados por datas, lugares, pessoas, etc.

Destas coletâneas derivaram artigos jornalísticos sobre as descobertas mais relevantes. Esses artigos estão publicados no site do Projeto Desclassificados e no site da Agência de Notícias de Ciências da Comunicação da UBA (ANCCOM).

Para Mancini e outros cinco graduados em Ciências da Comunicação que participaram da parte jornalística do projeto, fazer jornalismo a partir dos documentos desclassificados foi uma grande experiência de aprendizado com enormes desafios. Um deles foi o processo de verificação que precisa ser realizado depois de cada informação encontrada.

A equipe descobriu que muitos dos arquivos mencionam informações que, depois da verificação cruzada com outras fontes, revelaram-se falsas ou inconsistentes.

“Foi uma boa oportunidade para mostrar […] a forma transversal em que esses documentos devem ser lidos, no seu contexto de produção. E que talvez eles não devam ser lidos ao pé da letra, porque precisam ser cruzados com outras fontes”, disse Mancini. “Com o necessário fact-checking, obviamente com entrevistas e pesquisas, essas inconsistências muitas vezes aparecem.”

A equipe aprendeu a ter sempre em mente que estava trabalhando com arquivos que mostram uma perspectiva subjetiva, a das agências de inteligência dos EUA. Aprendeu também que, depois de tanto tempo, muitas vezes não é possível obter a verdade absoluta sobre alguns fatos. No entanto, embora as inconsistências não invalidem os documentos, os jornalistas que trabalham com tais arquivos devem ser transparentes e mostrar as inconsistências em contraste com as fontes humanas ou documentais, disse Mancini.

Para a jornalista, o maior desafio foi decidir como deveriam tratar alguns termos militares que eram mencionados nos documentos sob uma perspectiva norte-americana dos acontecimentos. Por exemplo, em alguns documentos são usados ​​termos como “guerrilheiros” ou “guerra suja”, quando para os argentinos o conflito nunca foi uma guerra ou guerrilha, mas terrorismo de Estado. A equipe se deparou com o dilema de não reproduzir termos inexatos tanto em suas bases de dados quanto nos artigos, sem necessariamente evitá-los.

Outro exemplo aparece na coleção da Guerra das Malvinas. Os documentos se referem às ilhas como “Falkland”, nome inglês do arquipélago sobre o qual existe uma disputa histórica entre a Argentina e o Reino Unido. Para os argentinos é incorreto traduzir "Falkland" como "Malvinas". A equipe do Projeto  Desclassificados optou por incluir os dois termos, com "Malvinas" entre colchetes.

Unclassified document regarding the Argentina 78 world cup.

Uma das coleções do Projeto Desclassificados está dedicada a documentos que tratam das ações da ditadura militar no contexto da Copa do Mundo na Argentina em 1978. (Foto: Agência desclassificadora, Terrorist Action-Argentine Army Operations. [Coleção Copa do Mundo de Futebol 1978])

"Não se pode dizer coisas que os documentos não estão dizendo. É preciso discutir a partir de uma posição subjetiva, porque os documentos trazem com eles uma posição subjetiva", disse Mancini. “Trata-se de uma intervenção no texto a partir da pesquisa e é um trabalho com os arquivos, criticando-os e dialogando com essa linguagem. [...] Eles foram produzidos em um contexto que precisa ser recuperado e devem ser trazidos para o presente com o trabalho jornalístico. Acho que esse é o maior desafio que temos ao trabalhar com esses documentos.”

Quase quatro anos depois de seu início, o Projeto Desclassificados teve um impacto no jornalismo na Argentina. As coleções foram retomadas por vários meios de comunicação, que descobriram mais coisas e deram novas interpretações aos documentos.

Para Mancini, a maior contribuição do projeto é os documentos poderem ser usados nos processos judiciais das vítimas da ditadura militar. O Projeto Desclassificados forneceu provas documentais em pelo menos dois julgamentos em andamento por crimes de lesa-humanidade.

“Isso é extremamente enriquecedor, porque além das questões jornalísticas, tem a ver com o julgamento efetivo dos ditadores daquela época, dos repressores daquela época, e com uma contribuição real para a justiça”, disse a jornalista.

O Projeto Desclassificados é um exemplo da contribuição que uma parceria entre jornalistas e organizações de defesa dos direitos humanos pode dar à justiça e à memória histórica. A desclassificação de documentos na Argentina é em grande parte o resultado de anos de esforços de organizações como Avós da Praça de Maio, Memoria Aberta e CELS, que trabalham há anos para chegar à verdade sobre o que aconteceu com as vítimas da ditadura militar.

“Não é o trabalho de um jornalista isolado, é uma questão mais orgânica de toda uma rede de organizações de direitos humanos que, felizmente, é muito forte aqui na Argentina e é muito importante para a democracia de hoje”, disse Mancini.

A luta de Davi contra Golias

No México, Laura Sánchez Ley e Dardo Neubauer vivem uma corrida de paciência e resistência para enfrentar a negligência das autoridades e os obstáculos burocráticos contra seus esforços para divulgar documentos de acontecimentos relevantes da história recente do país.

Sánchez Ley e Neubauer, jornalistas do México e da Argentina, respectivamente, são os fundadores do Archivero, um projeto jornalístico baseado na abertura de arquivos e documentos classificados ou considerados "de segurança nacional" no México.

A iniciativa surgiu quando Sánchez Ley percebeu que, sobre os principais acontecimentos da história política mexicana das últimas décadas, as autoridades muitas vezes oferecem verdades históricas, que o Estado procura estabelecer como absolutas e oficiais, mas que a sociedade não considera necessariamente como totalmente confiáveis.

Screenshot of a TikTok of Mexico's access to information project Archivero.

Archivero busca apresentar a informação em fios no Twitter, stories no Instagram e vídeos no TikTok. (Foto: Captura de tela  de @archiveroexp no TikTok)

Quando a jornalista investigou casos como os assassinatos do candidato presidencial Luis Donaldo Colosio e do deputado José Francisco Ruiz Massieu, ambos em 1994, descobriu que as leis de acesso à informação pública possuem cláusulas que classificam certas informações como "segredo de Estado" ou de “segurança nacional”, e as autoridades muitas vezes alegavam que esses arquivos não podiam ser acessados ​​porque eram processos judiciais “em andamento”.

Depois de ter aprendido a driblar alguns obstáculos e de ter acesso aos primeiros arquivos, o passo seguinte foi analisar a informação, compilá-la em um único lugar e entregá-la à população de uma forma mais digerível.

“Vivemos em um país de verdades oficiais, de verdades históricas. Cada vez que mexemos em um desses casos percebemos quantas irregularidades foram cometidas e quanta informação foi omitida. Eles estão acostumados a nos dar resumos oficiais dessas histórias sem nos permitir o acesso aos arquivos”, disse Sánchez Ley à LJR.

Em fevereiro de 2022, Sánchez Ley e Neubauer lançaram uma pesquisa nas redes sociais perguntando quais casos os internautas gostariam que eles investigassem. A resposta foi melhor do que o esperado e na semana de lançamento do Archivero o projeto ganhou cerca de 10 mil seguidores no Twitter.

Em um ano, o Archivero conseguiu desclassificar 12 casos de relevância nacional e publicou pelo menos 10 artigos com as principais conclusões sobre eles.

Mas, no caminho, os fundadores perceberam que esse trabalho necessita de um orçamento enorme e, principalmente, de muito tempo e paciência.

“Às vezes você demora um ano para abrir um arquivo ou para ter acesso a ele. Depois vêm os custos: a lei mexicana estabelece que cada uma dessas páginas que queremos reproduzir, que queremos dar às pessoas para que elas saibam o que aconteceu, custa entre 1 e 5 pesos [entre 0,05 e 0,25 dólares]. Imagine só, são arquivos que chegam a ter até 10 mil páginas", disse Sánchez Ley.

Até agora o projeto não tem uma fonte fixa de financiamento, de modo que são os fundadores que arcam com essas despesas. Só em algumas ocasiões eles tiveram o apoio dos seguidores via financiamento coletivo para cobrir os custos de reprodução de dois dossiês em particular.

Entretanto, os obstáculos econômicos não são os mais difíceis. O Archivero continua trabalhando para ter acesso aos arquivos de uma série de casos de muita relevância política no México. E é nesses casos que as autoridades, principalmente os órgãos de segurança, têm colocado mais obstáculos, alguns dos quais beiram o absurdo.

O Archivero conseguiu acessar o arquivo sobre o assassinato do cardeal Juan Jesús Posadas Ocampo, morto em 1993, supostamente em um tiroteio em uma tentativa de assassinato do traficante de drogas Joaquín "El Chapo" Guzmán. O arquivo tem cerca de 500 mil páginas e a Procuradoria-Geral da República permite o acesso ao arquivo apenas durante uma hora por dia.

Sánchez Ley disse que algumas vezes ela teve que esperar que os funcionários ​​colassem dezenas de tiras de papel sobre supostos dados pessoais mencionados nos arquivos, o que diminuiu o tempo de consulta.

“Existe um empenho para colocar todos os obstáculos possíveis, principalmente, imagino, para que muitas das coisas que foram cometidas e que foram feitas de errado na época não sejam reveladas”, disse a jornalista. “Mas é realmente uma estratégia para desanimar porque obviamente eles sabem que fazendo isso, a gente vai se cansar.”

Na tentativa de contornar os obstáculos legais impostos pelas autoridades, a equipe do Archivero teve que aprender a terminologia e os procedimentos legais, e também rodear-se de advogados especializados nas leis de acesso à informação pública, considerados essenciais para o trabalho de desclassificação de arquivos.

“Eles [as autoridades] sempre estão procurando uma palavra errada no seu pedido de informação, para negá-lo. Eles têm 40 dias para responder, então, se acharem algo, todo o trabalho que você fez em um mês se perde", disse Sánchez Ley. “Tentamos absorver tudo o que podemos dos advogados para não cometer erros.”

Superados os obstáculos e obtidos os arquivos, o passo seguinte é o trabalho jornalístico de analisar o conteúdo, determinar o que interessa às pessoas e apresentar de forma digerível e atraente para que a informação não se limite apenas ao chamado "círculo vermelho" de jornalistas, historiadores e acadêmicos.

“Agora, com o imediatismo da informação, as pessoas querem ver os fios do Twitter, querem ver os stories do Instagram, querem ver posts muito mais curtos. Nós aprendemos que essa é a forma de transmitir o que estamos desclassificando e abrindo”, disse Sanchez Ley.

O plano de longo prazo do Archivero é digitalizar todos os arquivos obtidos e criar um repositório de assuntos relevantes que seja público e facilmente acessível para qualquer usuário, semelhante ao Projeto Desclassificados. Mas eles sabem que para isso precisam encontrar formas sustentáveis ​​de financiamento.

Screenshot of Mexico's access to information project Archivero's website

Em um ano, Archivero conseguiu desclassificar 12 casos de relevância nacional e publicou pelo menos 10 artigos com as principais descobertas desses casos. (Foto: Captura de tela de archiveroexpedientes.com)

Por enquanto, além de recursos próprios, a equipe é financiada com a venda de serviços de pesquisa e também por meio de oficinas e treinamentos sobre o que aprenderam sobre as leis de acesso à informação pública do México (LGTAIP) e dos EUA (FOIA). Além disso, o Archivero encontrou uma potencial fonte de renda em séries documentais das plataformas de streaming.

“Percebemos que [as produções das séries] precisam de pesquisa de campo e de arquivo. Por exemplo, estamos trabalhando com pesquisa de arquivo em três documentários desde que o Archivero foi criado. Essa é uma das formas de continuar apoiando este projeto”, disse Sánchez Ley.

Um ano após a fundação do Archivero, seus criadores consideram que o projeto é uma forma de fortalecer o que Sánchez Ley chama de "jornalismo de memória" no México e de resgatar histórias que foram notícia e que continuam sendo relevantes para muitos.

“[O Archivero] é, especialmente, um exercício de recuperação e de memória histórica”, disse Sánchez Ley. “Eu não posso garantir que um arquivo classificado seja uma verdade absoluta, mas ele vai preencher as lacunas das histórias que as autoridades nos contaram e que foram amplamente divulgadas nos meios de comunicação.”

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